Quando conheci esta miúda, ainda estava na barriga da mãe, passam vinte anos. Estou sentado numa das mesas da Associação dos Escritores Moçambicanos, com os meus amigos, onde a palavra é o expoente máximo de tudo, e a terapia de grupo é o pilar fundamental para que a utopia subsista. É uma noite adulta, e aqui todos vão falar, rebuscando sem cessar, a enxurrada das páginas corroidas, consumidas na dor das pestanas. Na verdade, toda esta tertúlia, é um empreendimento rumo ao fortalecimento das narrativas escritas na parede da memória.
Chovem as metáforas, e de repente vejo uma mulher com barriga avantajada, entrando calmamente, olhando de soslaio para o ambiente capitaneado por um punhado de homens da pena, em redor de um tampo, falando em liberdade, sem se importarem com o nível dos decibeis. Está sozinha, e eu pergunto-me, depois de olhar para o relógio, o que é que esta mulher grávida, ainda por cima sem companhia, quer aqui à esta hora! Porém, antes de obter a resposta, esbatida nas lucubrações, fiquei assustado quando vi o garçon servindo-lhe dois cálices de John Walker de rótulo preto, num copo sem gelo.
Está sentada, recatada num dos cantos do espaço que nos acolhe, numa noite que daqui a pouco vai dar lugar à madrugada. Parece uma fêmea determinada. Pronta para todas as intempéries no meio dos machos, incluindo a predisposição de se defender das calúnias. Pega no copo, sem gelo, e despeja goela abaixo, de uma vez, todo o conteúdo, e logo a seguir faz sinal com o dedo indicador para que o servente repita a dose. É incrível!
Levanto-me e vou a casa de banho, passando por entre algumas mesas cujos ocupantes não falam, ou seja, eles limitam-se a escutar a conversa animada que vem do grupo onde as palavras saem em catadupa, anunciando a qualidade dos seus oradores. Aquilo é uma tecelagem, que se pode confundir com a esquizofrenia em si, com a diferença de que os esquizofrénicos não são as pessoas, mas os personagens que essas pessoas encarnam.
Estou na casa de banho, e enquanto me disponho diante do mictório, libertando com prazer o ácido úrico por demais contaminado pelo álcool, penso na mulher grávida que está ali, bebendo John Walker com rótulo preto, em dozes galopantes. Mas isto não é subreal porque eu estou lúcido. Aliás, se estiver alucinado, então essa alucinação começou com a entrada em cena desta barriguda.
No meu retorno, reparo que ela já não depende do “garçon”. Tem a garrafa inteira de John Walker por sobre a mesa, servindo-se pessoalmente, e um dado novo é que está a fumar. Bolas! Cheguei perto dela, levado pelo vaipe do vinho que venho bebendo desde as primeiras horas da noite. E em pouco tempo já conversavamos como se fossemos velhos conhecidos.
- Dessa barriga vai sair uma menina
Ela sorriu. Pegou no copo e entornou o whisky na boca de lindos lábios, e disse assim, quem me dera!
- Vai se chamar Dandara
Revolveu a carteira e de lá tirou uma pequena agenda e disse assim, escreve aqui esse nome tão lindo.
O tempo deixou de contar. O que conta é que estamos aqui, por conta das emoções.
- O que é que significa dandara?
- Dandara é harpa, em xitswa, língua do meu pai.
- Que lindo!
No último sábado, vinte anos depois, recebo no meu celula uma chamada proveniente da Bélgica, e do outro lado oiço uma voz com sotaque francês a dizer assim, daqui fala Dandara, lembra-se de mim?
- Desculpa, a minha memória está a vacilar.
- Tem razão, quando o senhor me conheceu, eu ainda estava na barriga da minha mãe, na Associação dos Escritores Moçambicanos.