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terça-feira, 15 agosto 2023 11:21

Breve reflexão sobre o comportamento das instituições de justiça no contexto da Greve dos Médicos

Escrito por

JoaoNhampossanovaa220322

A imprensa e as redes sociais têm demonstrado ao público em geral que, em certa medida, a gestão governamental sobre a greve dos médicos está a ser feita com base em ameaças de instauração de infundados processos disciplinares contra os médicos grevistas, o que inclui ordens ilegais, as chamadas ordens superiores, para marcação de faltas aos médicos que não comparecem ao posto de trabalho por estarem a exercer o direito fundamental à greve. É neste contexto que em várias unidades sanitárias, nas quais a greve se manifesta, já está em curso o processo de marcação de faltas, com ordem para os departamentos dos recursos humanos e da administração e finanças procederem aos descontos nos salários ou vencimento dos médicos grevistas, independentemente de instauração de processo disciplinar, atendendo à efectividade dos mesmos, no sentido de que as faltas pelo exercício do direito fundamental à greve em questão são injustificadas.

 

Aliás, o Governo, através do seu porta-voz das sessões do Conselho de Ministros, veio a público fazer eco da alegada ilegalidade da greve dos médicos e das ameaças de represálias de diversa natureza sobre os mesmos, incluindo intimidações de desvinculação do aparelho do Estado dos grevistas, por via da contratação de 60 novos médicos. No mesmo sentido, a Governadora de Manica veio de viva voz ameaçar os médicos que trabalham a nível daquela Província que dirige, ordenando, sem qualquer legitimidade e base legal, a marcação de faltas e instauração de processos disciplinares contra os médicos que estão a exercer o direito fundamental à greve.

 

Acresce a esses actos abusivos de poder o facto de o Governo estar a denegar renovar os contratos dos médicos grevistas, bem com em não proceder à nomeação definitiva dos mesmos, conforme revela a Associação Médica de Moçambique (AMM). A mesma AMM tem ainda denunciado outros abusos que estão a ser praticados silenciosamente com base em famigeradas ordens superiores, do tipo ameaças de transferências de local de trabalho e despromoções. Mais do que isso, é o facto de o Governo pretender levar a cabo a revisão do Regulamento do Estatuto do Médico na Administração pública com vista a retirar os direitos adquiridos em claro prejuízo do sector da saúde pela completa desmoralização dos médicos pela falta de condições salarias adequadas de trabalho.

 

Inércia do Ministério Público e da Assembleia da República face à Greve dos Médicos

 

Nos termos da Constituição da República de Moçambique (CRM) e da Lei Orgánica do Ministério Público – aprovada através da Lei n.º 1/2022, de 12 de Janeiro, o Ministério Público zela pela observância da legalidade e fiscalização do cumprimento das leis e demais normas legais. É ao Ministério Público que cabe o controlo da legalidade no ordenamento jurídico moçambicano.

 

A Greve dos Médicos tem suscitado preocupações e debades sobre a sua legalidade e sobre a garantia dos serviços míninos. E, enquanto o MISAU, ou seja, o Governo de Moçambique, assume a posição de que a presente greve é ilegal, outras instituições, como é o caso da Ordem dos Médicos de Moçambique, e diversas personalidades, sobretudo a nível das organizações da sociedade civil, defendem a posição de que a greve dos médicos é legal e que se trata de um exercício legítimo de um direito fundamental que está a ser feito dentro do quadro constitucional vigente no País.

 

Ora, esta greve dos médicos, pelas suas caracteríscas e circunstâncias em que está a ser levada a cabo, revela, indubitavelmente, tratar-se de matéria de interesse público, até porque as causas e finalidades da mesma, conforme o caderno reivindicativo que a sustenta, se enquadram no âmbito dos objectivos e políticas de desenvolvimento do Estado no sector da saúde. A greve tem mexido bastante com a questão da garantia dos serviços mínimos no sector da saúde, para além de que, directa e indirectamente, afecta negativamente os cidadãos utentes dos serviços de saúde, sobretudo os pobres, cuja satisfação e garantia cabe ao Estado em primeira linha.

 

Estranhamente, perante toda a dicussão sobre a legalidade desta greve e as consequências negativas que a mesma está a ter no desenvolvimento do sector da saúde e na vida dos cidadãos pelo deficiente acesso à saúde, incluindo os actos de ameaças, intimidações e abuso de poder praticados por vários órgãos e entidades governamentais contra a classe médica em greve, o Ministério Público não se pronuncia sobre a (i)legalidade da greve e conduta abusiva do Governo contra os médicos grevistas, tendo em conta a sua qualidade de garante da legalidade e representante dos interesses do Estado.

 

Por sua vez, a Assembleia da República, representante dos interesses do povo, conforme determina a CRM, perante o facto da Greve dos Médicos ter colocado a nú a falta de entendimento sobre o significado e alcance da garantia dos serviços mínimos, bem como o grave prejuizo do vazio legal relativamente à legislação específica sobre o exercício do direito à greve na função pública, ainda não se pronunciou sobre a alegada (i)legalidade desta greve. A Assembleia da República, sendo autora material e formal da CRM, bem como do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado e da Lei sobre a Sindicalização na Função Pública devia pronunciar-se sobre os termos do exercício do direito fundamental à greve plasmado no artigo 87 da lei mãe e dissipar equívocos de interpretação.

 

Não se percebe a razão pela qual o Ministério Público e a Assembleia da República, numa situação em que são, por lei, obrigados a intervir, se furtam ao seu papel de fiscalizar o cumprimento da lei e garantir a correcta interpretação e implementação da CRM e das demais relativas ao exercício da greve. Estranhamente, também, quase que nada fazem para educar os cidadãos e as entidades e órgãos relevantes sobre o exercício dos direitos e liberdades fundamentais em causa.

 

Morosidade processual no Tribunal Administrativo

 

Em Dezembro de 2022, a AMM interpôs, no Tribunal Administrativo, um processo de excepcional urgência para esta jurisdição administrativa intimar a direcção máxima do Ministério da Saúde a respeitar o exercício do direito fundamental à greve pela classe médica e para se abster de praticar condutas ameaçadoras, arbitrárias ou de abuso de poder ou que se traduzem em qualquer tipo de violação contra os médicos grevistas pelo facto da greve em apreço ser legal, legítima e exercida dentro do quadro da CRM.

 

No entanto, o supra referido processo urgente ainda não foi objecto de decisão por parte do Tribunal Administrativo e já revela excessiva morosidade processual, uma vez que já devia ter sido proferido o correspondente Acórdão justo e consciencioso, dada a natureza urgente do processo, para além de se tratar de direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, com destaque para os médicos e para o povo que estão a ser vítimas de falta de acesso à saúde de qualidade e em tempo útil.

 

A esperada decisão do Tribunal Administrativo sobre este caso pendente, desde que se debruce sobre o mérito da causa, irá ajudar a perceber melhor os termos do exercício do direito fundamental à greve na função pública, bem como sobre a conduta do Governo na gestão da mesma greve e se as ameaças têm qualquer base legal para o efeito.

 

No entender da AMM, a demora no desfecho do referido processo está a dar espaço para o Governo perpetuar as ameaças e outras condutas abusivas contra os médicos grevistas, para além de estar a criar um ambiente de descrédito do sistema de justiça aos olhos dos cidadãos que não entendem a razão de excessiva morosidade processual.  

 

Provedor de Justiça e Comissão Nacional dos Direitos Humanos

 

A função primordial do Provedor de Justiça e da Comissão Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) consiste na garantia dos direitos e liberdades dos cidadãos, na defesa da legalidade e da justiça, bem como na promoção dos direitos humanos. Todavia, estes dois órgãos de justiça extrajudicial não se têm manifestado sobre a problemática do exercício do direito à greve dos médicos, nem sobre a denegação do direito à saúde pelo Estado pela não resolução do problema que levou os médicos a enveredarem pelo exercício do direito fundamental à greve. Ou seja, enquanto o Governo não satisfaz as reivindicações dos médicos, o efeito directo dessa teimosia é a violação do direito à saúde dos cidadãos, sobretudo os pobres. Não faz sentido e é preocupante o silêncio do Provedor de Justiça e da CNDH perante um assunto tão complexo e de interesse público prioritário que se enquadra nas atribuições e actuação desses mesmos órgãos da Justiça.

 

Concluindo

 

Do acima dito, é notório que o sistema de justiça moçambicano está cada vez mais distante ou alheio aos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, aos direitos humanos e à realização da almejada justiça para os pobres, senão proteger o Governo, independentemente das violações que pratica contra os cidadãos. Trata-se, pois, de mais um caso flagrante da dita “justiça mais forte com os fracos e fraca com os fortes”, o que já é apanágio do sistema de justiça moçambicano. Portanto, está na hora das instituições de justiça competentes responsabilizarem as entidades e órgãos da Administração Pública pelas ameaças e aplicação de represálias aos funcionários e agentes do Estado por exercício legítimo do direito à greve e do associativismo no quadro da Constituição.

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