Por Fernando Guipatwana
(Nota introdutória: esta carta foi entregue depois de assistir a uma jovem ser violentamente atropelada por um veículo das Forças de Defesa e Segurança. Pensei que devia suspender a publicação deste texto. Esse meu silêncio seria uma forma de indignação contra essa barbaridade. Mas depois, achei que a devia manter estas palavras até como homenagem a essa jovem (que felizmente sobreviveu) e a todas as pessoas que foram vítimas da violência da polícia. Porque esta carta é um libelo contra essa violência e contra todas as formas de violência. Para fazer parar onda de tumultos vai ser preciso que os dois adversários pensem que a responsabilidade de criar a paz não cabe apenas ao que uns e outros chamam de “inimigo”)
Senhor Engenheiro Venâncio Mondlane
Por um acaso também eu sou engenheiro. Há uns dois anos que vivo na diáspora e isso também me aproxima da sua actual condição, embora o meu amigo seja um exilado forçado. Como muita gente eu sigo as suas lives. Os seus apelos são seguidos por muita gente. Não é preciso sermos engenheiros para saber: por mais popular que um líder seja, não pode comandar sozinho um movimento político de massas. Contudo, o senhor insiste em aparecer sozinho. Esta é a sua imagem de marca: sem equipe, sem estrutura, sem organização. É assim que senhor quer, tudo bem. Mas a partir do momento que manda para a rua milhares de pessoas e faz isso sem nenhuma estrutura de base para apoiar e enquadrar esses manifestantes, o senhor sabe bem que tudo pode acontecer. A partir do momento em que se tornam reais, essas manifestações deixam de ser “suas”. E podem converter-se em qualquer outra coisa. O mais provável é que se transformem em momentos de caos e desordem. Com a polícia que temos (e cujas intervenções violentas que eu condeno em absoluto) acaba por ser inevitável que aconteçam confrontos em que são os mais jovens e os mais indefesos quem mais sofre.
Não sou ninguém para o julgar. Mas sou alguém para lhe dizer que, como cidadão, fico apreensivo que não tenha nenhuma preocupação com a segurança daqueles que o senhor comanda. É como um general que no alto do seu castelo (localizado bem longe do campo de batalha) mandasse gente comum para a frente de batalha. É um general que tem tanta crença na sua própria voz de comando que não precisa de assegurar que, no terreno, tudo corra bem com os manifestantes, com os não-manifestantes, com a cidade e com todo o país.
Na realidade, os danos colaterais das suas investidas começam já a pesar sobre as pessoas mais humildes. Quando terminarem as suas “lives” (e ninguém sabe quando irão terminar) quantos serviços, quantas empresas, quantos empregos restarão? O que restará para nós que nos queremos reerguer e reencontrarmo-nos como irmãos? Pensamos sempre que os outros têm toda a culpa. Mas vale a pena o senhor sentar-se frente a Deus e avaliar com verdade que alguma responsabilidade lhe pode ser atribuída. Essa responsabilidade está sobretudo na possibilidade de colocar um ponto final nestes dias tão sofridos e tumultuosos.
Por isso, caro engenheiro: em nome de uma solução pacífica e ordeira peço-lhe que use corretamente o poder que efetivamente o senhor detém. Utilize formas pacíficas de intervenção. Formas que tanto impacto tiveram como o uso da roupa preta, como a das panelas, como a das canções entoadas em uníssono. Mas não permita situações de desordem pública que serão sempre aproveitadas por gente mal-intencionada.
Temos todos de condenar a violência despropositada das forças de ordem e segurança. Hoje mais do que nunca. Sem que haja comparação (a intervenção da polícia representa um acto de uma instituição do Estado) há outras formas de violência que se repetiram ontem nas cidades de Maputo e Matola. Jovens voltaram a apedrejar carros, voltaram a apedrejar agentes da polícia (que são pessoas do povo), barricaram estradas, forçaram pessoas a sair das viaturas, obrigaram pessoas a empunhar cartazes. Não seria isso que o senhor desejava. Mas esses jovens descomandados gritam pelo seu nome, acreditando estar a obedecer aos seus desígnios.
Por tudo isto, meu caro engenheiro, eu peço: pense, bem, o senhor não é um cidadão comum que pode dizer o que lhe apetece na internet. O senhor é um dirigente político. A sua responsabilidade é prevenir que os seus apelos degenerem nestes diferentes tipos de violência. A ideia de paralisar as estradas é, em si mesma, uma violência. É uma enorme violência forçar o povo das periferias (que são a maioria e a mais pobre dos citadinos) a ter de ir a pé quilómetros ou mesmo a deixar de ir trabalhar.
Em qualquer lugar do mundo este convite à paralisação das vias públicas seria considerado um crime. Exatamente porque as vias são “públicas”. Não são propriedade privada sua, senhor engenheiro. Nem são propriedade dos manifestantes, por maior que seja o seu número. Por essas ruas transitam bombeiros, médicos, professores, trabalhadores, gente que simplesmente está ocupada em trabalhar para si e para as suas famílias. Pelas nossas estradas transitam pessoas que não são seus simpatizantes. E que o senhor não pode impedir de circular apenas porque não querem receber as suas ordens, não usam o seu emblema e não gritam pelo seu nome. Este país não é de quem grita mais alto. Este país é de todos.
Finalmente, um derradeiro pedido: em nome desse Moçambique que é de todos nós, compareça nas conversações com os demais parceiros políticos. Mostre que tanto como sabe falar, o senhor sabe escutar. Mostre que quer aproveitar de forma construtiva os momentos que se abrem não apenas para si, mas para todos os candidatos sem exceção. Neste momento, o senhor não é mais do que os outros três candidatos. O Chapo, o Mondlane, o Momade e o Simango estão todos ao mesmo nível: candidatos numa mesma corrida eleitoral. Dizem que a FRELIMO tem o seu Conselho Constitucional privado. Mas o senhor não parece muito diferente. O seu “Conselho Constitucional” privado já o elegeu e não são precisas mais evidências.
Por tudo isto, caro engenheiro, apresente-se à reunião com todos os outros candidatos. Exponha, lá nessa reunião, as suas condições. É isso que lhe compete fazer: expor e não impor as suas razões. Porque o Presidente da República, goste o senhor ou não goste, é a entidade que deve coordenar esse diálogo. E seria um gesto de boa vontade que muito o engradeceria se o senhor se sentasse à mesa e apresentasse propostas concretas para termos um caminho de paz e reconciliação. Porque todos nós, os moçambicanos de Norte a Sul, dentro e fora de Moçambique, todos nós queremos mudança. Mas queremos que essa mudança decorra sem medo, sem ameaças, sem violência. Neste momento, não são apenas as viaturas de Maputo que estão paradas. Todos nós estamos bloqueados numa estrada sem rumo. O senhor tem agora a sua oportunidade de mostrar a sua qualidade de homem e de dirigente. Não use mais as pessoas, à distância confortável de uma transmissão de vídeo feita sempre a solo. Quer surgir sozinho? Então, use-se a si mesmo. Ou então, faça o que se espera que um líder: sente-se e converse com os seus pares. Esse é um dever de um homem de Deus, é uma obrigação de um cidadão que tem por intenção vir a ser um chefe de estado, um chefe de estado de todos os moçambicanos.
Engenheiro Mondlane, todo o conflito se resolve com uma negociação. Foi assim que acabou a guerra civil. Não queremos esperar mais tempo, não queremos esperar mais mortes. Apresente-se na mesa de conversações. Tem condições e termos de referência? Apresente-as na mesa de conversações. Porque é lá, mais do que nas lives, que se pode medir a grandeza de um dirigente político.
Termino, partilhando uma confidência consigo: na minha juventude fui sacristão e lembro-me de o padre ter dito algo que me marcou: os salvadores do mundo arriscam-se a criar infernos. E nós, caro engenheiro, estamos no meio desse inferno. Somos, mais uma vez, capim no meio de elefantes.