A prática da usurpação da terra, sobretudo das comunidades locais afectadas pelos grandes investimentos, bem como a prática do negócio ilegal de compra e venda da terra constituem parte das barreiras mais frequentes na salvaguarda do Direito de Uso e Aproveitamento da Terra (DUAT) dos seus legítimos titulares, particularmente os pobres, mulheres e demais grupos vulneráveis no acesso à terra.
São vários os casos em que as comunidades locais vêem as suas terras usurpadas e vendidas a outras pessoas com considerável poder económico, facto que tem gerado muitos conflitos de terra, com difíceis meios e oportunidades de resolução, devido à complexidade e falta de clareza dos mecanismos de tutela do DUAT, sobretudo quando estão envolvidas as grandes empresas, com destaque para as multinacionais, os quais têm significativa influência sobre as relevantes autoridades na gestão da terra, incluindo o poder político.
De alguma forma, alguma legislação que regula o DUAT parece permitir espaço para a prática dissimulada da compra e venda da terra e para usurpação da mesma, senão vejamos;
As normas contidas nos n.ºs 4 e 5 do artigo 15 do Regulamento da Lei de Terras, aprovado pelo Decreto nº 66/98, de 08 de Dezembro, determinam o seguinte, respectivamente:
- “A celebração de contratos de cessão de exploração está igualmente sujeita à aprovação prévia da entidade que autorizou o pedido de aquisição ou de reconhecimento de direito de uso e aproveitamento da terra e, no caso das comunidades locais, depende do consentimento dos seus membros.”
- “Os contratos de cessão de exploração só são válidos quando celebrados por escritura pública.”
As normas em referência, do Regulamento da Lei de Terras, não têm qualquer correspondência com o teor de qualquer norma contida na Lei n.º 19/97, de 1 de Outubro (Lei de Terras). Em bom rigor, a Lei de Terras não consagra o mecanismo jurídico que consiste na cessão de exploração do DUAT, embora estipule no n.º 2 do seu artigo 16 que “Os titulares do direito de uso e aproveitamento de terra podem transmitir, entre vivos, as infra-estruturas, construções e benfeitorias nela existentes.” É evidente a desconformidade entre estes dois diplomas legais. Aliás, considerando que o Regulamento da Lei de Terras é hierarquicamente inferior à própria Lei de Terras e sendo esta lei o fundamento daquele Regulamento, é deveras notória a aventura juridicamente incoerente, senão ilegal, deste Decreto em pretender regulamentar matéria não prevista na Lei de Terras.
Noutros termos, é, pois, axiomático que o Regulamento da Lei de Terras está em contradição com a própria lei que visa regular, na medida em que procura regular matéria que não está prevista na Lei de Terras sob qualquer forma, o que configura uma flagrante ilegalidade, considerando que os limites e a fonte do Regulamento da Lei de Terras residem na própria Lei de Terras.
A mecanismo da cessão de exploração prevista nos n.ºs 4 e 5 do artigo 15 do Regulamento da Lei de Terras pode estar a ser usada ou aplicada para efeitos de celebração de negócios obscuros para aquisição de DUAT ou exploração ilegítima das terras das comunidades locais.
No contexto do projecto para a exploração de GNL, na região de Afungi, Distrito de Palma, na Província do Cabo Delgado, sobre terras das comunidades directamente afectadas por este projecto, com destaque para a comunidade de Quitupo, foi emitido um DUAT definitivo emitido no dia 31 de Maio de 2017, sobre uma área de quase 7.000 hectares, através do título nº 004/2017, a favor da empresa Sociedade Rovuma Basing LNG Landa – RBLL.
Estranha e curiosamente, esse DUAT foi, numa primeira fase, atribuído à Empresa Nacional de Hidrocarbontetos (ENH), em Setembro de 2012, a título provisório, seguidamente, a ENH transferiu o mesmo DUAT a favor da sociedade Rovuma Basis LNG Land, Lda (RBLL), em Dezembro de 2012. Por sua vez, a RBLL cedeu o mesmo DUAT à exploração exclusiva pela Anadarko e a transmissão do DUAT em questão teve por base um contrato de cessão de exploração, cuja transparência e legalidade são desconhecidas. Actualmente, a multinacional Total é que está a explorar as referidas terras no âmbito do projecto de gás em Palma.
A gestão da terra cabe ao Estado que tem a obrigação exclusiva de determinar as condições de uso e aproveitamento da mesma, conforme resulta do disposto no nº 1 do artigo 110 da Constituição da República. Aliás, os n.ºs 1 e 2 do artigo 109 da Constituição da República determinam que a terra é propriedade do Estado e não deve ser vendida, ou por qualquer outra forma alienada, nem hipotecada ou penhorada.
A celebração de contrato de cessão de exploração de DUAT das comunidades afectadas pelo projecto de exploração do gás na Bacia do Rovuma apresenta sérios sinais de um processo de venda da terra ou alienação em clara violação da Constituição da República.
O Regulamento da Lei de Terras consagra a figura de contrato de cessão de exploração de forma extremamente ambígua e não é claro sobre o objecto da transacção. Mesmo assim, é perceptível que não deve incidir sobre a terra propriamente dita. O Regulamento não se refere em que medida o contrato de cessão de exploração incide sobre o DUAT.
Importa aqui referir que a Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM), em defesa do Estado de Direito e dos direitos sobre a terra das comunidades afectadas pelo projecto do gás em Palma, interpôs, no ano de 2018, um processo no Tribunal Administrativo, mas este órgão jurisdicional decidiu negar, a todo o custo, conhecer do mérito da causa, no sentido de julgar o fundo da questão que é a ilegalidade ou não do processo de transmissão do referido DUAT das comunidades afectadas pelo projecto de exploração do GNL em Palma, conforme o Acórdão n.º 77/2019, referente ao processo n.º 121/2019-P do Tribunal Administrativo.
Chamado o Conselho Constitucional para apreciar a ilegalidade das normas em causa do Regulamento da Lei de Terras, o mesmo órgão de soberania especializado em matérias de natureza jurídico-constitucional decidiu, através do acórdão n.º 22/CC/2019, de 14 de Novembro, nos seguintes moldes: “…não declarar a ilegalidade dos n.ºs 4 e 5 do artigo 15 do Decreto n.º 66/98, de 8 de Dezembro, Regulamento da Lei de Terras, que estabelecem o contrato de cessão de exploração, como uma das formas de transmissão temporária de infra-estruturas, construções e benfeitorias, ao lado do contrato de compra e venda das mesmas, e a sua sujeição à escritura pública e autorização da entidade concedente do DUAT e, no caso das comunidades locais, ao consentimento dos seus membros, como requisito de validade formal do respectivo negócio jurídico.
Basicamente, entende o Conselho Constitucional no seu Acórdão n.º 22/CC/2019, de 14 de Novembro, que o contrato de cessão de exploração introduzido pelos n.ºs 4 e 5 do artigo 15 do Regulamento da Lei de Terras incide sobre as infra-estruturas, construções e benfeitorias existentes no terreno sobre o qual o cessionário adquiriu o DUAT, ou seja, que o contrato de cessão de exploração não incide sobre a terra, considerando ainda que este tipo de contrato é, por natureza, um contrato de locação, em conformidade com o artigo 1022.º do Código Civil.
Ora, no polémico caso de alegada cessão de exploração no contexto dos direitos sobre a terra das comunidades afectadas pelo projecto de exploração do gás em Palma não se percebe quais as infra-estruturas, construções e benfeitorias implantadas naquelas terras que foram cedidas àquelas empresas, temporariamente, para a fruição das mesmas! Em bom rigor, neste caso, a terra é que foi negociada em nome da figura da cessão de exploração, uma vez que está consagrada de forma atabalhoada no Regulamento da Lei de Terras sem qualquer correspondência com o artigo 16 da Lei de Terras.
Apesar de polémica e dúbia a forma de transmissão do DUAT baseada na cessão de exploração nos termos concebidos no Regulamento da Lei de Terras, a revisão da Política Nacional de Terras não trata desta questão para melhores esclarecimentos, directrizes e maior protecção dos direitos sobre a terra das comunidades locais, em especial, considerando que há sinais de que a cessão de exploração que aqui se refere pode ser um mecanismo dissimulado da venda da terra.
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos