Já está consumada a vontade da Frelimo de adiar as primeiras eleições distritais em 2024. Com recurso à chamada ditadura do voto, através da sua maioria qualificada, a bancada parlamentar do partido no poder chancelou, na noite de ontem, o que vinha ensaiando desde Maio de 2022.
Entretanto, está enganado quem pensa que os 178 deputados mobilizados pela Frelimo para formalizar a iniciativa tenham garantido a tranquilidade que aquela formação política necessitava para “passear” a sua classe.
A V Sessão Extraordinária da Assembleia da República estava agendada para arrancar às 08h30min, mas só arrancou às 11:00h (com 02h30min de atraso), devido à falta de consenso entre as chefias das bancadas em torno do Projecto submetido pela Frelimo. Porém, nas Sessões Plenárias, os deputados levaram quase uma hora a discutir questões prévias, todas ligadas ao projecto de revisão da Constituição da República.
O primeiro a pedir a palavra foi o deputado Ezequiel Gussi, da bancada parlamentar da Renamo, que interpelou a Presidente do Parlamento, Esperança Bias, para questionar com que base a dita “casa do povo” ia rever a Constituição da República sem que tenha ocorrido um referendo.
Ezequiel Gussi fundamentou a sua questão com base no artigo 300 da Constituição da República (limites materiais) que, no seu nº 1, alínea j), preconiza que “as leis de revisão constitucional têm de respeitar a autonomia dos órgãos de governação descentralizada provincial, distrital e das autarquias locais”, sendo que, no nº 2 refere que “as alterações das matérias constantes do número 1 são obrigatoriamente sujeitas a referendo”.
“Não tendo sido observada esta prescrição constitucional, ou seja, não tendo havido referendo, onde a casa encontra fundamento jurídico-constitucional para levar a cabo esta revisão”, questionou, sublinhando que, para além de ter havido violação dos limites materiais, também houve violação dos limites temporais.
A resposta não veio da Presidente do Parlamento, mas do Presidente da Comissão dos Assuntos Constitucionais, Direitos Humanos e de Legalidade, António Boene. O jurista disse não ter havido qualquer violação dos limites temporais e nem materiais. Explicou que a actual Constituição entrou em vigor no dia 12 de Junho de 2018, sendo que completava cinco anos (período previsto para se realizar uma nova revisão) a 12 de Junho de 2023.
“Hoje estamos a 03 de Agosto e já passaram mais de cinco anos e pode, muito bem, ser revista a Constituição”, disse António Boene, sublinhando que também não houve violação dos limites materiais, pois, “este Projecto de revisão em nenhum momento ataca autonomia da governação descentralizada distrital. Apenas se vai cingir sobre as transições transitórias da Constituição”.
Não satisfeito com a resposta dada por António Boene, Ezequiel Gussi retorquiu, citando o nº 2 do artigo 299 da Constituição da República, que estabelece: “as propostas de alteração [da Constituição] devem ser depositadas na Assembleia da República até 90 dias antes do início do debate”.
Para o deputado da Renamo, os 90 dias estabelecidos pelo legislador contam a partir da data em que a Constituição completa cinco anos após a última revisão, pelo que, no seu entender, este limite temporal não foi respeitado.
Disse igualmente que a alínea e) do nº 1 do artigo 300 da Constituição da República também foi violada, pois, põe-se em causa o respeito pelo sufrágio universal, directo, secreto, pessoal, igual e periódico na designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania das províncias e do poder local.
“Mexer este periódico [artigo 311, que marca as eleições distritais para o ano de 2024], que está subjacente e patente no artigo 300, alínea e), implica violar esta cláusula que vem fixada no artigo 300 da Constituição”, defendeu.
Para António Boene, os 90 dias estabelecidos na Constituição são referentes à data da deposição do Projecto e não à data em que a Constituição completou cinco anos após a última revisão. Disse ainda ser uma prática na Assembleia da República adiar-se escrutínios, citando o caso das Eleições Provinciais, que estavam previstas para 2007 e que foram adiadas para 2009, pelo que não se está a violar os limites materiais previstos para a revisão da lei fundamental.
Sem intervir no debate dos pontos prévios, o Movimento Democrático de Moçambique (MDM), na voz do deputado Elias Impuiri, disse, durante o debate do Projecto, que as eleições distritais deviam ser adiadas por referendo e não por imposição da Frelimo.
“A ausência de um referendo para legitimidade deste acto é um sinal claro e inequívoco de que esta gente que governa o país nunca esteve satisfeita com esta Constituição e, por isso, mesmo, em 2016, rejeitaram a discussão e aprovação do projecto de regime orgânico do referendo, proposto pelo MDM e hoje entendemos quais eram as intenções”, atirou Impuiri.
Refira-se que o Projecto de Revisão Pontual da Constituição da República foi aprovado, em definitivo (na especialidade), por volta das 19h45min, depois de ter passado na generalidade por voltas das 15:00h.
A votação, sublinhe-se, foi ordinária, isto é, com recuso ao voto aberto, contra o voto fechado que era defendido pela oposição. Aliás, a Presidente da Assembleia da República teve de solicitar 15 minutos de intervalo para se inteirar das formalidades legais da votação para revisão da lei fundamental. (A. Maolela)