Antes de começarmos com o hino, o guarda arrumava-nos em filas com a ponta fina do seu chamboco. Um colega nosso, albino, piscava os olhinhos sem parar, como luzes de natal, e batia-se contra árvores e degraus do pátio fugindo do guarda e atrapalhado em pendurar os óculos ao nariz. O nosso chefe de turma, um parvo que hoje é contabilista ali na 25 de Setembro, registava os presentes nas costas do seu caderno, bem ao lado da tabuada.
O director da escola, suspenso em suas muletas como um boneco pendurado no estendal, começava com o primeiro verso e no segundo verso todos apedrejávamos o hino com as nossas vozes. Um funcionário da secretaria resgatava a bandeira do topo de uma haste enferrujada por meio de uma corda como um velho puxando uma lata de um poço.
Recordo-me que nos refrões, o director da escola com os seus pezinhos empenados por uma paralisia infantil, suspensos ao ar por duas molas de muletas, levantava um bico nos lábios e soprava um som que parecia de um instrumento de sopro.
(Viva Moçambique!
Viva a Bandeira, símbolo Nacional!
Viva Moçambique!
Que por ti o Povo lutará)
O guarda com o chamboco baloiçando na cintura, alinhava de quando em quando a mão direita na cabeça para consertar a continência que lhe escorregava pelo suor. Os colegas atrasados, fora do quintal da escola, acompanhavam o hino, as vendedeiras de pirulitos levantavam-se e os peões paravam assistindo a descida da bandeira.
E a professora de história, uma senhora gorda com falta de pescoço, pincelava, a todo instante, os lábios para nos falar, com a ajuda de uma vara, sobre as zonas libertadas, a produção nas aldeias comunais e as cooperativas. E ela sabia tudo de história, mas não se dava tempo para tirar um pescoço de qualquer morto da guerra e colocar-se a si mesma. Era incrível vê-la a respirar mesmo sem pescoço.
Todos em bichas, todos bem organizados parecíamos os nossos pais gastos de cansaço esperando por uma barra de sabão numa cantina do povo. Sobre a cantina do povo aprendi com a professora sem pescoço; coitada, soube que morreu ano passado vítima de malária; imagino o enterro dela, os filhos procurando a sua cabeça longe do corpo, nas gavetas, nas malas, pois nunca teve pescoço...
A bandeira ia descendo, as vozes vestidas de mau hálito da escola arrumavam-se debaixo das nossas línguas e o hino terminava. O director era o primeiro a remar os corredores com as suas muletas e de uma forma organizada íamos sendo engolidos pelas salas.