Estou no acto do lançamento do meu primeiro livro, em 2001, na cidade de Inhambane. O título é esse mesmo: Inhambane Sem o Badalo, uma homenagem à figuras que estarão por todo o sempre ligadas aos cheiros desta cidade elevada - pela minha imaginação nas paródias - ao lugar mais sossegado do Mundo. É uma colectânea de crónias recebida com estupefação pelos cépticos, que me achavam incapaz de ressurgir das cinzas depois de longos anos chafurdando na lama. Desnorteado. Será também a obra que me fez sentir um pequeno deus, por isso autorizado a enfiar as mãos nos bolsos e assobiar em liberdade pelas ruas e pelos atalhos e pelas sinagogas, passeando em paz. Com vaidade.
No evento, de entre os demais ilustres e pessoas do vulgo, esteve lá um homem que vai ser lembrado eternamente pelos espectáculos de pico que proporcionava na baliza. Pela audácia. Chama-se Mbata Nhalégwè, um guarda-redes notabilizado no Clube Arrera Kwara, e depois celebrado em toda a província onde era alcunhado “guiwonga” (gato). Extravazava classe em todos os movimentos. Exuberância. Plenitude.
Mbata Nhalégwè ficava encostado ao poste, de braços cruzados, pernas em tesoura, quando o jogo fosse despejado – ou pelo corredor central, ou pelas “asas” - para a baliza contrária, como se estivesse à espera serenamente de alguém, ou lucubrando na memória. Mas quando o perigo corresse na sua direcção, ele dançava como um dançarino de mapiko, media os ângulos com as mãos, gritava para os defesas seus colegas, por vezes saía da área e logo a seguir voltava a correr para o seu reduto de costas voltadas para a bola, deixando tudo o resto por conta dos sensores implantados no seu corpo e espírito.
Os pontas-de-lança, ou os médios ou médios-avançados, podiam desferir mortíferos remates enquanto Mbata retornava à baliza naquele movimento subreal, e este, assim mesmo, de costas para o jogo, em corrida, como um gato feiticeiro, rodopiava no ar e impedia a trajectória fatal da bola. Tinha manápulas mágicas. Buscava o esférico no ar num gesto de quem colhe, como um maroto inesperado, uma laranja no ramo mais alto da árvore. E é isto, e muito mais, que vai tornar Mbata um guarda-redes idolatrado e festejado em toda província de Inhambane, no seu tempo de glória.
Hoje, em 2001, vejo um homem movendo-se no corredor da sala onde decorre o lançamento do meu livro. É extraordinariamente alto, cabeleira farta, completamente esbranquiçada, parecendo de prata. Procura com os olhos uma cadeira livre para se sentar e a primeira vista não há cadeira desocupada. A sala está absolutamente cheia porque o meu nome ribomba por estas bandas. Reboa até aos bairros mais longíquos onde também serei festejado como Mbata Nhalégwè, por todas as trafulhices que andei a fazer por aqui, e pela música de blues que vou cantar, sem saber nada de blues, nem nada sobre a escala diatónica.
O homem não encontra lugar para sentar. Orbita sobre o seu próprio eixo lembrando os dias dos jogos das estrelas e, resignado como nunca esteve no campo de futebol, recua e encosta-se na porta da entrada, na mesma posição habitual de quando brilhava como um astro, desde os meados da década de sessenta, até princípios da década de oitenta: braços cruzados e pernas em tesoura. Olhei para ele e reconheci-o logo, era o Mbata Nhalégwè naquele estilo característico que recusa desvanecer apesar da idade. Nesse momento falava o governador de Inhambane, bajulando-me, e eu estou pouco me lixando para as bajulações. Mas o “boss” teve que interromper o discurso quando viu um homem que se destacava pela sua peculiaridade física, encostado à porta de braços cruzados e pernas em tesoura. Era o Mbata Nhalégwè, agora convidado por “Sua Excia” a ocupar a única cadeira vaga que se dispunha na fila da frente, reservada aos “responsáveis”.
Lá vem ele pelo corredor, estiloso, tranquilo, sereno, transcendental. Há silêncio na sala. Todos estamos paralisados. Mbata Nhalégwè faz uma vénia ao governador, enclina-se para pegar pela mão esquerda o encosto da cadeira, antes de se sentar. É um homem longelíneo. Virou-se para a plateia e saudou-a vocalizando palavras simples que ainda hoje me ressoam na alma: “este lugar não é para mim!”. Virou-se para o governador e disse, “muito obrigado, Excia”.
Houve uma forte salva de palmas. E antes de se sentar – como um mamute – Mbata Nhalégwè disse mais, dirigindo-se à plateia: “é uma uma grande honra e privilégio, participar no lançamento do livro do Alexandre, uma pessoa que fala sempre de mim como se eu fosse alguém, quando na verdade ele é que é alguém!
Houve outra estrondosa ovação, com as pessoas de pé, incluindo o governador da Província, que já não sabia o que fazer!