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segunda-feira, 01 junho 2020 07:07

Eduardo Mondlane. Um arquitecto mudo e de costas para o povo?

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O 1º presidente da FRELIMO, Eduardo Mondlane (1920-1969), sociólogo e antropólogo, completa 100 primaveras a 20 de Junho. Em jeito de antecipada celebração seguem as duas cenas abaixo e retorno mais abaixo. 

 

Cena 1

 

Mondlane é apontado como o arquitecto da unidade nacional. Amiúde tem aparecido em discursos políticos, sobretudo de membros de sucessivos Governos e do partido que o suporta. Em tais discursos oiço apenas terceiros (falando dele), mas não o oiço (a voz de Mondlane). E sobre ele não consta que tivesse sido mudo. É estranho que um arquitecto nunca fale da sua obra, particularmente das que fazem diferença. Idem para as obras problemáticas: o arquitecto vem sempre a terreiro em sua própria defesa. E Mondlane quando virá a terreiro? Espero que seja durante as celebrações oficiais dos redondos 100 anos de Eduardo Mondlane.

 

Que desta vez seja diferente e no lugar do silêncio de sempre, o poder e seus suportes, possam, através da imprensa, exibir vídeos, áudios e escritos de entrevistas, discursos e de outras intervenções de Eduardo Mondlane. Foi e é assim com a figura do 1º presidente do Estado moçambicano Samora Machel (1933-1986), o sucessor de Mondlane na chefia da FRELIMO. Oxalá que desta o partido FRELIMO faça jus a uma das suas marcas: a valorização da tradição e dos bons costumes.

 

Cena 2

 

Um pouco antes do 1º período do estado de emergência um amigo levou-me pelo copo a um roteiro nocturno pelos bares do Bairro do Alto-Maé. Já madrugada dentro sai de uma das casas de pasto para apanhar ar puro. Dei alguns passos e sentei-me nas escadas da estátua de Eduardo Mondlane, no mesmo bairro, para um dedinho de conversa com o arquitecto da Unidade Nacional. E em jeito de prenda antecipada pelo 100º aniversário levei-o a um passeio pela avenida com o seu nome. Era o meu segundo roteiro do dia e desta em companhia de alguém que mostrara o roteiro para a independência e não o de bares (risos).

 

Foi um passeio interessante e de “encontros históricos” com ilustres figuras de gabarito internacional, perfilados em certos cruzamentos da Av. Eduardo Mondlane. Todos lamentaram que o Mondlane tivesse partido tão cedo. O primeiro encontro foi com o ex-presidente da Somália Mohamed Siad Barre (1919-1995) que contara que esteve no Estádio da Machava quando Machel proclamara a independência total e completa de Moçambique. Em seguida foi com o ex-presidente do ANC (África do Sul) Albert Lithuli (1898-1967) que a par de Salvador Allende (1908-1973), ex-presidente do Chile, deposto e assassinado num golpe de estado, agradeceram o apoio e a solidariedade de Moçambique à causa do ANC e a da luta do povo chileno contra a ditadura, respectivamente. Os encontros mais demorados foram com o filósofo alemão Karl Marx (1818-1883) e com o ex- primeiro-ministro da então União Soviética, o russo Vladimir Lenine (1870-1924). Ambos questionaram a Mondlane se a via seguida por Moçambique, no período pós-independência, seria a mesma que ele pensara e, ainda, deploraram a falta de solidariedade da liderança do bloco socialista quando Moçambique mais precisou de seu apoio na década de 1980.

 

Entre Marx e Lenine, o encontro foi com o ex-primeiro-ministro sueco Olof Palm (1927-1986). Palm, relatara que fora assassinado à saída de um cinema cujo inquérito ainda se encontra em banho-maria. No final, desejou que o país de Mondlane alcançasse um nível de desenvolvimento semelhante ao do seu país. Em seguida e o mais estimulante - talvez porque fora o único que decorrera em língua portuguesa - foi o encontro com o Amílcar Cabral (1924-1973), o líder da revolução guineense e cabo-verdiana, um contemporâneo de Mondlane na luta pelas independências dos países colonizados por Portugal. Cabral contara que um pouco depois da morte de Mondlane também o assassinaram e de que diferente do assassinato de Mondlane, que não se sabe ainda o desfecho, o seu fora esclarecido. O último encontro foi com o ex-presidente tanzaniano Julius Nyerere (1922-1999), velho amigo e quem dera guarida à Mondlane para a libertação de Moçambique. Nyerere lamentar-se-á das lideranças das independências dos países africanos que não souberam traduzir as suas boas intenções em boas e melhores condições de vida para os seus povos.  

 

Depois do encontro com Nyerere, a passeata pela Av. Eduardo Mondlane e com o Eduardo Mondlane chegara ao fim sem que o meu comparsa de passeio abrisse a boca, limitando-se apenas a ouvir. “As tantas é mesmo surdo” pensava eu. Fiz um gesto de que podíamos regressar e nesse instante, Mondlane, apontando para a zona envolvente da esquina da avenida Eduardo Mondlane com a Julius Nyerere, pergunta: “Pelo rumo seguido depois da independência a estátua não devia estar por aqui?”. Em seguida e para o meu susto, ele ainda recomenda: “Pense nisso, Assis Macaé”. Digo susto porque Mondlane tratou-me pelo meu nome.  

 

Antes que o meu amigo desse por minha falta e por isso não demorasse, propus a Mondlane que voltássemos de Chapa, transporte semi-colectivo de passageiros. Pegamos o único Chapa sobrevivente da rota Jardim-Costa do Sol. Eram seis da manhã. Mondlane não cabia em nenhum dos assentos e pedi ao motorista que o deixasse conduzir. E assim e sem que ninguém o reconhecesse, o que é estranho, chegamos ao destino. Neste, tudo estava intacto, incluindo o livro que ele deixara à vista de todos e com a intenção que fosse lido ou levado. Enquanto ele se posicionava, ia abanando a cabeça como quem diz “Esta gente não muda”. Já posicionado e em jeito de despedida, uma leve vénia de cada um e o meu obrigado e um silencioso “Saravá, Mondlane!”.

 

Regresso ao bar e o meu amigo já lá não estava. De volta à casa fui matutando no que Mondlane quis dizer com a posição da estátua. Lembrei-me que em tempos, em conversa com amigos, foi sugerida a ideia de que a estátua de Mondlane estaria politicamente e melhor no Bairro da Polana, no ponto referido por Mondlane. Nesse local e de costas para a Embaixada de Portugal, o antigo colonizador e da esfera capitalista ocidental, a estátua de Mondlane sinalizaria de que dava costas ao capitalismo ocidental e rumava em direcção ao povo/socialismo. Onde a estátua se encontra, no Bairro do Alto-Maé, Mondlane dá costas ao povo/socialismo e olha/caminha em direcção ao capitalismo ocidental. Porventura tenha sido esta a mensagem quando, em 1989, em plena época de mudanças, a inauguraram. Haja dúvidas? Que Mondlane venha a terreiro. 

 

PS 1: É interessante que o local onde se encontra a estátua de Eduardo Mondlane seja o ponto de referência para a partida de muitas manifestações da sociedade civil, e não só, e em itinerário até a praça da independência. Um fenómeno interessante e algo simbólico, pois se recorre à Mondlane (o ponto de partida) para reivindicar direitos que deviam ser dados por adquiridos com a independência (o ponto de chegada) ou que a partir dela, a independência, os direitos fossem renovados e adequados aos padrões de cada época. 

 

PS 2: No texto passado prometera de que em Junho publicaria apenas dois textos. Um deles é este e o próximo nas vésperas do dia da independência. Este é inspirado em um anterior (Pai, Mondlane não fala?) que publicara, faz um tempo, num outro jornal da praça. No ano passado, recebi de um amigo, que lera o anterior texto, um áudio curto de uma intervenção de Mondlane. A única vez que escutara a fala de Mondlane.

 

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