Testemunhei, no Mediterrâneo, restaurante italiano, algures na Sommerschield, zona elitizada da cidade de Maputo, a apresentação de "Por uma terceira via", dos proeminentes filósofos moçambicanos, Severino Ngoenha e José Castiano, na sua tradução para o italiano feita pelo Professor Doutor e Investigador no CEI-ISCTE IUL, Lisboa, Lucas Bussoti.
O intelectual, filósofo e docente na Universidade Eduardo Mondlane, Ergimino Mucale, foi o convidado a tecer algumas palavras contextualizadoras sobre o conteúdo do livro, que nesta versão conta com comentários críticos do tradutor.
Não é o facto de estar impresso na língua de Ítalo Calvino ou, para ser mais justo, de Umberto Eco, que me impele a estes parágrafos. É a proposta destes intelectuais que assumem, a meu ver, o conceito de tal actor social, proposto por António Gramsci nos Cadernos do Cárcere.
Divaguemos, ligeiramente, por este ponto. Detido por Mussolini, Gramsci escreveu que o intelectual é este curioso e dotado de ferramentas que, no caso, da sua relação com a Sophia, observa e interpreta a sociedade.
A publicação, neste contexto, de livros, artigos e reflexões são algumas dessas ferramentas, num exercício que os torna intelectuais públicos, à luz de Jürgen Habermas ou, entre outros, Edward Said.
Na mesma linha que Fanon insiste na capacidade de dizer não e, continuando pares precedentes, Achille Mbembe propõe em "Políticas da Inimizade", uma festa da imaginação para a libertação das consciências africanas. Castiano e Ngoenha, contemporâneos deste último, propõem a metáfora de um reencontro no Estádio da Machava, berço do Moçambique independente, para discutirmos que país queremos.
Tal exercício é feito dividindo a história deste moderno Estado em duas épocas ou momentos. Sendo o primeiro de 75 a 90/92 e o segundo como a que a precede e hoje vivemos.
De forma resumida, assumindo o risco de demasiado simplista, o primeiro é o da tentativa de implantação de um Estado Socialista que é caracterizado, na interpretação dos autores, pela busca pelo bem social e igualdades.
A seguinte é a do multipartidarismo, abertura a liberdades política, social e económica que o anterior não teve. São deste segundo momento as aberturas a criação de órgãos de comunicação social independentes, organizações da sociedade civil e o mercado livre.
Não deixa, neste sentido, de ser simbolicamente relevante o facto de a tradução ser feita na língua falada em Roma que é o palco da ruptura ou do fim da primeira e início da segunda com a assinatura dos acordos de paz que impuseram o calar das armas que imperaram por 16 anos em Moçambique.
A proposta do livro é uma terceira via que seja capaz de resgatar os valores positivos de ambos contextos para a elaboração consciente e madura de um novo.
Libertos da guerra fria e do neoliberalismo e as suas correlações de força, a questão é como nos posicionamos internamente num contrato social estável?
Igualmente simbólico é recordar que, provavelmente, o Manifesto mais conhecido é o de Marx e Engels, publicado em 1848. Ambos pretendiam despertar o proletariado não apenas da Grã-Bretanha e da Prússia, mas do mundo inteiro sobre a sua condição e instiga-lo à emancipação.
Porém, para Severino e Castiano, assumindo as palavras do Ngoenha, a meta é dialogar com os moçambicanos. Daí que o autor de "O retorno do bom selvagem: Uma perspectiva filosófico-africana do problema ecológico" opte por escrever apenas em português, como o próprio disse em várias ocasiões e o repetiu no evento que serve de mote para estas notas. O poderia fazer em francês ou mesmo em italiano, pois morou e se formou na Itália e na França bem como na Suíça.
Coincide o seu relançamento da tradução que já tinha sido feita na Itália, ainda este ano, numa altura em que o país vive uma crise pós-eleitoral, diferentemente das anteriores em que apenas os partidos estavam envolvidos. Desta vez, como atestam as manifestações um pouco por todo o país, o povo igualmente reivindica justiça dos seus votos. E o advento tecnológico com a sua rapidez de circulação de informação trouxe a nu várias fraudes e algumas tentativas frustradas ao longo do processo.
Quando pensávamos que, pelo facto de estarmos a viver, igualmente, o primeiro sufrágio universal após mais uma assinatura de acordos de paz que culminou na Desmobilização, Desmilitarização e Reintegração dos membros da RENAMO que não saíram das matas em 94 e amplamente celebrada pelo sucesso, não teríamos mais peripécias que comprometessem a paz, debalde, nos enganamos.
A percepção de que a devolução completa das armas que estavam sob a posse da RENAMO e a desactivação, consequentemente, do seu braço armado, constituía um marco para a nossa jovem democracia na direcção da sua consolidação, nos equivocamos. E somos brindados, novamente, com o espectáculo triste que vemos.
O status quo nos leva a pensar que não estamos a ser capazes de resolver os nossos problemas. Não estamos a ser capazes de materializar a justiça social nem a permitir a efectivação das liberdades.
Neste contexto, a proposta de imaginarmos uma terceira via faz todo sentido. E nessa festa da imaginação, noutro livro, “Mondlane, regresso ao futuro”, Severino Ngoenha propõe o resgate do pensamento da figura considerada Arquitecto da Unidade Nacional, entre as possibilidades existentes. E porquê não, para uma terceira via?