Retomamos a segunda parte do texto publicado recentemente, sobre a necessidade da reforma da estrutura da organização académica no subsistema de ensino superior em Moçambique. A proposta, da autoria do Professor Brazão Mazula, surge no seguimento das celebrações dos sessenta (60) anos do Ensino Superior em Angola e em Moçambique, decorridas em 2022. Na referida proposta, Mazula sugere que o departamento e o respectivo chefe, como unidade orgânica primordial na organização da actividade académica, tivessem maior autonomia, autoridade e legitimidade científica do que o director da faculdade, enquanto unidade orgânica académica político-administrativa.
A pirâmide invertida da autoridade académica
A unidade mínima de produção académica é o docente-investigador, ou o professor, nas suas múltiplas e diferentes categorias. Os processos de gestão administrativa e burocrática na academia, em princípio, se constituem para criar as condições ideais para aumentar a produção e produtividade dos académicos. Actualmente, na academia moçambicana a pirâmide está invertida. Os académicos (professores) é que prestam contas aos administradores, no lugar de serem os administradores a prestarem conta aos académicos.
Os académicos é que têm iniciativa para propôr novos cursos, preparar as aulas e criar projectos que concorrem aos fundos de pesquisa. Todavia, os académicos depois se sujeitam aos ditames e vontades do poder discricionário dos chefes, a todos os níveis, particularmente os directores de faculdade e, nalguns casos, aos chefes de departamentos, até para conseguir uma simples assinatura num pedido de autorização para participar numa conferência da sua disciplina.
Esta inversão da pirâmide de autoridade académica infantiliza os académicos, principalmente os professores, e transfere todo o incentivo dos processos académicos para as estruturas de gestão administrativa. Consequentemente, esta inversão intensifica a luta pelos cargos de chefia e direcção que se tornam mais politizados.
A inversão da pirâmide também cria incentivos para que os chefes sejam incluídos nos projectos de académicos e em publicações, mesmo sem darem alguma contribuição significativa em termos científicos, mas, simplesmente, para não dificultarem a implementação dos mesmos. O mesmo ocorre com a supervisão de trabalhos de pesquisa para dissertação onde vários estudantes, até em áreas que não são do domínio científico do chefe, são sujeitos a mau acompanhamento e à reprodução da mediocridade.
Faz-se vista grossa ao incestuoso procedimento de ter um director de faculdade a presidir um júri ou supervisionar um estudante, na sua faculdade, num contexto em que ninguém pode ousar questionar a autoridade do chefe sem sofrer represálias, muitas vezes, com efeitos catastróficos para a carreira profissional.
A arbitrariedade de alguns chefes atinge níveis exagerados de abuso de poder. Alguns chegam ao ponto de usurpar, impunemente, a propriedade intelectual de projectos concebidos por colegas. Tratam-nos como (in)subordinados, entre outros comportamentos perversos protegidos pela autoridade de gestão administrativa, incluindo a possibilidade de instaurar processos disciplinares ilegítimos aos colegas que resistem ao despotismo administrativo na academia.
A academia moçambicana não matou, de pequeno, o (crocodilo) Leviathan académico que devora, sem dom nem piedade, os seus melhores filhos. Mazula tem o mérito de ter lançado o repto para um debate sobre a reforma académica. Quanto a nós, pensamos que este é um debate necessário em todas as instituições de ensino superior moçambicanas que pretendem ser uma Universidade de Pesquisa e Pós-graduação de facto.
A remuneração de cargos de gestão académica
Tivemos o privilégio de colaborar em sistemas onde o director de faculdade, ou mesmo o chefe de departamento, é uma função não-remunerada. Quando muito, atribui-se um subsídio que não suplanta o vencimento regular como académico de acordo com o enquadramento na carreira profissional. Este princípio não se aplica ao Corpo Técnico e Administrativo que faz carreira diferenciada, ainda que dentro da academia.
Nesses sistemas, e de forma rotativa, todos os professores têm a prerrogativa, e por vezes a obrigação, nalgum momento da sua carreira, de assumir a direcção da sua unidade orgânica para melhor servir aos seus colegas. Ser ‘chefe’ nestes casos não é um privilégio, pelo qual vale tudo, mas um dever de servir aos colegas com responsabilidade.
Todos os professores devem, pelo menos uma vez, sacrificar alguns anos do seu trabalho, estritamente, académico para gerir a Faculdade e/ou o Departamento como parte das suas obrigações e, para isso, não precisam de ser remunerados além do salário normal, pois todos passarão por isso, rotativamente. Não se é chefe para se servir e abusar dos pares, mas para servir aos colegas e ao templo da ciência.
Ainda nesses lugares, a principal função do director e do chefe de departamento é a de garantir as condições de trabalho dos seus colegas. Durante dois ou três anos, o colega se dedica à gestão. Ninguém, após cumprir o seu tempo na gestão tem interesse em lá permanecer, querendo retomar a sua função principal de académico.
No entanto, em Moçambique, pelo contrário, temos indivíduos que querem ser chefes vitalícios na academia. Esse é o maior sinal de mediocridade e parasitismo académico. Querem ser chefes eternos e, ao mesmo tempo, académicos a tempo inteiro. Numa universidade histórica do país, por exemplo, houve várias tentativas de propor a extensão dos mandatos de directores de faculdades de três para cinco anos renováveis. Não podia haver proposta mais reveladora do carácter profano e perverso do sentido da academia e da inversão da pirâmide da autoridade académica. Enquanto esta inversão se mantiver, haverá cada vez mais déspotas académicos atraídos pelo poder administrativo a lutar por cargos administrativos do que académicos, com mérito, predispostos a ocupar cargos de chefia e direcção com base na confiança.
Há indivíduos com reputação de académicos, mas cuja carreira académica destaca-se apenas pela ocupação de cargos de chefia e direcção, desde chefe de secção, chefe de departamento, director de faculdade, até ao topo da gestão universitária. No entanto, como académicos deixam muito a desejar aos seus próprios pares, pois a sua produção académica não tem nenhum mérito reconhecido entre os seus pares. Se não fossem chefes ninguém lhes reconhecia o mérito académico. A autoridade académica que detém deriva da ocupação de cargos de confiança, chefia e direcção, na gestão e administração das unidades orgânicas.
Há chefes com inveja dos colegas que se dedicam à vida académica como vocação. Esses chefes usam o seu poder administrativo para impedir, a todo o custo, a progressão académica dos colegas com recurso a todo o tipo de esquemas e manipulação de mentes de colegas, estudantes e da opinião pública.
Escondem a sua mediocridade nos cargos de chefia e direcção que ninguém pode ousar questionar sob pena de sofrer represálias. Instalam um clima de medo e terror, manipulam processos de sucessão, supostamente democráticos, nos cargos de chefia e tornam a academia nesse tempo profano denunciado por Mazula.
Em resumo, Mazula tem razão – o templo da academia ou da ciência foi profanado. O sacrilégio anuncia a miséria da academia ou, ainda, a academia da miséria.
A reforma do departamento, receamos, poderá não ser suficiente para devolver a sacralidade do templo profanado. A estética da vulgaridade se revela no dramático esplendor diurno da ousadia da mediocridade decorada com altos títulos académicos ocupando as poltronas do poder-administrativo Leviathanico, ou mesmo satânico, dos cargos de confiança, chefia e direcção. Um novo templo exorcizado se faz necessário onde a autoridade escolástica do professor-investigador guiado pelo Bourdieuiano ‘líbido sciendi’ se sobrepõe, de forma responsável, com pesos e contrapesos, à arbitrariedade despótica e corrupta instaurada no templo da ciência.
[1] Sociólogo, especialista em Estudos do Ensino Superior
[2] Reitor da Universidade Pedagógica de Maputo
O nosso jornalismo não está bem. E quem diz jornalismo, diz o país, há uma relação muito intrínseca entre as duas variáveis. Não há, nem pode haver, país saudável sem um jornalismo saudável, fluorescente! O estado de saúde e de estar do jornalismo reflecte o nível da sociedade em que está inserido.
Na sociologia e ciência política, está plasmado que a media consubstancia o quarto poder… a par dos poderes executivo, legislativo e judicial. Mais proficiente a media, mais alto o nível de uma sociedade, sendo válido o inverso.
O meu amigo e colega Shafee Sidat realizou com pompa e circunstância a festa do Gwaza Muthini referente ao presente ano, com mais de cinquenta mil convidados de todos os cantos do mundo. Segundo a imprensa e os relatos nas redes sociais, conviveu-se, comeu-se, divertiu-se, dançou-se, bebeu-se e mais alguma coisa, à grande e à francesa. Até tivemos companhia de canto e dança de Itália, lá nas Europas - algo inédito na história das festas dos Gwaza Muthinis!
Consta que só não comeu quem não quis. E os meus colegas da imprensa testemunharam tudo e inclusivamente estiveram na tenda principal desfrutando de tudo de bom que lá esteve disponível.
Pois então, no lugar de se enaltecer tudo isto, pedras das mais grossas é o que se arremessou/a ao bom do Shafee! A cerimônia do Gwaza Muthini não tem nada de extraordinário, sempre aconteceu nestes nossos anos de independência - ainda que não se esteja a celebrar uma vitória na batalha, mas a resistência dos nossos antepassados. Ademais, sempre que fazemos missas nas nossas casas, há comeretes e beberetes sem fim!
Cúmulo dos cúmulos das pedradas… há os que viram “guerreiros criminosos" que foram “assassinar hipopótamos” para uma festança popular, “violando todas as regras ambientais e de preservação das espécies protegidas”. Ou seja, na ementa dos comeretes do Gwaza, o prato mais abundante foi a carne de hipopótamo! Criou-se e alimentou-se a ideia de que a carne deste anfíbio foi o prato mais forte na cerimônia, tendo havido mesmo publicações que quase o afirmaram directamente, ipsis verbis.
Espantosamente, violando-se o mais sagrado princípio da ética e deontologia da vida (não só do jornalismo), o contraditório, ninguém procurou o pacato SS, como ele gosta de assinar os seus escritos, para confirmar fosse o que fosse, ou obter mais detalhes sobre a alegada festança de carne de crocodilo... Procurou-se cimentar a ideia de um boom da carne de hipopótamo no Gwaza Muthini de 2023. Muito provavelmente com base em imagens circuladas no WhatsApp nas vésperas, mostrando dois hipos sendo transportados em uma grua é um tractor de algures para algures, mas nunca em Marracuene!…
Tirando um e outro… quase ninguém se deu ao luxo de procurar obter mais informações sobre o suposto abate de hipopótamos… onde teriam sido abatidos, quando, por quem, como… as mais básicas perguntas do e no jornalismo. Nada. Até hoje. E o que se vai registar erroneamente na nossa história é que na versão 2023 de Gwaza Muthini foram abatidos e consumidos dois hipopótamos sob a batuta e patrocínio do então administrador Shafee Sidat!
E assim vai o nosso jornalismo. Aliás, o nosso país!
Estava a ter algum engonhanço de fazer esta nota. Mas perdi preguiça quando, ao longo destas semanas, chegou-me aos ouvidos que um jornalista se recusou a ir fazer cobertura de uma cerimónia envolvendo um administrador de distrito, algures neste nosso imenso Moçambique, alegadamente porque este não lhe providenciara pequeno almoço… Chegou-me também um um outro episódio não menos condenável segundo o qual uns jornalistas num outro ponto do país se tinham furtado de ir fazer cobertura de um evento porque a instituição organizadora do tal evento não lhes pagara ajudas de custo…
Perco palavras…
O nosso jornalismo não está bem! O nosso país também não está!
ME Mabunda
No passado dia 14 de Fevereiro, o dia dos namorados, provavelmente o leitor tenha acompanhado, protagonizado ou sido alvo de declarações e ou de gestos de amor. Umas mais lindas, outras nem tanto, e outras ainda inusitadas. Gosto das últimas.
“Pérola, a casa da Matola é tua!” faz parte do leque das inusitadas declarações e gestos de amor, pese que não tenha sido por ocasião do São Valentim, mas também um momento que homenageia o amor. Porventura, a maior e mais espontânea declaração ou gesto de amor por mim presenciado (não confundir com presenteado).
Eu estava com amigos num concerto musical. Em palco, a cantora angolana Pérola cantava e encantava. Não tardou que as emoções, femininas e também masculinas, fossem ao rubro. O auge foi durante a canção “Amor”. Não tenho como descrever o êxtase e o delírio total cuja magnitude roçara a requintes de histeria colectiva, tendo resvalado – tais eram os sinais – num orgasmo múltiplo colectivo.
No auge do clímax, a Pérola confessa que “…Graças ao amor/Hoje sinto o que nunca senti/E isso meu bem eu devo a ti/Eu devo a ti/ Por tudo o que eu vivo/Meu amor...”, e da multidão, sitiada de néctar, e enquanto estendia os braços capitulados, irrompe uma voz minha conhecida, que aos prantos e a plenos pulmões, repetidamente, gritava: “Pérola, a casa da Matola é tua!”
Não sei se a destinatária terá ouvido, mas a até então (pretensa) co-proprietária, vira-se para mim e diz: “Acabo de perder a casa da Matola”. Fora confirmar o facto, pois presenciara, fiz o que estava à mão: dei-lhe o conforto do meu abraço.
Tempos depois, em pleno voo de uma viagem à Angola, cruzo-me com a “Dona da casa da Matola”. Ganhei coragem e aproximei-me. Deu para perceber que o presente justificava. Nos abraços de despedida disse-lhe que tinha um amigo que talvez fosse o maior fã dela. Trocamos os números para eventual e devido seguimento.
Por pouco contava-lhe de que era a legítima proprietária de uma casa na Matola. Não fi-lo, pois, estou certo, que no acto da oferta não estavam reunidas as condições jurídicas para um acto consciente e responsável.
Seguramente, mesmo que para a Pérola “…Não existe lei nem uma explicação...”, se a jurisprudência pender para o não reconhecimento de amorosas promessas ou o da efectividade de presentes entregues em circunstâncias de fraqueza ou de delírio emocional, será caso para perguntar: Quo vadis, São Valentim?
A presente reflexão aborda sobre a necessária reforma da estrutura da organização académica no subsistema de ensino superior em Moçambique. No seguimento das celebrações dos sessenta (60) anos do Ensino Superior em Angola e em Moçambique, decorridas em 2022, retomamos uma das propostas apresentadas pelo Professor Brazão Mazula. O académico e filósofo da educação, ex-Reitor da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), Brazão Mazula, participou de uma mesa-redonda que discutia os desafios do ensino superior. Mazula apresentou um diagnóstico geral e propôs uma modesta reforma organizacional da academia.
Nesse contexto, Mazula sugeriu que o departamento e o respectivo chefe, como unidade orgânica primordial na organização da actividade académica, tivessem maior autonomia, autoridade e legitimidade científica do que o director da faculdade, enquanto unidade orgânica académica político-administrativa.
A proposta de Mazula foi mais longe, ao sugerir que o mandato do chefe do departamento académico, em termos de longevidade em anos, fosse mais extensivo do que o do director de faculdade. Mazula propôs também que a nomeação do chefe de departamento académico fosse autónoma e não dependesse da nomeação do director da faculdade.
A proposta de Mazula surge como um contributo para reflectir sobre as condições de possibilidade destas universidades de pesquisa e pós-graduação face aos desafios e perigos no actual contexto.
Mazula apontou alguns pecados da academia que, em parte, são associados ao actual figurino do papel e função do director de faculdade como autoridade académica de gestão administrativa, que toma precedência e maior relevância no poder académico, administrativo e organizacional da academia do que o departamento, e o respectivo chefe, considerado como unidade primordial da actividade académica.
De acordo, mas...!
No geral, concordamos com a proposta Mazuliana e, por isso, pretendemos radicalizá-la. Radicalizar a proposta significa propôr um modelo de estrutura organizacional académica que dê precedência à dimensão académica e não à dimensão administrativa da academia – aliás, uma tendência global resultante das abordagens da Nova Gestão Pública (New Public Management).
A Nova Gestão Pública (NGP) surgiu, inicialmente, em países anglo-saxónicos, tais como Estados Unidos, Inglaterra, Austrália e Nova Zelândia, a partir do início dos anos 1980; mas, depois, tornou-se num movimento global com propostas teóricas de reforma da administração pública burocrática de modo a dotá-la de modelos de gestão inspirados na administração de empresas privadas percebidas como menos burocráticas, flexíveis e cujos resultados eram orientados para as necessidades do mercado.
Em países como Moçambique, não existe evidência de que o ascendente da administração pública e burocrática resulte da NGP, mas parece ser mais uma herança da planificação centralizada do Estado e dos vícios de modelos de liderança institucional e organizacional com tendências autoritárias, onde o chefe exerce o poder burocrático de forma discricionária, arbitrária, incontestável e com poucos ou quase nenhum mecanismo efectivo de pesos e contrapesos.
O profanado Templo da Ciência
Mazula defendeu, analogicamente, que uma Universidade de Pesquisa e Pós-graduação é algo próximo ou igual a um templo da ciência. Assim, como que um templo profanado, Mazula apontou aspectos que são incompatíveis com uma Universidade de Pesquisa e Pós-graduação e cujos sinais estão manifestos na nossa academia. Esses aspectos elencados ilustravam o facto das instituições de ensino superior moçambicanas terem sido transformadas em instrumentos de exibição de uma falsa envergadura económica e superioridade intelectual, de rampas de lançamento de carreiras políticas, de casas bancárias onde se mercantiliza currículos e onde o estudante é apenas tido como um mero cliente, de centros de formação rápida e massiva sem o devido acautelamento em qualidade, e de clubes de exaltação da personalidade dos seus dirigentes máximos. Estas referências todas ilustram um Mazula indignado com a profanidade da academia moçambicana. A nossa proposta é radicalizar a proposta de Mazula.
Radicalizar a proposta de Mazula
A proposta de conceder ao chefe de departamento maior autoridade académica do que o director de faculdade nos pareceu pertinente e necessária, ainda que insuficiente como solução para parte dos problemas arrolados por Mazula que concorrem para a profanidade do templo da ciência. Os problemas arrolados, que contaminam o templo, parecem-nos transcender a vida das faculdades, em si, e abrangem comportamentos individuais de académicos e de algumas lideranças das instituições do ensino superior.
No essencial, a proposta de Mazula não é apenas a de uma reforma administrativa conferindo mais poder ao chefe de departamento e um mandato mais longo do que o do director da faculdade; é a de uma reforma da função académica do departamento e do respectivo chefe. Trata-se de uma proposta importante e de uma oportunidade para reflexão que só podia ser trazida ao público, sem receios, por um académico da estatura intelectual de Mazula.
O poder académico e administrativo
Na academia coabitam, cada vez mais em conflito, dois tipos de poder. Por um lado, o poder académico, que radica dos processos académicos de ensino, investigação e extensão, cuja autoridade resulta do reconhecimento do mérito académico e científico legitimado pelos pares. Por outro, o poder político-administrativo na academia, que radica dos processos de gestão administrativa e financeira dos diferentes níveis e unidades orgânicas das instituições de ensino superior.
Estes dois tipos de poder podem, muitas vezes, se confundir na academia. Principalmente na medida em que mais detentores do poder político-administrativo na academia vão adquirindo títulos e graus académicos. Nos países em que a capacidade e mecanismos de controlo do rigor científico e académico não é inteligível e institucionalizado, a possibilidade de distinguir académicos e administradores é ainda menor.
No caso de Moçambique, a estrutura orgânica das unidades académicas e administrativas assemelha-se àquela da administração pública, com Divisões, Secções, Departamentos e outras unidades de cariz especificamente académico, tais como Grupo de Disciplina, Grupo de Pesquisa, Faculdades, Centros de Pesquisa e Extensão, entre outras unidades. Existem também unidades de gestão, estritamente, administrativas e financeiras, como direcções que se ocupam da provisão de bens e serviços académicos, pedagógicos, administrativos e financeiros.
A unidade orgânica que mais se destaca nos processos académicos é a Faculdade. No entanto, a função do gestor da faculdade, ou mesmo do departamento, na configuração das instituições de ensino superior moçambicanas é, fundamentalmente, administrativa e financeira. Para exercer as funções de director de faculdade ou um chefe de departamento, cargos muitas vezes exercidos por académicos, não se requer conhecimento especializado. Na verdade, para se ser director, muitas vezes, basta preencher requisitos burocráticos, político-administrativos e existir uma vaga.
Nalguns casos, abre-se a excepção para os directores de Cursos, mas há muitos casos em que mesmo a este nível não é imperioso que alguém tenha alguma especialização no curso que dirige, o que constitui um verdadeiro sacrilégio académico. Ocorre, porém, que ao ascenderem aos cargos de gestão, mais político-administrativos do que académicos, indivíduos com credenciais académicas questionáveis passam a exercer o poder e autoridade administrativa sobre académicos com autoridade e legitimidade científica nacional e até internacional.
Esta situação tem sido fonte de conflitos e distorções do templo da ciência, propiciando alguns dos vícios apontados por Mazula. Entre a autoridade científico-académica e a autoridade político-administrativa leva vantagem a segunda, concorrendo assim para uma maior politização e perversão da academia. Assim, a luta política para a ascensão aos cargos de chefia e direcção dos processos administrativos e financeiros é inversamente proporcional à luta pelo reconhecimento académico-científico pelos pares nas áreas de especialização.
É um facto que existe a tendência de associar a ocupação de certos cargos político-administrativos à exigência de credenciais académicas. Por exemplo, cada vez mais se admite menos que um director de faculdade não ostente o título de doutor. O pressuposto lógico, mas não necessariamente funcional, é de que um doutorado teria maior discernimento e competência para administrar assuntos académicos.
À medida que as unidades orgânicas estão cada vez mais dotadas de indivíduos com doutoramento, e estando os incentivos administrativo-financeiros indexados aos cargos de chefia e direcção, e não às funções académicas, a luta por cargos na académia tornou-se tão, senão mais, politizada do que a luta por cargos políticos noutros sectores da função pública ou nos partidos políticos.
A luta política por cargos político-administrativos na academia passa também pelo controle dos recursos financeiros e adopta, cada vez mais, métodos escrupulosos. Nessa luta, vale tudo para eliminar inimigos, reais ou imaginários, incluindo o uso da autoridade administrativa para perseguir ou obstruir a progressão na carreira, retirar projectos de investigação com financiamento e até mesmo o ataque pessoal e à dignidade, inclusive com recurso ao assassinato público de carácter. Este fenómeno do assassinato público do carácter tornou-se facilitado na era da Internet e das redes sociais, mas também na de uma pseudo-imprensa que sobrevivem do suborno e de sensacionalismo baseado em escândalos fabricados. Este fenómeno, que um de nós designa, nos seus estudos, de economia moral do caractercídio – ou linchamento de carácter – ocorre num país onde a ética e deontologia profissional de alguma imprensa ainda é bastante negligenciada e a difamação impune.
A estética dos conflitos académicos pelo controle dos recursos de poder académico e político-administrativo, particularmente na era das redes sociais e da mídia sensacionalista, atingiu níveis de uma vulgaridade indescritível. O poder político-administrativo na academia moçambicana, do topo à base, funciona de forma bastante discricionária e até mesmo arbitrária. Os chefes, a todos níveis, até mesmo os chefes de departamento, operam numa estrutura burocrática e autocrática que os torna extremamente poderosos a ponto de nem mesmo os órgãos colegiais, altamente manipuláveis e corruptíveis, terem capacidade de contrabalançar esse excessivo poder.
O figurino emprestado da função pública do cargo de confiança, quando introduzido na academia, cria uma cultura perversa de seguidismo, culto de personalidade, compra e venda de lealdade e favores. No geral, a importação do modelo de cargos de chefia e direcção por confiança da função pública para a academia, mas em particular ao nível do director de faculdade, elimina a noção de académicos como pares (iguais) e introduz uma hierarquia administrativa que permite a alguns chefes usar o seu poder discricionário de nomeação dos colegas ‘pares’ para cargos de confiança como moeda de troca, abusar do poder, perseguir colegas e até mesmo exigir favores sexuais às mulheres – nomeando-as para cargos de confiança em nome de suposta igualdade de género.
A questão do género, legítima que seja, também é um campo bastante susceptível à manipulação e usada como arma de arremesso para eliminar opositores com base em falsas denúncias. Numa sociedade onde a lógica do raciocínio assemelha-se a ‘acusação de feitiçaria’, como diria um renomado sociólogo, do tipo não há fumo sem fogo, basta acusar. Assim, se perpetua uma perversa economia moral do género, que alimenta denunciantes, fabrica vítimas e, com efeito, negligencia a verdade.
Para garantir a sua segurança nos cargos, os chefes, principalmente os directores de faculdades, podem cooptar e aliciar jovens, estudantes e docentes no início da carreira académica, sedentos de confirmação como quadros efectivos ou em busca de promoção na carreira, e os colocam como chefes de departamentos ou nos órgãos colegiais onde servem de marionetas do chefe para legitimar processos que não passariam, muitas vezes, ao escrutínio crítico de académicos mais seniores.
Assim, os órgãos colegiais não passam de mais uma fachada democrática na academia, no lugar de serem espaços de análise crítica dos processos de gestão académica. Diante dos problemas estruturais da academia moçambicana aqui descritos, parcialmente, conferir maior autonomia e poder ao chefe de departamento, como propõe Mazula, ou estender o mandato para além daquele do director da faculdade, pode ser parte da solução, mas não é o remédio santo para voltar a sacralizar o templo da ciência. Para ser efectiva, a proposta Mazuliana de reforma académica teria que ousar ir mais longe e ser mais radical.
(continua)
[1] Sociólogo, especialista em Estudos do Ensino Superior
[2] Reitor da Universidade Pedagógica de Maputo
Chegou à cidade de Inhambane em 1982 com todas as escarpas de um massena que se preza, não tinha medo de nada, nem do desconhecido. Nessa altura a juventude daqui era pura, o que eles queriam era viver livres como o vento que não contorna os obstáculos. Otto também, jovem como os outros, queria viver, não como o vento, mas como um baluarte contra aqueles que porventura o quisessem derrubar, o massena é assim, não demora libertar todas as armas do porco espinho que lhe vai dentro.
Chegou sem nada nas mãos, para além da sacola que cabia debaixo do braço, e em pouco tempo passou a ser conhecido em toda a urbe pelo seu caracter obstinado, em particular na família do desporto onde se fazia valer de forma singular, ele é professor de educação física – agora aposentado -, um dos primeiros formados no tempo de Samora Machel e espalhados pelo país inteiro. Ao otto calhou Inhambane, de onde nunca mais saíu, até hoje, que já ninguém se lembra das suas origens e ele também não fala disso. Para quê?
Nos campos de futebol de salão - em noites memoráveis no recinto do Desportivo ou do Ferroviário de Inhambane - Otto Glória era uma das estrelas mais reverberantes no seio de uma constelação jamais vista por estas terras. Era uma muralha em si mesmo, intransponível para os avançados mais afoitos cujos nomes não vou citar, por fazerem parte de uma lista engrandecida pelo próprio brilho desses jogadores e eu tenho medo de me esquecer, se calhar, dos que nunca devem ser esquecidos.
Otto já era lenha regada de gasolina cá fora – à mínima faúlha ele vai arder – e no campo essa lenha era ainda mais seca, ainda mais pronta a pegar fogo e queimar tudo. Mas esse era ele, uma pessoa desconfiada, atenta aos detalhes daqueles que lhe abordam, examinando-os com os olhos da cabeça aos pés e se você o chateasse ele dizia: eu sou beirense! Mas tudo isso nunca passou das palavras, Otto Glória passou a ser amado pouco a pouco, embora não sendo ele pessoa de muitos amigos.
Digamos que estamos perante um personagem com características próprias. Um ser coerente, no sentido de que a personalidade trazida da juventude ainda é a mesma, não fosse ele do bairro Munhava, e como todos sabemos o beirense “não tem recua”, Otto também “não tem recua”. E quando o vemos caminhar pelas ruas e pelos becos da cidade, no seu estilo inconfundível, costas meio curvadas, andar atento e desconfiado, o reconhecemos imediatamente mesmo em noites sem luar. E vamos dizer assim: aí vai o Otto!
A voz roufenha de Otto Glória é um detalhe muito importante do ser deste homem. Quando fala – segundo Jacob de Melo, também professor de educação física, já falecido – dá a impressão de que alguém lhe está apertando o pescoço. Mas essas são as brincadeiras da juventude que prevalecem na memória. Para sempre. A amizade também vai manter-se cada vez mais forte em cada passo da vida.
E viva o Otto Glória!
14 de Fevereiro. Dia de São Valentim. Ainda cedo, o dia iniciava igual aos outros. À saída, uma excepcção: “Reforce o perfume”. Cumpri à risca. Não era para menos. O calor que se faz sentir, combinado com a crise (do excesso) de água, justificava a advertência.
Embora soubesse a razão implícita no conselho, o risco de perder ou atrasar a agenda árdua do dia levou-me ao silêncio. De toda maneira, a data e os seus propósitos justificavam que se saísse um pouco mais perfumado.
Marcado o ponto em algumas obrigações matinais, chego a Baixa da cidade. Uma extensa onda vermelha - passe a publicidade partidária - cobria toda a Baixa, lembrando os momentos em que ela fica coberta de uma outra onda, a da água da chuva que, amiúde, por estes dias, tem caído aos cântaros na cidade e província de Maputo.
Por instantes interroguei-me sobre a proveniência de tantas flores se as áreas de cultivo estavam inundadas. Decerto, um cenário que levaria o meu saudoso “amigo” Gaby a reescrever “ O amor em tempos de cólera” para “O amor em tempos de inundações”.
Na Terminal do Chapa, um outro amigo, que a propósito do frenesim das rosas vermelhas na Baixa da cidade e o da água cinzenta das inundações em Boane, segredou-me de que a figura do resgate era o denominador comum das operações em curso, mormente o de populações sitiadas na Bacia do Ùmbeluzi e o de amores sitiados na Baía de Maputo.
Uma vez no destino, e porque ainda restava-me algum tempo para o compromisso, optei por entrar no mercado local. Fui apreciando o que este oferecia, até que uma doce e valentina voz sussurra: “ Estou aqui, amor!”
Era a voz de uma vendedeira de frutas e hortícolas, que diante da concorrência de seus pares, ajustara, valentinamente, o tradicional “Patrão, aqui!” para o inovador e sensual “Estou aqui, amor!”. Não tive outro jeito: comprei tudo e deixei com ela a rosa que levava para o resgate do dia.