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segunda-feira, 08 abril 2019 08:34

Morte aos changanas!

Escrito por

Aos africanos nossos irmãos, agredidos pela xenofobia na África do Sul"

 

"A história é uma ficção controlada" – Agustina Bessa Luís

 

São quatro horas de uma madrugada fria e lá fora ouvem-se gritos de guerra pronunciados em zulu, apelando à morte aos estrangeiros africanos, negros como os próprios zulu que não os querem na sua terra. É o terror em si que se anuncia com palavras como morte aos changanas e ndebeles e shonas e nigerianos e todos os invasores que estão na nossa terra para nos roubar o emprego e as mulheres! Morte à esses cães sem canil, changanas de merda! Morte à todos que não são daqui! Esta terra é o maná que os nossos antepassados nos legaram. Mabecos de um raio, hoje vocês vão morrer, sabujos de uma figa! Vamos-vos fornicar a todos, sentirão a perfuração destas azagaias que Tchaka Zulu nos deixou para nos defendermos. Estas facas são para vocês, decapitaremos um por um, hoje é o último dia da vossa vida. Rezem muito porque a festa vai começar, daqui há pouco será o corte do bolo. Morte! Morte! Morte!

 

Layitha sentiu a espinha gelar, espreitou pela fresta da porta e viu lá fora, naquela iluminação ténue proporcionada pelos candeeiros públicos pendurados nos postes, um grupo de homens que dançavam cânticos de guerra e bebiam e fumavam mbangui (canábis sativa), exibindo arcos com flechas e facas e paus. Pouco tempo depois, quando voltou para a sua precária cama, sentou-se na borda olhando para o companheiro que continuava deitado. Ouviu gritos de socorro na casa vizinha. Voltou à porta, espreitou novamente e viu que a habitação ardia com pessoas lá dentro, e os que ateavam o fogo libertavam gritos animalescos, dançando ao mesmo tempo para celebrar a morte dos seus irmãos que pecam por ser estrangeiros que estão na África do Sul à procura de melhores condições para as suas vidas.

 

Mas aquilo era apenas o começo da matança. Os agressores deixaram o dia clarear, e o que se viu depois foi a chacina em si, Layitha balançou na sua casota sem saber se esperava a morte lá dentro ou ia ao encontro dela, sim, porque de qualquer  das formas a morte era certa, dentro ou fora ela cairia estrondosamente sobre si, como já caiu sobre muitos outros seus compatriotas e muitos outros africanos assassinados simplesmente por serem estrangeiros que procuravam trabalho no El Dourado da África.

 

O mais estranho é que desde que começou a investida, de madrugada, até agora que o sol se ergue trémulo para espantar o frio e o nevoeiro, ainda não se viu nenhum polícia. Os sul-africanos odiosos agem em liberdade, violam as portas das casas dos estrangeiros africanos, insultam-nos, agridem-nos, matam-nos e dançam sobre os cadáveres. Há ainda aqueles que obrigam os infortunados, caídos no chão, a abrirem as bocas para dentro delas urinar com gozo, pronunciando palavras humilhantes em zulu, evocando as partes íntimas das mães e das mulheres daqueles que abandonaram a sua terra à demanda da vida, hoje vamos-vos rebentar o ânus, seus cães, changanas de merda, quem vos disse que aqui é terra de Samora!

 

É meio da manhã e agora notam-se timidamente algumas viaturas da Polícia que desembarcam agentes armados com metralhadoras e extintores de fogo. Logo a seguir chegam outros homens da lei montados em cavalos que troteiam à volta sem qualquer acção para afastar os manifestantes xenófobos que continuam a agredir os estrangeiros e a matar. No meio do pânico sangrento um homem em chamas vai ao encontro das autoridades, corre em zig-zague tentando inutilmente apagar o fogo que lavra no seu corpo, proporcionando um espectáculo surreal, e o agente que está à ilharga com extintor em punho, aguarda o tempo suficiente para que o infortunado em chamas seja filmado no seu teatro desgraçado. Macabro. Satânico. E só depois, quando já não havia mais esperança, é que aos risos, o agente da autoridade apaga as chamas de uma pessoa já apagada.

 

Para os moçambicanos e outros estrangeiros parecia que a chegada da Polícia era a salvação, mas enganaram-se. Ao tentarem aproximar-se das autoridades à busca de protecção, eram enxotados como galinhas. Ao verem gente correndo na sua direcção, os gendarmes disparavam tiros ao ar, e as pessoas que corriam para o lado onde estavam as armas que supostamente os defenderiam, voltavam para o lado de outras armas, das quais fugiam, e essas outras armas eram usadas à frio sobre homens indefesos. Foi quando Layitha percebeu que daqui não sairia vivo, nem morto, porque o seu corpo seria queimado, e as cinzas ficariam ali mesmo misturadas com a poeira que seria levada para o interior das casas e casebres, e um desses casebres era o dele.

 

Pegou na sua minúscula sacola onde tem acondicionados a roupa e o dinheiro em notas de rand, aconchegou-a no peito, vergou a espinha e espreitou lá fora, outra vez, onde voltou a ver o mesmo drama, a mesma morte pairando e desabando sobre os homens sem parar, balançou para frente e para trás e, sem dizer nada ao companheiro que continuava deitado a fumar sem parar, saiu a correr para lugar incerto, juntou-se aos outros que também fugiam, uns escapando e outros apanhados na rede de emalhar que o diabo tinha estendido. Layitha corre como um jogador de râguebi, com a bola bem segurada no peito, com a diferença de que o que levava ao peito não era a bola de râguebi, mas a sacola contendo a roupa e o dinheiro que amealhou durante o tempo que está numa terra que agora se torna hostil.

 

Layitha corre resoluto sem olhar para trás, mete-se num beco avançando como uma pantera sem veneno, cheia de medo, o beco leva-lhe à uma ruela. Pára. Não sabe se vai à direita ou à esquerda, tanto faz, pensava o homem, a morte está instalada em todo o lado, tanto à esquerda, como à direita posso encontrá-la, não sei aonde é que está a minha salvação, ou à minha derrocada, mas eu vou assim.

 

Escolheu a direcção do pôr-do-sol, e não passou muito tempo para perceber que corria sozinho. Naquela via não se via ninguém.  Já não ouvia os gritos nem o som das armas, as casas por ali eram dispersas. Susteve a marcha sem saber se continuava na mesma direcção ou se voltava para trás, ou virava por um dos caminhos que se iam abrindo à sua frente nas laterais. Estava um dia bastante frio, mas Layitha está suficientemente agasalhado para suportar as baixas temperaturas, até porque o seu corpo, aquecido pelos movimentos da corrida, e pelo medo instalado no seu interior, não lhe deixavam perceber a agressividade do tempo que faz.

 

Virou por um caminho à esquerda, seguindo um instinto estranho. Sentiu estremecimentos na espinha, e a experiência da vida dizia-lhe que algo terrível iria acontecer. Não passou muito tempo, à sua frente vinham dois homens  que caminhavam um atrás do outro, numa marcha suspeita, reduziu a passada e pensou rapidamente que devia voltar para a rua. Rodou sobre o seu próprio eixo e quando encetou os primeiros passos de corrida, notou que dois outros homens vinham para ele, na mesma posição que os primeiros, um atrás do outro, e percebeu que estava encurralado. Das laterais não havia como fugir porque levantavam-se ruinas daquilo que podiam ter sido gigantescas construções. Ajoelhou-se e disse aos quatro homens que levassem todo o dinheiro que tinha na sacola e o deixassem vivo. Falou em zulu e rogou que o não matassem, falava ajoelhado com as mãos atrás das costas como se estivesse atado, lembrando o dia em que Abrão levou o seu filho Isac para oferecê-lo em sacrifício à Deus, em Muria.

 

Um dos algozes sacou do interior da jaqueta um enorme canivete que obedece a um comando manual para abrir a parte da navalha, que parecia de prata. Brilhou ao sol preguiçoso e Layitha, frio como mármore, manteve as mãos atrás das costas, agora sem dizer nada. Tinha a cabeça absolutamente pendida para o peito, oferecendo, deste modo, a nuca. Por inteiro. Naquela posição Layitha parecia Isac, esperando que o seu pai Abrão desferisse o golpe fatal. Já não era ele. Instalou-se o silêncio das catacumbas, e um dos quatro, que parecia ser o líder, fez um sinal com a cabeça, e a navalha foi espectada no pescoço do homem condenado. Este levantou a cabeça para trás perante o impacto, e logo a seguir voltou à mesma posição. O assassino retirou a faca, e um enorme jacto de sangue levantou-se molhando-lhe o rosto. Furioso, desferiu novo golpe no mesmo sítio, e Layitha largou os braços, caíu de bruços. Esparramado para sempre.

 

*Excerto de um livro do autor, no prelo.

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