Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
segunda-feira, 15 novembro 2021 07:11

Interdição de contratação de recursos humanos no regime da licença registada e ilimitada na função pública

Escrito por

  1. A PROBLEMÁTICA

 

O nº 1 do artigo 58 do Decreto n.º 5/2018, de 26 de Fevereiro – Aprova o Regulamento do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado - determina o seguinte: “Ao funcionário de nomeação definitiva pode ser concedida licença registada até 6 meses prorrogáveis até 1 ano, invocando motivo justificado e ponderoso.”

 

Na sequência e relativamente às implicações da concessão da licença determina a alínea c) do n.º 5 do artigo supra mencionado o seguinte: “Que durante o seu gozo, o funcionário não pode exercer qualquer actividade na função pública, nem exercer ou invocar direitos fundados na situação anterior.”

 

Por sua vez, o n.º 1 do artigo 59 do Regulamento do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado estabelece que: “A licença ilimitada é concedida por tempo indeterminado a pedido do funcionário de nomeação definitiva.” De entre outras implicações desta norma predispõe a alínea b) do n.º 1 do artigo em referência que: “Durante o gozo da licença, o funcionário não pode apresentar-se a concurso, ser promovido ou exercer qualquer actividade na função pública, nem exercer ou invocar direitos fundamentados na situação anterior.”

 

A Licença registada e ilimitada está prevista nos n.ºs 10 e 13, respectivamente do artigo 75 da Lei n.º 10/2017, de 1 de Agosto, que aprova o Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado (EGFAE).

 

Ora, por via de um despacho administrativo datado de 30 de Setembro de 2021, o Secretário Permanente do Ministério da Saúde, sob o parecer do Ministério da Administração Estatal e Função Pública decidiu pela interdição de contratação pelos parceiros de cooperação, de recursos humanos do Estado que se encontrem em gozo de licença registada ou ilimitada para exercerem funções no Ministério da Saúde (MISAU). Curiosa e estranhamente, a decisão do MISAU teve por base o disposto na alínea c) do n.º 5 do artigo 58 e na alínea b) do n.º 1 do artigo 59, ambos do Regulamento do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado e pretende, forçosamente, reter os quadros ou os recursos humanos do MISAU por via administrativa como se de uma ditadura se tratasse.

  1. VERGONHOSA FRAUDE À LEI PARA A RETENÇÃO DE QUADROS NA FUNÇÃO PÚBLICA

 

Quando um funcionário ou agente do Estado é contratado pelos parceiros de cooperação para exercer funções nas instituições do Estado, no caso em apreço, no MISAU, tal não significa que esse funcionário ou agente do Estado está, por essa via, a ser recontratado na função pública ou que esteja a estabelecer um novo vínculo de trabalho com o Estado, de tal sorte que a sua vinculação é de natureza privada com o parceiro de cooperação que o contratou.

 

Aliás, o funcionário ou agente do Estado que se beneficiar do regime da licença registada e ilimitada previsto nos artigos supra indicados do Regulamento do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado fica numa situação de perda de várias obrigações e direitos essenciais, incluindo a remuneração. Essa licença registada e ilimitada constitui, também, uma autorização legal para celebrar contratos de trabalho com as entidades privadas, no quadro da legislação laboral aplicável nas relações laborais do Direito Privado. Trata-se, pois, do âmbito da liberdade contratual e de escolha do funcionário ou agente do Estado que não deve ser limitado por despacho sem cobertura legal, conforme é o caso em apreço, quando o mesmo está sob licença registada e/ou ilimitada.

 

Importa aqui esclarecer que a alínea c) do n.º 5 do artigo 58 e na alínea b) do n.º 1 do artigo 59, ambos do Regulamento do EGFAE proíbem que o funcionário e agente do Estado estabeleçam novos vínculos na função pública, o que não é extensível à actividade privada, ao contrário do que pretende dar a entender o supra referido despacho do Secretário Permanente do MISAU. Este órgão está, indubitavelmente, a fazer um exercício hermenêutico falacioso daquelas normas do Regulamento do EGFAE, inesperadamente com a chancela do Ministério da Administração Estatal e Função Pública.

 

A mensagem que se pretende transmitir no despacho do Secretário Permanente do MISAU aqui em análise é clara, no sentido de que visa reter os quadros do MISAU a todo o custo por via de uma ordem traduzida em acto administrativo que não só é contra legem como, acima de tudo, viola a Constituição da República de Moçambique (CRM), no que à liberdade de escolha e direito ao trabalho diz respeito. Não é, pois, com esse tipo de prática, quais sinais ditatoriais que roçam o Estado de Direito Democrático e a justiça social que caracteriza Moçambique, que se vai conseguir a retenção dos recursos humanos no MISAU em concreto e na função pública, em geral, caso a pretensão vertida no despacho em análise seja objecto de efeito multiplicador para outros sectores públicos.

 

A retenção dos recursos humanos na função pública deve ser feita através de adopção e materialização de políticas e estratégias públicas de incentivos que sejam transparentes, justos e atractivos, sem discriminação e num contexto real de inclusão ou de efectiva participação pública dos visados na sua definição.

 

Mais do que isso, é que não compete ao MISAU ou à Administração Pública decidir quem os parceiros de cooperação devem contratar e onde devem trabalhar os seus contratados, desde que esses parceiros não violem a lei.

 

  • CONCLUINDO

 

O despacho do Secretário Permanente do MISAU ofende a CRM, o EGFAE e o respectivo Regulamento, bem como os princípios internacionais sobre a actuação da Administração Pública de que Moçambique é parte, mormente, a Carta Africana sobre os Valores e Princípios da Função e Administração Pública ratificada pelo Estado Moçambicano através a Resolução n.º 67/2012, de 28 de Dezembro.

 

O despacho do Secretário Permanente do MISAU descredibiliza a Administração Pública no que à gestão dos recursos humanos da função pública diz respeito, pela forma como viola a lei. Trata-se, assim, de um acto administrativo que enferma do vício de nulidade, senão de inexistência, sem qualquer efeito jurídico, pelo que não deve prevalecer.

 

O legislador definiu clara e expressamente em que medida pode, dentro do quadro constitucional em vigor, haver restrições dos direitos, liberdades e garantias fundamentais.

 

É preciso garantir melhores condições de trabalho aos funcionários e agentes do Estado se a função pública não quer perder os seus quadros para as entidades privadas.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

Sir Motors

Ler 6545 vezes