Desde cedo, as eleições constituíram a premissa base de debate e estudos em ciência política. O “acto do voto” foi tido como fundamental para o exercício do poder através da submissão e da dominação. Entre outras variáveis, a incerteza constitui elemento fundamental para o estabelecimento de um “jogo eleitoral” em que os concorrentes possam competir em iguais circunstâncias, mesmo que tal não seja de todo desejável ou alcançável quando se pretende buscar o poder. Como aponta Przeworski (1984: 84), as posições assumidas pelos distintos actores políticos não podem determinar “os resultados do processo político”, de tal sorte que “numa democracia ninguém pode ter a certeza de que seus interesses serão vencedores em última instância”. Em uma democracia, portanto, “todos devem submeter seus interesses à competição e à incerteza”.
Conscientes da nossa própria limitação, somos susceptíveis de omitir outras dimensões de análise. Assim, a partir deste comentário pretendemos sugerir alguma explicação em torno do recente processo eleitoral, exercício a ser feito em dois ângulos que devem ser lidos como complementares:
Numa eleição podem existir vários actores, sendo que os primeiros e fundamentais são os que directamente participam na qualidade de eleitos e eleitores. Nestes podemos adicionar os órgãos de administração e gestão eleitoral (OAGE: STAE & CNE), os quais são fundamentais para a organização de todo o processo, que em termos de ciclo não se circunscreve ao momento e dia da eleição em si. Do que sobre as eleições de 15 de Outubro se pode extrair, verificou-se o que chamamos de “confiança nua” entre os três actores acima mencionados: OAGE, eleitores e eleitos, estes últimos identificados como candidatos e partidos políticos. Notou-se e continua a registar-se tamanha insegurança sobre o que cada actor deve fazer para garantir a incerteza eleitoral (o debate em torno dos 300 metros foi disso um exemplo). Enquanto os eleitores depositam pouca esperança em quem votam, os eleitos pouca ou nenhuma confiança encontram em quem deve organizar o processo. Os partidos não conseguem cumprir a função de limitar as escolhas do eleitorado, deixando-os assim numa situação de total e completa discotecagem no mercado eleitoral.
Embora não se conheçam os dados da participação eleitoral na sua globalidade, podemos avançar com a hipótese segundo a qual o crescente descrédito que existe entre os eleitores e eleitos deve-se ao vazio de propostas que se verifica nos políticos na sua globalidade, sendo que os moçambicanos não são excepção. De forma cada vez crescente, emergem “novas” formas de participação política que já não encontram acomodação na “política usual” que é exercida dentro dos partidos políticos tal e qual conhecemos e por meio do voto.
No que toca aos OAGE excluímos desta análise as propostas que se colocam sobre a reforma que se deve exercer, pois pensamos que não será possível encontrar modelo adequado se antes não soubermos o que realmente se busca numa eleição: a incerteza sobre o(s) vencedor(es). Pensamos que nenhum modelo será eficaz se não conseguir garantir que os vencedores não sejam conhecidos antes da realização do próprio escrutínio. Entendemos ainda que os OAGE não são um corpo estranho ao processo em si, eles emergem e se constituem a partir do próprio sistema, sendo que a sua análise deve ser vista como um todo holístico. In fine, não nos parece que o debate central se coloque ao nível do actual modelo dos OAGE.
Para explicar a nossa segunda hipótese nos vamos apoiar aos estudos feitos no campo da administração pública quando abordamos as possíveis razões da resistência à mudança dentro de uma organização. Assim, podemos sublinhar que o processo de mudança envolve a combinação de vários factores, sejam internos ou externos, decorrendo de forma individual ou colectiva nas organizações, o que vai desde alterações na tecnologia, implantação de programas de qualidade, mudanças na gestão, fusão, alterações nas leis por meio do governo, alterações de máquinas, o que exige adaptações, mudanças de atitude e de comportamentos por parte dos funcionários tanto da base como do topo. As fontes de resistência individuais à mudança residem nas características humanas básicas, como percepção, personalidades e necessidades.
A resistência à mudança começa sob certas condições: falta de clareza (os indivíduos reagem quando recebem uma informação incompleta sobre modificações que as afectarão); percepções diferentes sobre o motivo da mudança (a tendência é ver apenas aquilo que se espera ver); pressão de forças contraditórias (surge na comunicação entre os líderes e os gerentes quando o funcionário é pressionado a incorporar novos padrões em pouco tempo e estes novos padrões não estão suficientemente claros); hábito, segurança, factores económicos (medo de redução dos rendimentos); medo do desconhecido e processamento selectivo de informação (os indivíduos passam a processar selectivamente as informações para manter suas percepções intactas, elas ouvem só o que querem ouvir).
Colocadas as premissas acima, podemos tomar os partidos e candidatos concorrentes como organizações onde os eleitores são seus funcionários. Nessa mesma organização, antes das eleições gerais de 2019 o gestor chamava-se Frelimo (e seu candidato presidencial), sendo que a cada cinco anos se deve renovar o mandato, e dessa vez chegou-nos como proposta os partidos Renamo, MDM e AMSUI (e seus candidatos). Sobre as propostas pensamos ser necessário colocar as seguintes questões, as quais não temos respostas: estariam os funcionários (eleitores) dispostos a exercer a mudança? que garantias eram colocadas para que os funcionários (eleitores) pudessem exercer tal mudança? com que intensidade e clareza os funcionários (eleitores) receberam informação capaz de os levar a exercer alguma mudança? seria, portanto, a mudança desejável ou oportuna?
Concluímos que a presente eleição foi uma oportunidade que permitiu levantar mais questões do que respostas que em momento oportuno merecerão estudos aprofundados. Por hora levanta-se a necessidade de repensarmos a estratégia de como exercemos a actividade política em Moçambique, a mesma que não deve se circunscrever apenas ao momento eleitoral per si. Com o advento da multiplicação de espaços e práticas de participação política (para além do voto), exige-se maior dinamismo aos actores da cena política, sendo que a propaganda eleitoral é chamada como fundamental para além dos quarenta e três dias de campanha eleitoral oficialmente estabelecidos no país, sob pena de esperar colher um determinado feedback a partir de uma demanda incorrecta.
Para começar...
O presente comentário constitui a nossa percepção em torno do que os partidos acima mencionados dispõem nos seus manifestos políticos para os jovens moçambicanos. A nossa leitura baseia-se no que está escrito em cada documento analisado, não sendo assim nenhum estudo aprofundado. Por questões de equilíbrio metodológico, escolhemos os três partidos pelo facto destes estarem a concorrer para as eleições presidenciais, mesmo que não nos tenha chegado o manifesto político do partido AMUSI. Num cenário próximo, ficamos com a tarefa de fazer uma leitura que agregue somente os partidos que concorrem para a eleição legislativa, e sem assento parlamentar.
Entendemos ser importante esse exercício dado o facto de recorrentemente se colocar o debate em torno da(s) juventude(s) como central no discurso político nacional, mesmo que em dado momento da história esses mesmos jovens tivessem sido chamados a “seiva da nação” (Samora Machel, 1977), e noutro foram tidos como potenciais “vendedores da pátria” (Hama Thai, 2008). Aliás, os três partidos que serão alvo de análise, demostram o seu condão político-juvenil através da criação da Organização da Juventude Moçambicana (OJM) para o caso da Frelimo, e das Ligas Juvenis para os casos do MDM e da Renamo.
Importa esclarecer que a colocação do termo juventude no plural representa, para nós, a dúvida teórica quando procuramos buscar um consenso. De facto, não conseguimos definir o que seria juventude(s), sendo o mesmo polissémico e socialmente ambíguo. Pensamos ser problemático falar de juventude moçambicana, razão pela qual propomos o seu uso no plural por considerar a multiplicidade na sua concepção sócio-cultural, biológica, política e económica.
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FRELIMO
Num total de 100 páginas, é na secção 3.1.4 (Título: Juventude – página 47) que o partido Frelimo trata da(s) juventude(s), na qual afirma: “A FRELIMO reconhece o dinamismo, perseverança, e espírito de liderança que sempre caracterizaram a juventude em todos os processos históricos que culminaram com transformações políticas e sociais profundas no País. O compromisso da FRELIMO em relação à empregabilidade e ao trabalho, a habitação, a promoção de pequenas e médias iniciativas empresariais, o aumento da produção e produtividade, a promoção da educação e a formação profissional tem como principal grupo alvo os jovens Moçambicanos.
Assim, a FRELIMO vai:
“Promover o associativismo juvenil, como um mecanismo de diálogo com as lideranças e de acesso às várias oportunidades de desenvolvimento; Promover iniciativas que contribuam para o fortalecimento do associativismo juvenil, com destaque para as iniciativas colectivas empreendedoras, para tornar os jovens actores cada vez mais preponderantes no combate a pobreza; Desenvolver programas e acções que contribuam para a materialização da Política da Juventude e demais instrumentos orientadores para o desenvolvimento da Juventude; Facilitar o acesso dos jovens à terra infra-estruturada, habitação condigna com crédito em condições concessionais de prazo e juro, bem como aos recursos de que o País dispõe; Promover medidas que incentivem as iniciativas dos jovens, que concorram para o fomento de actividades geradoras; de rendimento e, para o desenvolvimento da economia nacional do País; Estimular a criação de iniciativas que incentivem a participação dos jovens nos processos de planificação e implementação de programas de desenvolvimento; Estimular nos jovens o respeito pelos direitos humanos, valores morais e éticos, o espírito patriótico e o sentido de justiça social e de género; Promover a saúde sexual e reprodutiva dos adolescentes e jovens e hábitos de vida saudável”.
Pela contagem feita, a palavra JUVENTUDE surge 5 vezes no manifesto do partido Frelimo.
MDM
54 páginas prefazem o manifesto do MDM, sendo que destas o assunto sobre a(s) juventude(s) surge na 46a página (Título: Juventude, secção 4.11), na qual é referido que: “O MDM vê na Juventude a grande esperança de um Moçambique novo e para todos. A Juventude será o eixo inspirador e condutor da acção governativa do MDM. A Juventude será a prioridade do governo do MDM. Para o fortalecimento da juventude moçambicana, o MDM compromete-se, como sua grande prioridade para este grupo social, criar Postos de trabalho, Serviço de Acção Social Escolar e destinar parte do PIB para financiar o Programa Nacional de Habitação para a juventude. A participação e apropriação do processo do desenvolvimento por parte dos jovens vai merecer do Governo o maior empenho, como forma de reforçar e aprofundar a participação dos jovens e, como via privilegiada de assegurar patamares mais elevados de desenvolvimento económico e social”.
Para tal o governo do MDM irá ainda, entre outras coisas:
“Promover acções que estimulem o espírito empreendedor nos jovens de modo a envolverem-se activamente nos processos de desenvolvimento do país, adquirindo e aplicando habilidades que os tornem cidadãos produtivos e desenvolvam as capacidades de gestão e liderança; x Estimular através de uma educação sólida e continuada, o desenvolvimento de uma geração mais qualificada, melhor preparada, mais solidária e mais participativa; x Criar o Serviço de Acção Social Escolar em todas as Instituições Públicas e ou Privadas do Ensino Superior de modo a assegurar a igualdade de acesso ao Ensino superior por parte dos estudantes carenciados oferecendo maiores oportunidades de bolsas de Estudos; x Administrar durante o serviço militar cursos profissionalizantes nos ramos militares e outros de modo a conferir aos jovens um sentido de maior oportunidade e utilidade, tanto na iniciação de formação profissional como em apoios de natureza social e outros da sua vida particular; x Fortalecer a Juventude, implementando o Sistema Nacional de Políticas para a Juventude. Criando condições para uma maior autonomia e independência ideológica em estrito respeito e cumprimento da Constituição da República; Ampliar e consolidar as políticas de juventude, articulando em estrito cumprimento com o definido na Constituição da República; Introduzir programas de divulgação da importância de se frequentar o ensino médio, técnico profissional e de artes e ofícios (...)”.
No manifesto do MDM, a palavra JUVENTUDE foi escrita 13 vezes.
RENAMO
São 44 páginas que compõem o manifesto do partido Renamo, e do mesmo a palavra JUVENTUDE foi escrita 4 vezes. Na página 23, (Título: A Juventude, secção 4.1.5), a Renamo diz que: “A intervenção das políticas públicas, no âmbito da juventude, deve ter como objectivos a promoção do emprego e a inclusão social dos jovens”.
Mais adiante, na página 24, o partido adianta que: “O Governo da RENAMO vai:
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O nosso comentário geral:
Colocados os três partidos, encontramos entre semelhanças, alguma ambiguidade do que chamamos no início deste comentário juventude(s) moçambicana(s). A forma como todos os partidos tratam os jovens – a partir de um conjunto com necessidades iguais – nos remete ao pensamento segundo o qual não há categorias sociais, culturais, políticas ou mesmo económicas do ser jovem em Moçambique, o que consideramos metologicamente errôneo.
Por um lado, dos documentos lidos apenas os partidos Frelimo e MDM apresentam a data de concepção ou aprovação dos respectivos manifestos políticos, sendo Julho para Frelimo e Maio para MDM.
Por outro lado, o elencar de problemas identificados por estes partidos como os que afligem os jovens, pode ser visto como uma estratégia que oculta, em grande medida, a potencialidade que se pretende encontrar nos jovens enquanto auto-didactas e donos do seu próprio caminho. Ou seja, os três manifestos são, na sua essência, um conjunto de soluções para problemas que consideram ser dos jovens, mesmo que em nenhum momento se explique como conseguiram determinar entre problema e não problema.
Contudo, notamos diferença no cuidado e uso dos termos para referir a intenção de cada partido, sendo que nesse quesito os partidos Frelimo e MDM surgem a usar de forma variada alguns termos que nos fazem entender que existe alguma intenção em colocar nos jovens a responsabilidade destes tomarem as rédeas do seu próprio desenvolvimento.
A Renamo apresenta, como vimos acima, quatro destaques nos quais vai intervir no tocante aos jovens, o que em comparação com os partidos Frelimo (oito promessas) e MDM (dezoito promessas) há uma larga diferença da quantidade textual e explicação das acções que se pretendem realizar, mesmo entendendo que a análise vai para além da quantidade das promessas.
Constatamos ainda que dos três partidos, apenas a Frelimo intercala as suas acções com fotografias, sendo que na secção da(s) juventude(s) fê-lo com uma foto que, pelo que se pode entender, representa duas jovens.
Mais ainda, entendemos que tornou-se recorrente a colocação do emprego e da habitação como centrais e necessários “problemas” a resolver quando se fala dos jovens. Talvez sim, mas talvez não. Aliás, não nos parece que estes dois elementos devam ser tratados de forma universal para a(s) juventude(s) em Moçambique. Não consideramos que esses sejam os “problemas primários” dos jovens em Moçambique, pois pensamos que não existe clareza na identificação de tais “problemas” numa dimensão de género, idade ou mesmo situação social.
Por fim, entendemos que continua polissémico caracterizar os jovens a partir de uma perspectiva biológica, ou por outra, faixa etária (18 aos 35 anos, por exemplo), sobretudo num contexto regional, continental ou mesmo mundial em que não existe consensos sobre a fórmula baseada na faixa etária.
*Os manifestos foram de acesso electrónico, sendo que copiamos taxactivamente o que cada partido político refere na secção sobre a(s) juventude(s), com excepção do partido do MDM que por opção tivemos que fazer um recorte na segunda página, dado o facto de se apresentar como demasiado extenso.
Ver os manifestos analisados em https://cipeleicoes.org/documentos/
Em 2017 li um livro que gostava de partilhar, resumidamente, uma reflexão em torno do mesmo, através de alguns questionamentos no que concerne ao recente debate relativo aos números do recenseamento eleitoral.
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Morten Jerven é pesquisador e em 2013 escreveu um livro que se intitula ''Poor numbers: how we are misled by african development statistics and what to do about it'' [tradução literal: Números pobres: como é que somos enganados pelas estatísticas do desenvolvimento em África, e o que fazer sobre isso], fruto de um trabalho etnográfico nos centros de produção estatística de Gana, Nigéria, Uganda, Kenya, Tanzânia, Zâmbia e Malawi, de 2007 até 2010.
No mesmo, o autor procura discutir a questão segundo a qual como é que a partir da produção estatística a paisagem económica, demográfica, social e até política sobre o continente africano tem sido de forma constante manipulada a partir da produção de números que não reflectem em nada o ''real''.
Ao mesmo que se questiona sobre os números, o autor refere que em algumas vezes os dados são usados para reforçar uma reivindicação, e noutras, são o ponto de partida para definir um problema. Para ele, se as estatísticas de rendimento e crescimento em África não significam o ''real'', uma grande parte da análise de desenvolvimento e objectivos de política estarão igualmente sem sentido.
De forma resumida, como resultado, o autor mostra que os recursos escassos que o continente dispõe são consequentemente mal aplicados, pois as políticas de desenvolvimentos não fornecem os benefícios esperados. Por conseguinte, os doadores não têm uma noção precisa do impacto da ajuda que fornecem.
Noutro avanço do livro, Jerven se questiona mesmo se o continente africano é uma realidade distante do que se produz em termos de estatística sobre o desenvolvimento, em comparação com demais países, sobretudo os chamos ''desenvolvidos''.
O livro deste autor surge muitos anos depois de um outro intitulado ''How to Lie with Statistics'' [tradução literal: Como mentir com as estatísticas], da autoria de Darrell Huff, publicado em 1954 – sobre introdução geral ao estudo da estatística. Nele, de forma cómica, Huff descreve erros de interpretação estatística e como os mesmos podem criar conclusões incorretas.
Mas porquê tudo isto?
O introito acima surge não como resposta ao debate em torno do ''dono dos números'' de Gaza, mas pretende colocar para reflexão que a problemática da produção estatística não é um debate recente.
Os números são uma produção humana, mesmo que o seu tratamento obedeça ao comando técnico e programático, a sua reflexão não escapa ao que o manipulador comandou para ser feito.
Nenhuma estimativa ou equação deve ou pode ser tomada como exacta na combinação dos números. Aliás, a estatística social não é nada mais que a combinação desses mesmos números e a leitura quotidiana da realidade que colectamos para posterior tratamento técnico.
Por maior defesa que o INE ou o STAE/CNE estejam hoje a fazer, nada mais será que defender os seus ''poor numbers'', produzidos sob lentes que as suas entidades consideram como correcto ou não. Podemos discutir a metodologia ou os ''softwares'' utilizados, mas apenas será isso e nada a mais. Pensamos que não nos deve assustar o que está a acontecer entre o INE e o STAE/CNE. Aliás, pelo contrário, é para nós uma oportunidade de se discutir o modelo menos problemático (não falamos de ideal) de produção das nossas estatísticas demográficas e eleitorais.
Alargando para um outro campo, no passado dia 16 de Julho, o Professor António Francisco (IESE) alertara que ‘’enquanto nós não tivermos estatísticas vitais, das pessoas que nascem e das pessoas que morrem, vamos depender sempre do Censo e ninguém consegue dizer cientificamente se foi de facto completamente correcto, pois embora exista a taxa de omissão nós não temos nenhuma referência’’. Este pronunciamento surge na esteira das declarações do Secretário Permanente do Ministério da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos que revelou que o Governo não sabe quantos moçambicanos nasceram e morreram durante o quinquénio prestes a terminar.
No que as eleições dizem respeito, é possível constatar, tal como apontam Perrot et al. (2016), que desde os anos 2000 os processos eleitorais em África tornaram-se mais complexos com a introdução de novas tecnologias na organização da votação, sua supervisão e a contagem de votos.
As políticas de transparência e modernidade são agora incorporadas por objectos extremamente sofisticados: registo biométrico de eleitores; sistema paralelo de recontagem; impressão digital; máquinas de votação; localização da estação de voto móvel – todos dispositivos que devem garantir veracidade da informação sobre o eleitor e a eleição, a confiabilidade da contagem ou contra-contagem, ou mesmo a sinceridade do voto. Contudo, nem sempre essa “materialidade do voto’’ é acompanhada com a devida preparação para a sua plena implementação, dado ao factor transpositivo de uma realidade distinta do contexto.
*In fine, não queremos com isto afirmar que hoje devemos desacreditar o trabalho que ultrapassa fronteiras nacionais já realizado pelo INE ou ainda pelo STAE/CNE, mas não nos escusamos de dizer que abre-se aqui uma janela de discussão que pode nos ajudar a responder a questão seguinte: com que números se vai desenhar Moçambique?
Com ou sem resposta, terminamos com a citação de Rex Stout (s/d): “Existem dois tipos de estatísticas: as que você lê e as que você faz.’’
Na literatura sobre o que chamamos de “democracia” há um (antigo e divergente) debate sobre o que este termo representa, sobretudo, num momento em que nota-se algum descrédito sobre a “política formal”, que era vista até antes da eclosão de “novas” formas de participação política galvanizadas pelas redes sociais da Internet, em coexistência com a exercida por instituições como partidos políticos e sindicatos, sendo que a face mais marcante revela-se pelos baixos níveis de participação em eleições e consequente elevar das abstenções (Dahlgren, 2009; Van Reybrouck, 2016). Igualmente, regista-se falta de consenso sobre que critérios usar para classificar se um determinado país é ou não democrático. Como forma de minimizar este facto, surgiram termos classificatórios como “democracias eleitorais” – que designa todos os países que, a partir da realização de eleições regulares, julgam-se na qualidade de outorgar-se o nome de “democráticos” (Hermet, 1997).
No entanto, sem alongar-me num “bula-bula” meramente teórico-conceptual, quero aqui partilhar por que razões penso ser problemática, mas, ao mesmo tempo, oportuna a última intervenção da CNE.
Como nota de rodapé, cabe dizer que um dos maiores empecilhos sobre a gestão e administração das eleições no mundo prende-se justamente com a logística e transparência das contas. Aliás, num passado recente a França viveu um escândalo que envolvia o então Presidente da República, Nicolas Sarkozy, que fora acusado de ter recebido dinheiro ilícito por parte do Governo Líbio para sustentar a sua campanha eleitoral em 2007. Nos Estados Unidos, país tido como exemplo de “democracia e transparência”, o debate não foi diferente sobre as eleições de 2016 que elegeram Donald Trump como Presidente. Ainda ontem (17) lia uma nota que dava conta da investigação das finanças usadas durante as eleições de 2018 no Brasil.
Registamos, igualmente, que um pouco por vários países de África a questão das finanças em eleições é recorrentemente colocada, sendo que Moçambique não seria excepção (Gazibo e Thiriot, 2009; IDEA, 2014). Note-se, ainda, que a forma como os nossos partidos financiam as suas campanhas em tempo de eleições revela-se problemática, dado que existe um total “deixa andar” sobre a fonte dos recursos, o que pode revelar uma total desigualdade de concorrência quando existem aqueles que possuem maior musculatura financeira que os outros, sobretudo, quando recorre-se ao ‘‘political settlement’’(Weimer, B. et al, 2012) como forma de sobrevivência, o que, em última instância, abre espaço para recorrência a formas pouco claras de financiamento. Recordo que no climax das eleições gerais de 2014, o Jornal Savana escrevera no seu editorial o seguinte: “(...) a profusão de oferendas, a pretexto de caridade e militância, decorre da percepção dos doadores de que uma oferta a um partido e seu candidato com potencial de vencer as eleições é meio caminho andado para um futuro menos espinhoso em termos de acesso a negócios’’.
Não há concordância do ponto de vista teórico sobre qual seria o melhor modelo para o financiamento em eleições, mas penso ser urgente que se comece a discutir estas questões com mais acuidade e com estudos aprofundados para dar-nos melhor interpretação sobre os bastidores do financiamento dos partidos políticos em Moçambique, mesmo reconhecendo que, entre as eleições autárquicas e gerais, existam modalidades diferentes, onde numa exige-se o auto-financiamento e noutro existe co-participação do Estado para a realização da campanha eleitoral.
Voltando ao título que faz jus para esse comentário, levanto a questão da transparência por dois elementos interligados entre si:
O primeiro elemento é facto de não haver clareza entre o que foi dito em Setembro do ano passado em sede do Conselho de Ministros e o que viria a ser alterado pelas declarações do Ministro da Economia e Finanças, Adriano Maleiane, em Novembro do mesmo ano. Sucede que no dia 11 de Setembro de 2018, o porta-voz da 29ª Sessão Ordinária do Conselho de Ministros, Augusto Fernando, disse à imprensa que as eleições gerais de 2019 estavam orçadas em 6.6 biliões de meticais, dos quais foram avalizados 6.5 biliões de meticais que constam do Orçamento do Estado. Porém, como veio a ser confirmado pelo porta-voz da CNE, Paulo Cuinica, os números não seguramente esses, tendo praticamente multiplicado por dois o valor inicialmente divulgado. Penso, salvo melhor explicação, que torna-se urgente e oportuna a clarificação das contas sobre o processo financeiro que vai conduzir as eleições do presente ano, pois ficou-se com a impressão de se ter inscrito um valor no Orçamento, sem a devida explicação que para além daquele haveria necessidade de um acréscimo a ser mobilizado em outras fontes de financiamento. Aliás, num momento em que somos vistos como leprosos no recebimento de empréstimos e/ou apoios pela ‘’mão externa’’, seria oportuno a lisura do processo em torno das sextas eleições gerais no país.
Segundo, penso que essa é uma oportunidade para não só sabermos que a CNE está sem verbas suficientes para as eleições, mas igualmente para, de uma vez por todas, conhecermos as contas daquela entidade (desde as primeiras eleições). Sucede, pois, que passados mais de 20 anos após as ‘’eleições fundadoras’’ em Moçambique (1994), nada sabemos ao detalhe sobre as contas daquela que é a principal entidade da gestão e administração de eleições em Moçambique. A revelação dos gastos em forma de relatórios para consulta pública por parte da CNE, não só seria um acto que promoveria a transparência e monitoria eleitorais, mas também daria exemplo para os partidos políticos que, até que se prove o contrário, a justificação ou demostração dos gastos em momentos eleitorais por estes realizados se não é deficitária é mesmo inexistente.
Referências
Dahlgren, P. (2009) Media and Political engagement. Citizens. Communication and Democracy. Cambridge: Cambridge University Press.
Falguera, E. et al. (2014). Funding of Political Parties and Election Campaigns: A Handbook on Political Finance. IDEA.
Gazibo, M., e Thiriot, C. (2009). Le politique en Afrique. État des débats et pistes de recherche. Karthala. Paris.
Hermet, G. (1997). De la démocratie électorale à la démocratie sociale. Paris: Flammarion (programme ReLIRE).
Jornal Observador (08 de Novembro 2018). Eleições gerais do próximo ano em Moçambique vão custar 214 milhões de euros.
Jornal Observador (11 de Setembro 2018). Eleições gerais de 2019 em Moçambique estão orçadas em 92 milhões de euros.
Jornal SAVANA (2014). Editorial – Urgente regulação do financiamento eleitoral.
Van Reybrouck, D. (2016). Against elections. Bodley Head. London.
Weimer, B., Macuane, J., & Buur, L. (2012). A Economia do Political Settlement em Moçambique: Contexto e Implicações da Descentralização. In B. Weimer (Ed.), Mocambique: Descentralizar o Centralismo: Economia politica, Recursos E Resultados (pp. 31-75). Maputo: Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE).