Director: Marcelo Mosse

Maputo -

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segunda-feira, 24 janeiro 2022 09:15

O silêncio do café

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À hora do café matinal, o sururu das mesas era o papo do dia: as portagens da circular de Maputo. Numa mesa ao fundo, um cliente habitual, sempre sozinho e silencioso, mas que, surpreendentemente, nesse dia, estava de avesso e gritava aos cântaros, tal era a intensidade da chuvada de nicotina expedida.

 

“É um roubo generalizado”. Era o êxtase da gritaria. Felizmente alguém, que se aproximara, apaziguara-lo. Da conversa, o apaziguado passara a ideia de que não se devia ficar calado diante de arbitrariedades. Até atribuíra culpas da sua trombose, que o levara precocemente à reforma, ao seu silêncio nos tempos (das arbitrariedades) do monopartidarismo.

 

“Outra trombose, não!”. Outra gritaria. Outra leva de nicotina.

 

Uma vez mais é domado, e mais calmo, procura pelo melhor canto para ser visto e ouvido. Fita o olhar em direcção a um enorme lustre do café. Em seguida, a plenos pulmões, projecta espessas nuvens de nicotina que apagam, de forma progressiva, o brilho do lustre. Chegara a hora do discurso.

 

- Estou cansado das portagens desta vida. Não só do tipo das que se falam, mas também, e sobretudo, de outras e silenciosas.

 

Com esta entrada, o ilustre e súbito orador atrairá o silêncio de todos. Não era para menos, pois não era habitual que o “Homem silencioso”, assim era conhecido, fora o café, também tomasse a palavra.

 

- Diariamente enfrento outras portagens. À saída de casa, é o segurança do vizinho folgado que estica o braço. Na estrada é a Polícia de Trânsito. Aqui perto estaciono e à saída, outra portagem. Nem há desconto para o utilizador frequente e se não pago, será sorrateira e violenta a cobrança.

 

Em seguida, o orador aproveita a atenção redobrada da plateia para uma nova fumarada. Desta vez acompanhada de uma leve, sucessiva e preocupante tosse. Ciente do contexto pandémico da Covid-19, e com algum esforço - usa o braço parcialmente imobilizado - saca do bolso das calças uma velha máscara que a encaixa no rosto combalido, tapando a boca e o nariz.  

 

- Também estou cansado da maior de todas as portagens desta vida: o vosso silêncio. O silêncio do café.    

 

Enquanto arremessava estas palavras, o seu olhar, numa ronda de 360 graus, atingira, de súbito, as entranhas de cada presente e o ambiente do café passara a um autêntico templo de fé.

 

- Todos aqui que me escutam são os principais afectados por estas portagens. Armam-se em valentes aqui no café, mas fora são possuídos por uma amnésia patológica, senão indecorosa.    

 

Por momentos algum sururu. Em seguida, de ouvidos moucos e em tom introspectivo, o outrora silencioso, longamente suga o último trago de café, já esfriado, e dá a última puxada de cigarro, ora defunto.

 

- Meus filhos descontraiam que a culpa não é vossa. É minha. É tão minha, que não posso cobrar de vocês, os filhos do meu silêncio, o que eu não fora capaz de fazer.

 

Com estas palavras, o até então “Homem silencioso”, o súbito ilustre orador, dera, aos prantos, por terminada a sua palavra. E por terminar continua o silêncio do café.

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