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domingo, 06 novembro 2022 11:59

JORGE VIEGAS, 75 ANOS

Escrito por

NelsonSaute

O Poeta Jorge Viegas, de seu nome completo Jorge Alberto Viegas, nascido em Quelimane, a 6 de Novembro de 1947, faz hoje 75 anos. Publicou, muito jovem, aos 19 anos, em 1966, “Os Milagres”, o seu livro de estreia. Seria, porém, ao ver os seus poemas estampados nos cadernos de poesia “Caliban”, editados por João Pedro Grabato Dias e Rui Knopfli, dois nomes importantes da nossa lírica, que se sentiria reconhecido como poeta. Não é caso de somenos importância: estava acompanhado de José Craveirinha, Rui Nogar, Sebastião Alba, João Pedro Grabato Dias, Rui Knopfli (para citar os nomes locais), ou Jorge de Sena ou T.S. Eliot (traduzido por Knopfli e apresentado por Eugénio Lisboa). Isto em 1971, no ano em que o jovem promissor está à beira dos 24 anos.

 

Quando publica “O Núcleo Tenaz”, a sua obra mais significativa, na mítica colecção Autores Moçambicanos, do INLD, na brevíssima nota biográfica, na contra-capa da obra, este facto (a sua colaboração nos cadernos “Caliban”) merece destaque. Não refere aí o seu livro primaveril. Do autor vai constar ainda o facto de exercer as funções de Director de Finanças, em Nampula, onde então residia. Estávamos em 1982, Jorge Viegas tinha 35 anos. Começara, porém, a experimentar as amolações da revolução. Vivíamos tempos alvoroçados. Abatido, exaurido, fatigado, profundamente doente, aparta-se da Pátria, no ano seguinte.

 

Do meu país as aves se ausentaram / e com elas se foi a vida, a alegria. / E os poetas, nos versos que cantaram, / foram pássaros de morte e de melancolia”. À esta distância, eu diria que estes acerados versos subscrevem o anátema do nosso destino individual e colectivo. A despeito, um poeta capaz de semelhantes versos tem direito a habitar a nossa mitologia literária. Jorge Viegas, avaro e escasso, rebelde e tenaz, indômito e soturno, eufórico e taciturno, canta sempre a vida e a morte, proclama a liberdade, ama voluptuosamente as palavras. Nos tempos em que a revolução concitou o seu entusiasmo teve dele uma adesão comedida. Nunca foi panfletário, sempre um subversor da linguagem.

 

“O Núcleo Tenaz” inicia com um poema que traz uma epígrafe que é também uma espécie de programa ou, até, epigrama: “A Pátria está nos livros que eu não li”. Este poema, sem título, evoca, no seu primeiro verso, o Poeta, que enuncia: “As pátrias nascem, crescem, / vivem dentro de nós.” Mais adiante em “Fala de um guerrilheiro”: “Neste tempo de susto e de loucura, / Tempo de fome e tempo de amargura / A Pátria cresce em nós num sonho puro.”

 

Acto contínuo, na página seguinte, o poeta da “Subversão” prescreve o tom da insurreição: “O pintor subverte a paisagem. / O poeta subverte os planos da linguagem. / O guerrilheiro subverte os homens sem mensagem. // Subverte. Subvertemos. / Subvertidos fomos. / À subversão devemos / A estatura do que somos.” Sublinho: “À subversão devemos / A estatura do que somos”. Este poema, este tom subversivo, esta sublevação poética, também seriam o mote da geração que viria a despontar nos anos 80 quando esta obra foi publicada. Alguns dos poetas da minha geração – Eduardo White sobretudo – reclamam-no. “O Núcleo Tenaz” foi, para alguns de nós, uma espécie de breviário.

 

Era o tempo no qual “o inimigo move-se no arco dos azimutes”, tempo onde: “Baionetas caladas / Perfuram a noite. / Permaneço de pedra. / Transmudado em basalto”.  Isto na “Canção de Bagarila”, dedicada a José Craveirinha. Aliás, as dedicatórias neste livro para além de denunciarem laços poéticos inextricáveis, são uma espécie de cartografia lírica do autor. A Sebastião Alba dedica-lhe Jorge Viegas o poema que dá título ao livro onde estão inscritos estes versos: “Com o poema / abriremos a noite, / jugularemos o medo.” “Porque o poema é sempre / (mesmo o das palavras mansas e amáveis) / o núcleo tenaz / duma revolução.”

 

Poesia que adere ao sonho sem ser necessariamente panfletária. O fervor da revolução numa escrita vigiada obstinadamente. Parece que estamos perante uma contradita? “Ao escreveres um poema / articula bem as palavras, / todas as palavras necessárias, / para que elas permaneçam intactas / não na brancura do papel, / mas grafadas, indelevelmente, / na memória dos homens”, conclama Viegas.

 

Provavelmente, o verso que cito a seguir resolva o paradoxo de uma poesia engajada que não é necessariamente panfletária: “As palavras estão no começo e no fim de todas as cousas”. Creio que está aí a chave. No texto “Poema” diz o poeta: “E canto. / E evoluo nas minhas coordenadas. / “Que os humanos se matem às dentadas” / Pois que, por enquanto, / eu escrevo poemas para mulheres sentadas”.

 

Nos primórdios da década de 80, a revolução revela algumas fissuras e começa a conhecer-se-lhe um certo refluxo. Uma brutal e indisfarçável crise social denunciava-lhe o impasse. Não deixa de ser admirável, neste contexto, a afoiteza do poeta. Neste mesmo livro, o tom lírico, que ao tempo era uma espécie de sublevação, vai-se acentuando: “O teu corpo de planos e derrotas, / Onde esvoaça à pura luz da aurora, / A exilada sombra das gaivotas”. (“Guida”). Ou: “o amor fende as águas da melancolia”. Ou ainda: “Há um lugar de sombra nos teus olhos. / Nesse lugar me deito e adormeço.”

 

“O Núcleo Tenaz” é também um livro de desencanto. Num texto ominoso, dedicado a Rui Knopfli (“Círculo de Sombra”): “A minha alma é um círculo de sombra. / Os meus poemas são a pálida mensagem / dum homem melancólico. Se sou poeta, / decerto não sou do tempo presente.” Há lugar para uma certa distopia aqui. “Escrevo poemas de amor, e os meus poemas / não conduzem os povos à contestação. / Gosto de passear nas ruas a antiga liberdade / que eu sei haver nos poetas que mais amo”. É um dos mais belos e pungentes poemas deste poeta moçambicano.

 

Esta inflexão acentua-se no poema seguinte: “Eu escrevo poemas, / somente para fugir à sedução, / ao trágico pendor da minha alma / por uma poça negra, / tão funda como a morte”. Aqui está o desengano. Em “A Esperança Aracnídea”, dedicado a Rui Nogar: “No espaço de sombra / das palavras que escrevo / o futuro é ilegível”. Ou mais adiante: “Sobreviventes do naufrágio de nós mesmos”. Torna-se flagrante este dissídio quando em “As palavras são poucos” o poeta escreve: “As palavras são poucas / para explicar o cansaço, / o desânimo de estarmos / inevitavelmente vivos.”

 

“O Poeta / é o que tem a memória límpida de alguns lugares / onde não foi em data nenhuma a sua vida.” Eu diria que este livro que vai da adesão à revolução à disforia aquando do seu refluxo é, ao mesmo tempo, belo e lancinante, melancólico e profundo, escrutina ou perscruta, o mais profundo do seu ser.

 

O livro seguinte, “Novelo de Chamas”, publicado em 1989, em Lisboa, pela ALAC, de Manuel Ferreira, experimenta os limites dessa circunstância biográfica adversa do autor, marcada pela exaustão, pela descrença, pela prostração, pela angústia e pela tribulação. Mesmo quando afirma em “Brancura viva”: “Da obscura noite do sonho / nasce a brancura vida do poema”, o que encontramos neste livro profundamente taciturno? “Sinais de morte?”

 

No poema “Necrologia” parece chegar-se ao limite do paroxismo: “Acaba de morrer / na sua residência circular / de Illinois ó Prata, / o poeta moçambicano / Jorge Viegas. / Paz à sua alma”. “Nenhuma aspa de luz me ilumina, / nenhum deus vela à minha cabeceira.” Poesia agoirenta, aziaga, sinistra, consternada, amargurada, sorumbática, agónica.

 

Mas sempre uma poesia reveladora do seu alto estro, capaz de versos sublimes: “fina haste de melancolia”, “os açulados nervos da linguagem” ou “a fúria vocabular de deus”, entre outras tiradas, que denunciam o conseguimento daquilo que o poeta alvitra ser “a tentativa de fazer / com as palavras, / o que a Ralenkova / faz com o arco”.

 

Para além destas obras, os poemas de Jorge Viegas estão coligidos em “No Reino de Caliban III” (1985), de Manuel Ferreira, na “Antologia da Nova Poesia Moçambicana” (1993), que co-organizei com a Fátima Mendonça e em “Nunca Mais é Sábado” (2004), antologia de poesia moçambicana. “Novelo de Chamas”, publicado há 33 anos, foi a sua última obra conhecida. Foi nessa época em que o conheci pessoalmente e tivemos um cordial embora limitado convívio.

 

Num texto mítico (“Notas para a recordação do meu mestre Fonseca Amaral”), o Poeta Rui Knopfli escreve: “Fonseca Amaral é, por direito e mérito próprios, um dos nomes mais altos e representativos da Poesia em Moçambique e, simultaneamente, por desleixo ou abulia, um dos menos conhecidos e apregoados, espécie de grande ausente nos vários certamos em que vamos acrescentando pátina às nossas acanhadas glórias caseiras”. Eu diria exactamente o mesmo de Jorge Viegas. Proferiria as mesmas palavras. Esta efeméride, os 75 anos do Poeta Jorge Viegas, constitui, por conseguinte, um facto literário importante e um pretexto para o lembrar e celebrar.

 

No texto que redigiu para o prefácio de “Novelo de Chamas”, Luís Carlos Patraquim diz o seguinte deste poeta muitas vezes omisso entre nós: “É esse Ser, esse deus ou deuses plurais, que desde longa data vêm habitando a Poesia deste Jorge Viegas, ora sarcástico, ora terrível, ou angustiado como um dos escolhidos para descobrir no deserto o maná da sua travessia”.

 

No poema “A loucura”, Jorge Viegas escreve: “De louco e de poeta / todos temos um pouco. / Mas eu tenho mais de louco”. Isto é óbvio sarcasmo. No entanto, este poderia ser um epigrama da vida, da biografia ou do destino deste poeta que escreve dolorosa e profeticamente estes terríveis versos: “No meu país / a única forma de liberdade permitida / é a loucura”.

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