“Na manhã de 16 de Dezembro de 1972, tropas coloniais portuguesas reuniram os habitantes de Wiriamu, incluindo mulheres e crianças, no largo principal da povoação e ordenaram-lhes que batessem palmas que cantassem para se despedirem da vida. Em seguida, os soldados abriram fogo. Os que escaparam às balas foram mortos por granadas. Incitados pelo brado ´Matem-nos a todos´, os militares levaram o morticínio a quatro povoações vizinhas ao longo do Rio Zambeze, onde o território de Moçambique se estende para o Zimbabwe (Rodésia, à data dos acontecimentos), a Zâmbia e o Malawi – uma região designada pelos missionários católicos como ´a terra esquecida por Deus`. No final do dia, perto de 400 aldeãos tinham sido mortos, e os seus corpos eram lentamente consumidos pelas chamas em piras funerárias ateadas pelos soldados com o capim que cobria as palhotas” – esta descrição é feita pelo jornalista britânico Peter Pringle no prefácio ao magistral livro “O Massacre Português de Wiriamu, Moçambique 1972” do moçambicano Mustafah Dhada.
O dia 16 de dezembro de 1972, passam hoje 50 anos, calhou num sábado e a população de Wiriamu preparava-se para agradecer aos deuses pelos dias de chuva que tivera. Os dias tinham sido de fermentação de pombe e cachassu. A chuva era uma bênção que se conquistava muitas vezes à custa de mphondoro. Na manhã desse sábado longínquo, a celebração não aconteceu em Wiriamu. Sobre aquele lugar caiu uma chuva de balas, que estão na origem de um dos mais ignominiosos actos promovidos pelos portugueses e que marcam, de forma sangrenta, a história da sua colonização em Moçambique. Peter Pringle, um dos jornalistas britânicos que conseguiu ludibriar as autoridades portuguesas conseguiria confirmar as denúncias que tinham sido despoletadas no jornal “London Times” pelos Padres de Burgos que corajosamente fizeram chegar ao Padre Adrian Hastings esta página ominosa da história.
A 10 de Julho de 1973, o jornal britânico “London Times” publicou a história do massacre de Wiriamu, facto que seria corroborado pelo Insight Team do “Sunday Times”, dias depois, numa extensa cobertura deste infausto acontecimento. Portugal procurou, por todos os meios, desmentir os factos e desacreditar aqueles que promoviam o conhecimento desta macabra verdade. Usaram os mais hediondos argumentos: conspiração internacional, Wiriamu não existia, invenção dos padres, ficção. Marcello Caetano estava de visita a Londres para a comemoração dos 600 anos da aliança Luso-Britânica. Para além dos jornais e das notícias sobre a brutalidade do regime que representava, tinha manifestações nas ruas de Londres.
A história chegara a Londres por intermédio dos Padres de Burgos que haviam promovido a criminação. A intervenção de Adrian Hastings é decisiva. Os documentos tinham saído clandestinamente de Moçambique para Espanha pela mão de Miguel Buendia. Mas a história vem de longe. Tete fez parte da diocese da Beira até 1962. O Bispo D. Sorares de Resende foi quem convidou as sociedades missionárias dos Combonianos, dos Sagrados Corações de Jesus e Marias, dos Padres Brancos e da Sociedade de São Francisco Xavier (Burgos) para trabalharem na sua diocese onde havia, manifestantemente, falta de padres. A Igreja iria tornar-se num agente transformador da sociedade, sobretudo através da acção das ordens dos Padres de Burgos e outros, na diocese de Tete, que então se autonomiza. A açcão deles, sobretudo a sua formação de cidadãos moçambicanos, é crucial. Muitos deles foram presos, outros tantos interrogados. Os padres, afirmando-se equidistantes tanto das forças portuguesas como das nacionalistas, colaboravam, inequivocamente, com os libertadores. E tiveram uma postura activa na denúncia das atrocidades praticadas contra as populações, contra os moçambicanos.
Mustafah Dhada: “O papel da Igreja no massacre de Wiriamu não é singular, nem simples. Uma das razões que o explicam prende-se com o surgimento de uma liderança senciente disposta a deixar-se moldar pelo ardor da experiência vivida. Soares de Resende, o novo bispo, mudou o rumo da igreja de Tete. Felizmente, a escassez de sacerdotes em Portugal permitiu-lhe selecionar padres que considerava adequados às necessidades de Tete sob o seu episcopado. Daqui resultou um grupo de sacerdotes “importados” extremamente diversificado e ecléctico, que assumiu as responsabilidades inerentes à sua missão com grande seriedade e acolheu uma vida de isolamento nos lugares mais recônditos de Tete como um trunfo para a construção de uma comunidade de crentes socialmente activa. Os Padres Brancos e os Padres de Burgos notabilizaram-se neste tipo de trabalho: os primeiros, graças á sua experiência sacerdotal em África, e os segundos, devido à sua formação e experiência com paróquias assoladas pela pobreza em Espanha franquista e pelas suas personalidades individuais”.
A frente da denúncia, que irá provocar um terramoto, que inclui uma apresentação nas Nações Unidas, foi assumida por Adrian Hastings. O seu relato foi baseado nas denúncias dos padres que estavam no terreno e será corroborado por vários jornalistas, entre os quais Peter Pringle. Esta história não é apenas importante pelo embaraço que criou a Marcello Caetano e ao regime que liderava, ao expor a sua natureza e desumanidade, mas porque estará na origem, a par de outros acontecimentos, do colapso do mesmo, o que acontece a 25 de Abril de 1974, menos de 1 anos depois de ser despoletada. A acção destes padres, que eram uma verdadeira barreira de defesa das populações e que apoiavam a luta pela nossa independência, não é valorizado nem devidamente reconhecido. A história oficial se não a rasura, não a sublinha.
O relatório sobre o massacre de Wiriamu foi inicialmente redigido pelo padre Domingos Ferrão, o primeiro padre negro da diocese de Tete. Os Padres de Burgos protegeram-no dado que ele tinha sido preso anteriormente. Os dados mais importantes destes acontecimentos são conhecidos desde 1972: o número de mortos, o local, as causas – o facto de ser um corredor da frente nacionalista na sua marcha para sul, frente Manica Sofala – e aqueles que o perpetraram.
Vicente Berenguer: “Após o massacre, eu, juntamente com o padre Ferrão e padre Sangalo, fizemos um relatório que foi publicado pelo padre Hastings na Inglaterra. Isto criou uma polêmica, mas Marcello Caetano mesmo assim desmentiu os factos. (...) Viajámos para vários países europeus para expor as atrocidades cometidas pelo regime colonial contra o§ povo moçambicano”.
À distância destes 50 anos, há lugar para que reconheçamos o papel daqueles que assumiram corajosamente o papel da denúncia – redigiram o relatório, levaram-no daqui para Espanha – foi Miguel Buendia que corajosamente o fez -, conseguiram que um jornal britânico desse primeira página e tornaram insustentável a posição e o regime fascista português. Estes padres não só assumiram este importante papel de denúncia das atrocidades, mas deram um contributo decisivo na libertação de Moçambique.
Mustafah Dhada: “O padre Catellá serviu-se engenhosamente dos dois protagonistas do conflito para servir a sua Igreja. Enrique Ferrando recorreu à sua escrita para registar situações de violência em massa e, ao mesmo tempo, defender os direitos dos mais pobres. Alfonso Valverde de León não descansou enquanto não expôs o que considerava ser a verdade nua e crua. Miguel Buendia tinha a habilidade de convencer os colegas mais indecisos a tomarem uma posição apresentando os argumentos adequados com ardor e paixão. Dividido entre o medo e a fé, o padre Ferrão registou o número de mortos na sua lista de vítimas, enfrentando o risco de prisão. Entre eles estava também o padre Berenguer. Os seus truques de magia conquistaram a lealdade dos rapazes mais novos da sua paróquia. A sua calma aristocrática permitiu preservar a consistência da história apesar das tentativas dos detractores para ferir a sua veracidade. O mais excêntrico de todos talvez fosse o padre Sangalo, filho de um toureiro e um ás ao volante de uma Suzuki. O seu dom para travar amizade com representantes da autoridade em pleno território inimigo salvou a sua vida e a de uma testemunha, o que acabou por inverter o rumo da contranarrativa promovida por Portugal.”
Mustafah Dhada nasceu perto do triângulo de Wiriamu onde aconteceu este massacre que este estuda e divulga, com uma notável pesquisa de fontes orais, primárias e documentais, entrevistas. “O Massacre Português de Wiriamu, Moçambique 1972” é uma obra importantíssima para a demanda da história deste massacre e uma denúncia documentadíssima do mesmo. Não sei se a nossa academia a estuda ou promove. Não fosse a nossa congénita distração, o moçambicano Dhada teria sido convidado para falar sobre esta sua investigação e sobre esse seu notável trabalho, o mais importante desenvolvido sobre este tema, aquando desta efeméride. Mais: as instituições que deviam cuidar da nossa memória estariam obrigadas a promover, sobre esta mesma efeméride, iniciativas que a levassem ao conhecimento sobretudo dos mais jovens. Mas ficamo-nos pelo circunstancial e pela instrumentalização política da história. A história não se escreve com slogans ufanos. A história é saber contar os episódios da vida de um povo e este é, indubitavelmente, um deles.
A história oficial ou oficiosa é lacunar e não conta as histórias que fazem a História e oculta o nome de protagonistas importantes. Aí estão e alguns deles vivos. O país deve-lhes um tributo. A todos eles. De Ferrão a Hastings, de Sangalo a Berenguer ou Buendia, entre tantos outros. Hoje passam 50 anos, teria sido uma ocasião soberana para o país lembrar-se destes homens altruístas, generosos, magnânimos, corajosos, que ajudaram a denunciar um regime decrépito - a sua brutalidade, a sua insanidade, a sua desumanidade - e tiveram um papel libertador no futuro do nosso país. Não tenho notícia de que alguma vez estas figuras tenham merecido um reconhecimento oficial, uma homenagem nacional, o que nos honraria a todos como moçambicanos.
Conforme reza a história, a República Unida da Tanzania tornou-se independente a 9 de Dezembro de 1961. Portanto, sexta-feira passada, completou 61 anos após ter cessado de ser colônia da Alemanha desde a Conferência de Berlim e, depois, tutela do Reino Unido.
Como bons africanos que somos, estavam marcadas celebrações à escala nacional, festas de arromba e um banquete de estado à nossa boa maneira. Tudo orçado em nada mais nada menos que cerca de 450 mil dólares norte-americanos. Bom… para nós, moçambicanos, que, nos últimos sete anos, passamos a vida a ouvir 2.2 mil milhões de dólares… contas bancárias pessoais com oito milhões e meio de dólares, 33 milhões e por aí fora, meio milhão de dólares pode não parecer nada… até não é, comparativamente! Na nossa moeda, são uns 28 milhões de meticais! E dão para… equipar um pouco melhor um dos hospitais gerais!
No lugar de festas de arromba, banquetes ou festanças, decorreram o que designaram de diálogos públicos sobre o desenvolvimento! A chefe de Estado tanzaniano decidiu cancelar todas as festanças e mandar os 450 mil dólares para a construção de oito dormitórios para crianças com necessidades especiais! E não estamos a falar de aniversário qualquer… estamos a falar de sessenta e um anos de uma nação. Não entendamos mal a Sra Sumia Suluhu: ela não mandou não se celebrar o sexagésimo primeiro aniversário do seu país. Não, não! Mandou, sim, redirecionar os dinheiros que estavam para serem gastos nas festanças e banquetes. É possível festejar, celebrar uma efeméride sem gastar rios de dinheiro. Ou gastando-se o mínimo dos mínimos! Realizando sessões de profunda e séria reflexão sobre a vida e o rumo do país. E os diálogos públicos sobre o desenvolvimento são, também e por excelência, momentos importantes para e no progresso de um país! E exemplo de celebração inteligente.
Mas não é a primeira vez que um governo tanzaniano cancela celebrações de pompa e circunstância do dia da independência do seu Estado. Em 2015 e 2020, o então presidente, John Magufuli, procedeu da mesma forma e direcionou os fundos orçamentados para a construção de uma estrada e para a aquisição de equipamentos médicos, respectivamente.
Está aqui um exemplo de onde ir buscar dinheiro se queremos fazer contenção de despesas públicas, de se ser comedido e racional. Todos os dias queixamo-nos de que não temos dinheiro para isto e mais aquilo, mas passamos a vida em acções e actividades perfeitamente supérfluas e dispensáveis, ou em viagens completamente desnecessárias.
Assim que estamos em fim de ano, havemos de ouvir de sumptuosos banquetes de estado, festanças com convidados na casa dos milhares e com réplicas nas províncias até ao distrito.
Há uns bons anos, fui convidado a um daqueles banquetes de fim de ano. Ali devia haver mais de dois mil convidados, entre os chamados quadros e figuras nacionais e respectivas esposas. E alguns quadros levavam consigo filho ou filhos!... E ali comeu-se e bebeu-se pela medida grande; do bem e do melhor! Não que o chefe de Estado não possa oferecer um banquete aos quadros nacionais. Pode e deve. Mas, se o espírito é de fazer a contenção de custos, melhor utilização dos considerados parcos recursos, também pode fazer uma coisa mais modesta, simples e econômica: um cocktail com menos convidados! Diálogos públicos sobre o desenvolvimento!
E esses dinheiros todos poderiam ir para outros fins sociais que temos tantas necessidades, ou para melhorar a nossa famosa EN1. Não resolveria todos os problemas do país, é certo, mas resolveria um ou outro, o que não é menos importante.
ME Mabunda
Desembarcamos por volta das 13 na ponte-cais de Inhambane, vindos de Linga-Linga, lugar paradisíaco para onde tenho ido nos últimos anos com alguma regularidade, depois de ter sido convidado pela primeira vez em 2019 por Peter Vurukudzu, um zimbabweano excêntrico capaz de arder à mínima faúlha. Hospedo – sempre que vou – em casa dele, localizada num outeiro, isolada das demais residências que não são tantas. É uma habitação ampla, coberta de colmo maciço com paredes de tijolo e, assim com este material, transmite para o seu interior um ambiente fresco e agradável.
É um privilégio estar na casa de Peter Vurukudzu, de onde se pode contemplar eternamente o Índico, é um regalo. Daqui ainda se ouve o esbater das ondas na areia da costa, e à noite, o hulular do mar é um afago para o corpo e a mente e a alma. Tenho saudades de voltar sempre, e Vurukudzu já me disse, venha quando quiseres, a casa é tua.
Como estava dizendo, desembarcamos por volta das 13 na ponte-cais de Inhambane, mas quem vinha conversando comigo ao longo da viagem é Catidza Maguirimussa, mulher de palavras austeras, livre de bater na minha mão em cada riso, como se já nos conhecessemos de outros caminhos. Estamos sentados lado a lado, enconstados um ao outro de tal modo que o roçagar das nossas roupas e um pouco dos nossos corpos, perturbavam-me e fiquei com a sensação de que ela também sentia-se mexida.
Era eu quem mais falava e Catidza ouvia-me com atenção. Fazia-me perguntas por vezes acentuadas e eu respondia com hosnestidade, sem o receio de que não conheço esta mulher que se desabrocha para mim sem nenhum complexo de me tocar no corpo e bater a minha mão em cada riso. Preferi acreditar na sua sinceridade, no seu fascínio por mim, um homem que ela nem conhece.
Descemos e começou a chover, se calhar para gáudio de Catidza, que abriu o enorme guarda-chuvas cobrindo-nos aos dois, de tal modo que os nossos corpos vão continuar em contacto, num encosto agora mais assustador porque ela abraçou-me, tornando mais flexível a mobilidade, e naquelas condições perdi a capacidade de arvorar qualquer palavra, nem que fosse para dizer idiotices. Foi ela então que se adiantou, dizendo aquilo que tenho dito em muitos momentos: “adoro a chuva”!
Estamos quase no fim do tabuleiro da ponte, que na verdade é onde ela começa, as pontes começam de fora para dentro. Era necessário que dissesse alguma coisa, mesmo sabendo que o meu quoficiente de inteligência é sumário, então repeiti o que Catidza tinha dito : “eu também adoro a chuva”!
Chove chuva fininha sem molhar, mesmo assim, os nossos corpos que se unem em marcha desinteressada. Senti que já não éramos nós que íamos, éramos levados por força desconhecida. Fomos conduzidos sem resistir ou tentar fazê-lo, à varanda da loja do Damodar Jethá “Jethá da esquina”, que seria afinal o ponto da nossa bifurcação.
- Muito obrigado pela companhia, Catidza, obrigado por me teres protegido da chuva.
Ela estendeu-me a mão e disse, leva-o para te lembrares de mim, um dia a gente se encontra por aí.
Peguei no guarda-chuva, abraçamo-nos profundamente e depois fiquei ali a assistir - depois de me deixar com o seu cartão de visitas - a mulher que descia como um anjo até perder-se no desvio da antiga Sapataria Bernardo. Chama-se Catidza Maguirimussa.
Terapia surda
Doroteia, nome grego, que significa dádiva de Deus, decidiu quebrar os seus silêncios e se libertar de suas amarras, curando as suas próprias feridas e traumas. Ela escreve o seu primeiro livro e, com base em factos reiais, pretende dizer à sociedade e ao mundo que, muitas vezes, as famílias se enchem de cuidados para que nada de mal aconteça, aos seus filhos, fora de casa, porém, não têm os mesmos cuidados, dentro de casa, e nem sequer passa pelas suas cabeças que o perigo pode estar tão iminente.
Lipondo ou Terapia da Fala é uma narrativa que nos conduz para o pior que rapazes e raparigas podem, alguma vez, passar na infância. Entender a profundidade e o âmago destas revelações equivalem a compreender a condição humana e as formas de vida que o ser humano impõe a si próprio, para coexistir e sobreviver, ou se autodestruir. São os caminhos perversos que mais do que tornar a peregrinação um momento aprazível, fazem dela uma outra forma de suprir a existência e felicidade do próprio ser humano. Destituir o essencial da nossa condição significa iniciar outra guerra tão mortífera como a guerra das armas.
Estes textos navegam entre diferentes géneros literários. Algumas vezes mais poéticos, outras agrestes e até ficcionais. São como diria Hannah Arendt, a súmula da própria condição humana ou da perversidade dessa mesma humanidade. Sugiro, então, uma leitura cuidada e com tempo, um momento disruptivo e de desassossego. Uma caminhada sofrida e mística. Estamos diante desse buracão, que nos persuade a revisitar temática sobejamente debatida, com estatísticas perturbadoras, porém, cujas soluções continuam tão utópicas, como imprevisíveis e, convenhamos, incompreensíveis.
Estas são as histórias de várias vítimas da violação de direitos humanos, de direitos da criança e do direito de viver um mundo de sonhos e aspirações. Ela descreve, jamais livre, que jaz como menina de saia escocesa vermelha, uma menina morta e sem voz. O funeral profanado de uma infância, a esperança esmiuçada da eternidade dos seus sonhos. Aqui jaz uma inocência; e aqui jaz uma existência.
Por vezes, e em certos momentos, a vida nos conduz para os seus próprios fins e destinos. As marcas de um sofrimento que impelem uma relação psicológica distorcida entre o corpo e a mente. Tudo vira disfuncional. Com a autora, essa sensação de não pertença aconteceu. Sentiu, ao longo de anos, um misticismo destorcido da carne distanciada da mente e do seu intelecto. O corpo deixou de ser, somente, o fenótipo, o visível, mas, também, a parte sensorial e mais notável. Passou, uma vez tatuado pelos traumas, à matéria, no seu estado físico material, como provam todas as lições metafísicas, onde o todo se desencontra das suas partes, se descomunga, atravessando as linhas do imaginário e do inalcançável. Só a força de vontade e o desejo de superação podem falar mais alto.
Eu sou Doroteia ou Dorinha ou, se quisermos, uma mulher de lutas. Pouco mais do que dádiva de Deus, também, posso ser luz; a fonte de energia suprema que nos liberta de todas as trevas, escreve a autora. É doloroso e repugnante reler estas descrições porque se tornaram senso comum, numa sociedade que se debate com gravidez precoce, casamentos prematuros, com mães que são crianças. Um pouco por todo o país, estas verdades morrem ao sabor do vento e quase deixam de indignar.
Relendo Lipondo, e essa apologia ao buraco, um buraco invertido, porque passamos a conhecer o seu interior, sem antes nos atinarmos à superfície, nos recordamos, também, de George Orwell que versou, nas suas obras sobre a paz, a liberdade, a escravidão, sobre a ignorância e a força. Por conseguinte, ele afirmava, que a consolidação do silêncio se comparava ao exercício do direito a voz desse mesmo silêncio. Exercitar o silêncio exigia coragem, da mesma forma que exigia a intuição para a inacção. Libertar a voz era uma terapia, não completa, mas a possível.
Doroteia toca nos extremos, aqueles paradoxos que levam as verdades para o túmulo. Dizia, no começo, que recomendaria uma leitura invertida. Os valores do bom senso também se inverteram. Forçar as crianças, mesmo antes da sua puberdade, a uma relação sexual repetida, tem mais do que perverso, tem maldade e indignação. Desumano e malicioso. Pior quando acontece no tecto da mesma família que julga estar a conviver e a educar. O resto da narrativa suaviza os impactos. Factos consumados e essa busca pela superação e compaixão. Reter aquilo que mais nos pertence, o nosso corpo.
O Prefácio deste livro, que tem a missão de orientar o sentido das nossas leituras, fala numa descrição magnífica, mas, igualmente, numa matéria que faz chorar do princípio ao fim, não só pelo inaceitável, mas, igualmente, pelo facto de serem situações recorrentes e que alcançam milhares de Doroteias, naquilo que elas têm de mais sagrado, que é o seu corpo.
O abuso sexual de menores e, igualmente, de qualquer outra mulher, de qualquer idade, continua um crime repugnável, que iliba o criminoso e pune, duplamente, as suas vítimas. Estes actos infames e violentos e, muitas vezes, desproporcionais, não geram, apenas, a dor e a revolta, mas, enterram e sepultam a mulher e seus sonhos. Eles vão acontecendo a cada segundo, todas as horas, todas as semanas e, muitas vezes, nos mesmos locais.
O nosso país vive esta encruzilhada. O mundo também. São as histórias de terror que ninguém preza escutar. As aporias que, jamais, nos esforçamos a resolver, e os mantos do pior com que o ser humano tem de conviver, a bom rigor, os dissensos com os quais convivemos e, também, em silêncio, nós os homens, ou nós os pseudo-homens.
Quebrar as barreiras do silêncio, como diz Doroteia, tem a missão de tornar em inspiração para outros e para outras. Esse é o sinal de luz, como refere Dorinha.
É necessário que todas as Doras de Moçambique se inspirem na jornada do autoconhecimento. Estas mulheres têm que provar que homem nenhum tem poder sobre elas e nós, que escutamos estas declarações, destas vítimas da violência, precisaremos de entender que só exercitando o poder de escutar, de ajudar e de ser solidário, fará de nós próprios, pessoas mais corajosas, destemidas, solidárias e fraternas.
Precisamos de acreditar que temos, todos, um propósito, pois as histórias de nossas vidas começam muito antes de qualquer escrita ou de qualquer leitura. O sinal da luz está sempre presente nas planícies, nas montanhas, na infinita superfície do mar, no interior de qualquer lipondo. Que esta leitura nos ajude a transformar uma terapia surda em acções que nos libertem e que nos ajudem a falar, sem medos, sem receios e em busca de uma cura que tenha o sentido de todos os sons e de todas as cores das canções. Quando as mulheres vítimas de violência sexual poderem falar, elas serão e estarão empoderando todas as mulheres que vieram antes delas próprias, e até, daquelas que ainda não passaram por esse trauma.
Quem são os Invisíveis?
Não… a pergunta devia ser “quem podem ser os invisíveis, quando lhes é dada a oportunidade certa?”
Em Setembro de 2022, a Sociedade de Desenvolvimento do Porto de Maputo (MPDC), a Plataforma Makobo e o Conselho Municipal de Maputo inauguraram o Kaya, em plena Baixa da Cidade. Mais do que um refeitório social que distribui 100 refeições gratuitas por dia, de segunda a sábado, o Kaya propõe ser uma casa de oportunidade, de igualdade, uma esperança de um futuro melhor para quem vive na rua e sobrevive da rua.
A ideia para esta coleção surgiu neste contexto de inclusão social, inspirada nestas pessoas que a sociedade rotula e esquece, e a quem não é dada outra opção senão a da sobrevivência diária. Partiu também da experiência vivida pela MPDC na implementação de projectos com outros” invisíveis”, as pessoas com deficiência, cuja causa de visibilidade tem abraçado no projecto Porto + (um projecto de emprego inclusivo).
A colecção de streetwear Os Invisíveis, apresentada no dia 9 de Dezembro no maior evento de moda em Moçambique – o Mozambique Fashion Week - é um conceito da MPDC, totalmente desenhado por Vanda Pereira, designer de moda de formação, presente nas primeiras edições do MFW e que é uma profissional de comunicação dedicada no Porto de Maputo. Os modelos que apresentaram a colecção são, na sua grande maioria, beneficiários do Kaya. A colecção está dividida em 4 linhas (“Os escondidos”, Os camuflados”, “Os techno” e “Os adaptados”), cada uma expressando um aspecto diferente das ruas.
Tal como a colecção, o projecto Kaya (um programa de inclusão social), visa dar visibilidade aos seus beneficiários e tem como objectivo, além da solidariedade, capacitar este grupo por forma a devolver-lhe a dignidade, e dar-lhes as ferramentas necessárias para a sua reinserção social. Alguns dos modelos irão iniciar em breve um curso de corte e costura. Outros, irão ter estágios técnico-profissionais nas muitas empresas parceiras que se têm vindo a juntar ao projecto. O objectivo é continuar a encontrar caminhos de inclusão social destas pessoas que vivem à margem da sociedade. Para que um dia não haja invisíveis!
Quanto à colecção “Os Invisíveis”, as roupas serão vendidas e o produto da venda reverte a favor do Kaya. O próximo passo, é o estabelecimento de uma marca própria, produzida pelos próprios “Invisíveis”, de modo a que esta se torne uma fonte sustentável de renda para projectos de apoio a famílias que se encontrem em situação de exclusão.
Desde a sua abertura o Kaya já cadastrou 943 pessoas e serviu 6018 refeições.