Um estudo publicado semana finda pelo Observatório do Meio Rural (OMR), uma organização da sociedade civil, defende que a “falta de emprego e as necessidades económicas dos mais jovens” continuam a ser apontadas como a principal razão para a incessante adesão ao grupo terrorista, que semeia luto e dor na província de Cabo Delgado desde Outubro de 2017.
Intitulado “Ingredientes para uma revolta juvenil – pobreza, sociedade de consumo e expectativas frustradas”, o estudo descreve as dificuldades de integração sócio-económica da juventude moçambicana, em geral, e da província de Cabo Delgado, em específico, explicando que a vulnerabilidade no acesso a serviços públicos de qualidade a coloca numa situação de desvantagem competitiva perante quadros oriundos de fora da região, num contexto de penetração agressiva do capital.
Segundo o OMR, com o aumento da violência na província de Cabo Delgado, a expressão “entrar no mato” passou a ser utilizada pelos jovens para designar a adesão ao grupo de insurgentes, alegando quatro factores: a falta de emprego e situação de vulnerabilidade; a descoberta de recursos naturais e instigação (inter)nacional; a revolta contra o Estado e contra o oportunismo de funcionários públicos; e distúrbios mentais e agressividade.
Com base em relatos colhidos junto de jovens oriundos de seis distritos da província de Cabo Delgado, o OMR defende que a chegada do investimento internacional (nos projectos de extracção do gás e de pedras preciosas) inflacionou as expectativas sociais, facto que não se traduziu num crescimento proporcional do número de empregos, maioritariamente retidos fora do país ou nos grandes centros urbanos de Moçambique.
“Esta situação afectou dezenas de milhares de jovens, num cenário em que a agricultura não constitui uma alternativa viável, deixando inúmeros indivíduos desocupados ou empurrando-os para actividades desviantes. No terreno, desenvolve-se um sentimento de ameaça do exterior e de desprotecção do Estado, sobretudo em relação à falta de emprego, apresentado como uma das principais fontes de descontentamento dos jovens da província”, refere o artigo assinado pelos académicos João Feijó, Jerry Maquenzi e Aleia Rachide Agy.
De acordo com os pesquisadores, o sentimento de discriminação é extensivo aos melhores rendimentos. Referem que os entrevistados enfatizaram que os empregos melhor remunerados são ocupados pelos “vientes (pessoas não naturais de Cabo Delgado)”, com destaque para pessoas provenientes do estrangeiro e do sul do país. Contudo, o estudo destaca haver discursos de desigualdade de acesso ao emprego entre as próprias populações de Cabo Delgado, com os macondes a sentirem-se injustiçados.
“As possibilidades de geração de rendimentos agravaram-se com o conflito armado, que afectou profundamente a actividade agrícola e de extracção de madeira, a pesca e o comércio entre a costa e o hinterland, assim como actividades de transporte, pequena hotelaria e restauração. A violência armada traduziu-se no abandono ou destruição dos meios de produção (lojas, oficinas, ferramentas, transportes, etc.), assim como no aumento da desconfiança, oportunismo e extorsão de bens pelos membros das Forças de Defesa e Segurança”, sublinha a fonte.
O OMR, refira-se, recolheu discursos de jovens sobre os seus problemas e vivências, conferindo voz a quem não dispõe de muitos espaços de participação. Assim, foram entrevistados 82 indivíduos residentes na cidade de Pemba e nos distritos de Montepuez, Nangade, Macomia, Mocímboa da Praia e Muidumbe, regiões afectadas pelos ataques terroristas, por um lado, e marcadas por grande incerteza, por outro.
Os pesquisadores dizem ter entrevistado jovens residentes em zonas rurais (31) e urbanas (51); homens (52) e mulheres (30); sendo que a maioria apresenta idades compreendidas entre 21 e 30 anos (48) e com um nível de escolaridade relativamente superior à média da província: sete são analfabetos; 29 têm a 7ª classe; 11 a 10ª classe; 20 a 12ª classe; e oito frequentaram ou concluíram o nível superior. As entrevistas foram realizadas em 2020 por jovens residentes nos respectivos distritos e falantes de línguas locais, a quem coube a tarefa de identificar jovens para entrevistar.
Educação precária
Com o objectivo de compreender as dificuldades de integração sócio-económica da juventude da província de Cabo Delgado, em particular no acesso à educação; à saúde; ao mercado de trabalho e ao emprego; às possibilidades de consumo; e de acesso à habitação, energia e transporte, o estudo aponta as fragilidades existentes nesses sectores e que podem ter criado terreno fértil para a eclosão e expansão da insurgência.
No caso da educação, refere que, até 2019, em Cabo Delgado registava-se um elevado défice de carteiras em distritos como Montepuez (3.898), Nangade (1.217) e Cidade de Pemba (1.272). O rácio de aluno por professor no ensino primário atingia, em alguns distritos, 74 alunos por professor, chegando a 84 alunos por professor no ensino secundário.
“O crescimento quantitativo do número de matrículas escolares foi acompanhado por graves problemas de qualidade do ensino, (…) com professores desmotivados e com dificuldades ao nível da escrita, leitura, do cálculo matemático, planeamento e execução pedagógica”, sublinha a pesquisa.
Devido ao reduzido investimento no ensino público e como forma de manutenção da identidade cultural, defende o estudo, a população da costa encontrou nas madraças uma alternativa à educação formal. Diz ainda que, apesar de se ter alargado a oferta educativa do nível primário e secundário por muitas zonas da costa, grande parte dos professores, sobretudo do nível secundário, não são oriundos dos grupos etnolinguísticos da costa, retirando aos jovens locais modelos de referência que os incentivem a investir na educação.
Já na saúde, a organização diz persistir a insuficiência de quadros médicos, de equipamentos para análises clínicas e de medicamentos, embora tenha sido alargada a rede sanitária. Também reporta problemas de profissionalismo, laxismo, cobranças ilícitas, falta de sensibilidade e indelicadeza do quadro médico para com os pacientes, traduzidos na morosidade do atendimento. Destaca igualmente a falta de recursos humanos (médicos, enfermeiros e técnicos de análises clínicas) e equipamento hospitalar e medicamentos.
No que toca ao acesso à terra e habitação, o OMR refere que os entrevistados das zonas urbanas apresentaram as maiores dificuldades, com destaque para a densificação populacional e o desenvolvimento de um mercado de terras, com preços particularmente inflacionados, sobretudo na sequência do grande investimento estrangeiro.
Refira-se que esta não é a primeira vez que pesquisas apontam as desigualdades sociais como sendo o principal motivo da eclosão do terrorismo no país. Porém, alguns indicam as clivagens no seio da religião islâmica, como estando na origem da violência extrema na província de Cabo Delgado. (Carta)