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quarta-feira, 25 março 2020 05:38

O silêncio dos meus dias

Escrito por

Fernando Manuel, cronista moçambicano vivendo nos cumes da paródia, dizia-me nos seus devaneios, estimulados pela cegueira, que “agora vivo de sons”, e a partir do dia que ouvi isso, ganhei outros pensamentos. Foi uma facada no peito, e jamais me cansarei de repetir esta crueldade sem fim à vista. É como se eu fosse ele, impedido da liberdade, depois de todas as cores contempladas numa vida ritmada ao compasso das palavras, muitas delas buriladas no burburinho dos bares, onde o crâneo dilatava e logo a seguir esvaziava-se na língua.

 

Eu vivo do silêncio, como se a minha respiração fosse o contraponto do Fernando. Desdenho as ruas, as praças, os delírios dos campos de futebol, a saga dos cobradores de “chapa”. Rompi os tratados com as sinagogas, e agora o meu mundo circunscreve-se à mastigação dos livros que aprendi a ler em momentos de pura levitação. Sou a própria fragilidade, pois já nada me inspira neste tédio que me atordoa.

 

Agora estou aqui, boiando sem capacidade de orientação. Sem leme. Perseguindo-me nos caminhos atrofiados que eu próprio inventei, para gáudio do diabo. Levo nas mãos trémulas as alfazemas trazidas da Etiópia. Rumino na solidão do meu quarto, nas manhãs e tardes e noites,  essas canções que o tempo ensinou-me a ouvir em dias intermináveis de pândega, e muitas outras que eu escutava e tocava, recolhido nas cabines de locução de Rádio onde me sentia, na minha ilusão, o arauto da juventude, e tudo isso faz-me bem lembrar. É isso que fazia bater meu coração.

 

Hoje estou sentado na varanda, pensando na minha empregada que não veio, uma mulher rara, leve de tal forma que mete medo. Ela na verdade é a minha fortaleza,  uma muralha que entretanto pode entrar em derrocada por causa das minhas eventuais palavras desprovidas de sabedoria. E como alguém já me disse que o silêncio é uma das manifestações da sabedoria, melhor é eu continuar assim, como actor de cinema mudo. Em respeito à esta grandiosidade.

 

Quando ela está aqui, a minha casa, toda ela, é uma harpa. Khudzi move-se em todos os cantos dos meus modestos aposentos, como as mãos que dominam esse instrumento Divino. A cozinha ganha odores de poesia. A minha casa brilha na sua pobreza. E a vida ressurge na plenitude. Mas ela hoje não veio. Há um vazio. É como se eu próprio não existisse. O silêncio que venero perde sentido. Nem o chilrear dos pássaros compensa. Nem as boas lembranças de quando eu estava no auge. Nem nada. Khudzi é o alambique do meu espírito. Embebeda-me. E quando estou bêbado de Khudzi, esqueço tudo.

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