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quarta-feira, 06 maio 2020 09:22

IESE aponta clivagens étnicas na origem do avanço da insurgência em Cabo Delgado

Apesar do Estado ter praticamente fechado as portas à realização de pesquisas científicas e reportagens no teatro das operações, o conflito que se verifica na província de Cabo Delgado continua a merecer diversas análises, em particular do Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE), uma organização de pesquisa independente, criada em 2007.

 

Em mais um número do Boletim IDEIAS (Informação sobre Desenvolvimento, Instituições e Análise Social), publicado no último domingo, os pesquisadores Salvador Forquilha e João Pereira defendem que o avanço da insurgência, naquele ponto do país, “é alimentado pelas múltiplas clivagens, nomeadamente étnicas, históricas, sociais e políticas”.

 

Citando um trabalho recente de Luís de Brito, sobre geografia eleitoral e a insurgência em Cabo Delgado, a análise refere: “a insurgência parece desenvolver-se em áreas e no seio de populações marginalizadas pelo Estado, mobilizando sobretudo jovens em ruptura com o Estado, mas também com a sociedade «tradicional», na medida em que adoptam uma prática fundamentalista do Islão”.

 

De acordo com a análise, que visa entender as dinâmicas da insurgência em Cabo Delgado e estabelecer comparações com a guerra civil, que afectou o país entre 1976 e 1992, a Renamo também mobilizou as clivagens locais em seu favor durante a guerra civil. Aliás, os pesquisadores referem que, apesar das diferenças entre a guerra civil e a insurgência, em Cabo Delgado – no que tange aos actores e mensagem – existem aspectos semelhantes do ponto de vista das dinâmicas do conflito e a estruturação da resposta do Estado.

 

“Parece estarmos perante o mesmo tipo de dinâmica que caracterizou a guerra conduzida pela Renamo: a chegada de um grupo armado, portador de um discurso de contestação da ordem estabelecida, age como acelerador do descontentamento social e radicaliza as clivagens sociopolíticas, por vezes históricas, que pré-existem localmente”, diz a análise, citando o trabalho de Luís de Brito.

 

“Isso permitiu aos Al-Shabaab encontrar um certo apoio por parte de sectores mais marginalizados, particularmente os jovens, que, em alguns casos, venderam o pouco que tinham e foram juntar-se ao grupo”, acrescenta, sublinhando que o referido apoio permitiu que o grupo montasse uma “eficiente rede de suporte logístico e de recolha de informação”, constituída por jovens repartidos em pequenos grupos, inseridos nas comunidades, localmente conhecidos por “olhos do mato”.

 

“De acordo com as nossas entrevistas, além do suporte logístico, esses jovens efectuam vigilância e mantêm os insurgentes informados sobre as movimentações das Forças de Defesa e Segurança (FDS) na zona, facto que joga um papel importante no lançamento das operações militares do grupo e no seu avanço no terreno. Neste sentido, tal como aconteceu com a Renamo durante a guerra civil, pode-se dizer que os Al-Shabaab conseguiram, de alguma forma, penetrar no tecido social das comunidades locais, facto que permite ao grupo uma maior mobilidade no terreno e eficiência nas operações militares”, explica a fonte.

 

Para além da exploração das clivagens étnicas, históricas, sociais e políticas, os pesquisadores apontam ainda a “desvalorização” do fenómeno pelas autoridades governamentais, sobretudo das denúncias feitas pelas lideranças religiosas muçulmanas locais, bem antes do primeiro ataque à vila de Mocímboa da Praia a 05 de Outubro de 2017.

 

“O «ultimato» surrealista dado pela polícia moçambicana aos insurgentes para entregarem as armas num prazo de uma semana (O Pais, 2017), a insistência sistemática no discurso, segundo o qual a insurgência em Cabo Delgado «não tem rosto nem mensagem», quando a realidade no terreno apontava para a existência de jovens radicalizados no grupo dos atacantes, sugerem que as autoridades governamentais encaravam os ataques como um simples banditismo”, considera a fonte.

 

“Isso, no nosso entender, contribuiu para que a resposta do Estado fosse pouco ajustada às exigências da real ameaça do fenómeno da radicalização, privilegiando, muitas vezes, a tese da conspiração externa, em detrimento de factores internos que alimentam a insurgência. Aliás, quando o Estado moçambicano decidiu, publicamente, posicionar-se sobre o conflito em Cabo Delgado, através do Conselho Nacional de Defesa e Segurança (CNDS), atribuiu a autoria dos ataques ao Estado Islâmico e, por isso mesmo, considerou que o país está em presença de «uma agressão externa»”, acrescenta a fonte, sublinhando ter sido a mesma atitude tomada pelo Estado, aquando da eclosão da guerra civil, em que a Renamo era vista como uma mera criação dos regimes racistas minoritários brancos da região (Rodésia e mais tarde a África do Sul) com a única finalidade de desestabilizar o Estado moçambicano, pelo que “a guerra não era mais do que «uma agressão externa»”.

 

Para os pesquisadores, seria perigoso, em termos de resposta do Estado relativamente ao conflito, negar que a insurgência se tem alimentado consideravelmente de factores internos. “Na verdade, seria um erro pensar que os Al-Shabaab em Cabo Delgado são uma criação do Estado Islâmico”, defende, avançando que a arqueologia e a etnografia da insurgência sugerem que as origens do grupo são locais, embora se possa falar de elementos estrangeiros no seu seio.

 

“Por conseguinte, é importante que a resposta do Estado moçambicano relativamente ao conflito em Cabo Delgado não se estruture unicamente em função da dimensão externa, nomeadamente «a agressão externa» protagonizada pelo Estado Islâmico. É preciso que a resposta do Estado aborde e dê o devido lugar aos factores internos da violência armada, cristalizados nas múltiplas tensões étnicas, sociais, políticas e económicas que existem a nível local, para evitar que o conflito não só se intensifique, como também, eventualmente, se alastre para outras zonas do Norte de Moçambique”, conclui a fonte.

 

Entretanto, apesar das semelhanças existentes entre a guerra civil e o conflito que se verifica na província de Cabo Delgado, os pesquisadores avançam duas diferenças: os actores e a mensagem. De acordo com a análise, enquanto na guerra civil envolveu (directa/indirectamente) “actores estatais externos”, o conflito que se observa em Cabo Delgado, pelo menos no início, “não existem evidências do envolvimento de actores estatais externos e o grupo doméstico, que corporiza a violência armada, com pretensões claramente religiosas, possui origens locais, embora com contactos fora de Moçambique e a participação de estrangeiros radicais que se instalaram localmente via alianças de casamentos”.

 

A segunda diferença entre os dois conflitos relaciona-se à mensagem, pois, na guerra civil, a Renamo não punha em causa os fundamentos do Estado moçambicano (por exemplo, a laicidade do Estado), enquanto os insurgentes, desde o início, “defendem a necessidade da instauração de um Estado com fundamentos religiosos, nomeadamente a Sharia”.

 

Referir que recorreu ao material produzido no âmbito do programa de pesquisa, intitulado “Estado, violência e desafios de desenvolvimento no Norte de Moçambique”, em curso no IESE desde Agosto de 2019, que pretende responder às seguintes questões: “que factores estão na origem do avanço da insurgência no terreno? Que tipo de relação se vai desenvolvendo entre os insurgentes e as populações locais? Existe algum potencial para que a insurgência se alastre para o Sul, em direcção à zona costeira de Nampula? Como o Estado tem vindo a responder à insurgência?” (A.M.)

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