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sexta-feira, 24 janeiro 2020 04:07

“Fome Zero” e os desafios de Celso Correia analisados à lupa

“Fome Zero” é o compromisso assumido pelo Presidente da República, Filipe Jacinto Nyusi, no acto da sua investidura, a 15 de Janeiro último, como um objectivo a alcançar até ao final do seu mandato, em Janeiro de 2025, quando passar as pastas ao novo Chefe de Estado.

 

Para alcançar este objectivo, o PR garantiu que o seu governo – uma parte empossada nos dias 18 (sábado) e 22 (quarta-feira) – irá mobilizar recursos e alocar 10% do seu orçamento para este sector. Para tal, Filipe Nyusi criou o Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural e chamou Celso Correia, que estava no extinto MITADER (Ministério da Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural), para este liderar o processo.

 

Dados do Índice Global da Fome, publicados em Outubro de 2018, referem que cerca de 24% da população moçambicana vive numa situação de insegurança alimentar. Isto é, duas em cada dez pessoas passam fome.

 

Por sua vez, o Relatório do Inquérito sobre Orçamento Familiar (IOF), de 2015, dava conta de que a taxa de desnutrição crónica era de 42,7%, depois de, em 2014, ter-se fixado nos 43%.

 

Para perceber que engenharia deve ser feita, de forma a inverter o cenário da insegurança alimentar, “Carta” conversou com alguns intervenientes do sector agrário, que elencaram os desafios a serem enfrentados por Celso Correia.

 

João Mosca, Director-Executivo do Observatório de Meio Rural (OMR), organização da sociedade civil que se dedica a pesquisas sobre políticas e outras temáticas relativas à agricultura e ao desenvolvimento rural, entende que o maior desafio é o aumento da produção alimentar, sobretudo na agricultura familiar, que é praticada por cerca de 70% da população nacional. Aquele académico aponta os pequenos e médios produtores como a chave para a garantia da soberania alimentar, que tanto o país deseja, de modo a reduzir as importações.

 

O outro desafio apontado pelo Director-Executivo do OMR prende-se com a introdução de novas tecnologias para o aumento da produtividade. Defende haver necessidade de o sector agrário evoluir nos métodos usados para o cultivo da terra que, de alguma forma, prejudica o ambiente.

 

O terceiro e último desafio apontado pelo académico está relacionado com a exploração sustentável dos recursos, por parte das grandes corporações que actuam neste sector. Afirma que o Ministro da Agricultura e Desenvolvimento Rural deve fazer com que as grandes empresas implementem boas práticas, de modo a evitar conflitos com as comunidades locais.

 

Lembre-se que os conflitos de terra, no país, envolvendo camponeses e grandes companhias têm sido frequentes, com os camponeses a reclamarem a usurpação de terra e as empresas a alegarem que lhes foram atribuídos os respectivos títulos de Direito de Uso e Aproveitamento de Terra (DUAT). É o caso da empresa de capitais portugueses, Portucel Moçambique, que enfrenta um conflito com comunidades da província da Zambézia, as quais acusam-na de usurpação de terra.

 

À Portucel foi atribuído um DUAT de 356 mil hectares, sendo cerca de 183 mil hectares na província de Manica (distritos de Báruè, Manica, Mossurize, Gondola e Sussundenga) e cerca de 173 mil hectares na província da Zambézia (Ile, Mulevala e Namarrói) para a plantação de eucaliptos e pinheiros, a fim de produzir papel. Entretanto, o referido DUAT abrangeu 13.000 agregados familiares, na Zambézia, e 11.000 em Manica, que clamam pela devolução das suas parcelas.

 

Para o Director-Executivo da União Nacional de Camponeses (UNAC), um movimento de camponeses do sector familiar que luta pela participação activa no processo de desenvolvimento do país, o sector agrário tem a “grande vantagem” de não só ter identificado os problemas, mas também as respectivas soluções, as quais, porém, nunca são colocadas em prática.

 

Dos desafios que se colocam a este sector económico, segundo Luís Muchanga, está a assistência técnica aos camponeses (extensão rural) que, na sua óptica, é um dos grandes “calcanhares de Aquiles” que o país enfrenta. Seguem-se o agro-processamento e o financiamento, pois, só com recursos financeiros é que se pode produzir comida.

 

“O sector agrário sempre foi desafiante, porém, esse desafio nunca foi encarado de forma pragmática. Sempre foi encarado de forma desestruturada e, por essa razão, continuamos a ter os problemas que temos no sector. Apesar de sermos considerados um sector estratégico para o desenvolvimento, apesar de sermos considerados um sector que poderá alavancar a economia, os resultados práticos ainda estão muito longe”, disse o Director-Executivo da UNAC.

 

Alcançar a “fome zero”

 

Por seu turno, o Director-Executivo da Associação Rural de Ajuda Mútua (ORAM), que se dedica à defesa dos direitos e interesses dos camponeses, advoga que o maior desafio deste governo, no sector agrário, é transformar os pequenos agricultores a responder à necessidade da nação, a “fome zero”, que na sua óptica “é impossível de alcançar”, devido à natureza e composição deste sector, composto maioritariamente por pequenos produtores.

 

Para Abel Sainda, a “fome zero” não pode ser encarada apenas na perspestiva de produção de comida, mas também na capacidade de os cidadãos adquirirem os mesmos produtos, pois, “grande parte da população é jovem e desempregada”.

 

Acrescenta ainda que o desenvolvimento agrário não pode ser visto de forma isolada, havendo necessidade de se integrar os outros sectores, como o da energia, para se saber que mecanismos se usam para controlar os subsídios ao sector agrário porque existem; das infra-estruturas (barragens, estradas, silos); e da educação (para a transmissão do conhecimento local, de modo a preservar as práticas culturais que são sustentáveis), que na óptica deste, “os orçamentos devem entrar para agricultura”.

 

O Director-Executivo da ORAM sublinha ainda que, existindo uma meta de combater a fome no país, é necessário envolver-se também o sector das pescas, que também é essencial para a dieta alimentar.

 

Entretanto, Luís Muchanga acredita no alcance da meta “fome zero” e afirma que esta “podia ter sido alcançada nos mandatos anteriores, mas infelizmente a propaganda política está a andar a 100 e a prática a 20”.

 

“Se um camponês tivesse a capacidade de produzir para a sua subsistência e colocar um quilograma de milho ou arroz no mercado, acha que Moçambique não teria capacidade de atingir ‘Fome Zero’? Isto é possível e teríamos ultrapassado há muito tempo. A questão é que nunca fomos consonantes em relação àquilo que é a propaganda e a prática. É possível alcançarmos ‘Fome Zero’, desde que tomemos a agricultura não como uma actividade desportiva, mas que ajuda a população a alcançar a sua auto-estima”, considera Muchanga.

 

Expectativas em relação a Celso Correia

 

 

Questionado sobre as valências de Celso Correia para dirigir o sector, João Mosca respondeu: “primeiro, temos de ver o que fez no MITADER. Introduziu uma nova forma de actuação, diferente da que vinha acontecendo no país. Mostrou-se ser um ministro aberto”, disse Mosca.

 

O economista afirma que o considerado “Super Ministro” do primeiro Governo de Filipe Nyusi, enquanto titular do MITADER, foi capaz de mobilizar recursos, que permitiram a execução de alguns projectos, como o SUSTENTA e TERRA SEGURA, apesar dos seus resultados, em alguns casos, estarem abaixo das espectativas.

 

Por sua vez, Luís Muchanga afirma que a expectativa em relação ao trabalho de Celso Correia é enorme, tendo em conta o trabalho desenvolvido no MITADER, mas alerta-o a tomar a devida atenção, de que é preciso responder à agenda nacional: produção alimentar.

 

“A questão da agricultura comercial e industrial deve ser pensada em outros planos, porque se tomarmos essa como primeiro plano, continuaremos a importar comida”, considera Muchanga, que se mostra preocupado com o investimento estrangeiro neste sector.

 

“Os grandes investimentos olham para grande demanda da terra, a questão das commodities (algodão, tabaco e outras culturas), o que pode trazer problemas ao sector agrário, pois, devemos olhar para este sector na perspectiva de produção de comida e não exportação”, sublinha.

 

Abel Sainda também vê com bons olhos a nomeação de Celso Correia, mas mostra-se receoso em relação ao modelo de desenvolvimento que poderá trazer para o sector agrário. “Para mim, devia virar para o grande negócio”, defende.

 

Alocação dos 10% à produção agrícola

 

 

Relativamente à alocação dos 10% ao sector agrário, que Filipe Nyusi se comprometeu a levar a cabo, o Director-Executivo do OMR defende que o mesmo não deve ser aplicado nos gabinetes do Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural, mas na investigação e na contratação e formação de extensionistas, especialistas necessários para o desenvolvimento da agricultura no país.

 

Aliás, João Mosca defende haver necessidade de Celso Correia gerir o Fundo Nacional de Desenvolvimento Sustentável (FNDS) e o Fundo de Desenvolvimento Agrário (FDA), que estarão sob sua tutela, de forma transparente, de modo a se alcançar o propósito da sua criação. Salienta que o sector da agricultura é dos que mais financiamento recebe, pois, para além do valor canalizado pelo FDA, existe outro alocado pelo GAPI, assim como pelos bancos de investimento.

 

Quem não acredita na alocação dos 10% para a agricultura é Abel Sainda, que sublinha o facto de o compromisso ter sido assumido pelo Governo há mais de 15 anos, mas sem nunca ter sido cumprido. Aliás, frisa não estar preocupado com o volume do orçamento que vai para os sectores, mas “em saber até que ponto o objectivo definido será alcançado (fome zero). Duvido muito que a gente elimine a fome até 2024”.

 

“O problema deste país não é o produto. É o que é feito com essa pequena produção. Quantos produtores perdem o pouco por não ter condições de conservação e/ou de transporte até ao mercado? Portanto, acho uma grande utopia dizer 10% do Orçamento do Estado vai ajudar a alcançar a meta definida”, diz Abel Sainda. (Abílio Maolela)

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