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segunda-feira, 04 julho 2022 07:50

Sengue *

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Sentou-se ao meu lado – no “chapa” – com os braços apertando os livros sobre o peito, faz um frio de enregelar. Olhei para ela e a sensação que me ficou era de estar a ver um passarinho sem o aquecimento das asas da mãe. Saudou-me educadamente com um “bom dia” perturbador, no sentido de que a voz era profunda demais para uma criança. Lembro-me que tremi um pouco, sobretudo quando – olhando para mim – perguntou-me, como está? Era a primeira pessoa que me cumprimentava naquele dia, ainda por cima uma petiz que vai à escola com os livros apertados ao peito por braços frágeis, então isso é uma benção que me é dada, não tenho a menor dúvida.

 

- Eu estou bem, e tu, como é que estás?

 

- Eu também estou bem, obrigada.

 

Ambos apanhamos o pequeno autocarro em Nhapossa (Inhambane), bairro que apesar de estar em franco crescimento, está mais do que desordenado. Eu vou à cidade dar azo à minha liberdade de quase vadio, e a minha companheira de viagem vai à busca do saber, e amanhã – quem sabe – será um candelabro. Até porque, por aquilo que demonstra, tem dois fundamentos essenciais para se chegar ao topo, a educação e a humildade. Esses são os pilares da sabedoria.

 

Os vidros do “chapa” estão embaciados, as temperaturas do ambiente são muito baixas por estes dias. Eu estou bem agasalhado, mas a menina não está, é por isso que não tira os braços do peito e os cotovelos por sobre os joelhos, que se batem constantemente entre si, aliás todo o corpo dela treme um pouco e isso dói-me o coração. Então senti que devia fazer qualquer coisa por um anjo incapaz de se proteger devidamente.

 

- Como é que te chamas?

 

- Chamo-me Sengue

 

- Quem te deu esse nome tão lindo?

 

- É o meu pai.

 

- O teu pai é maluco

 

A menina sorriu quando lhe disse que o pai era maluco. Depois disso ficamos cerca de cinco minutos sem dizer nada um para o outro, enquanto escutávamos o silêncio que se ouvia no interior do “chapa” em marcha moderada, mas o silêncio dela é que se ouvia mais dentro de mim. Fiquei assustado. Se calhar ela não percebeu o sentido do maluco que eu outorgava ao seu progenitor. Posso a ter magoado, e se for assim, então vou sofrer por muito tempo,  provavelmente toda a vida. Não se magoa a uma criança.

 

- Menina, desculpa, não quis magoar-te

 

- O senhor não me magoou, percebo perfeitamente o que quer dizer com o maluco que chama ao meu pai, eu já lhe disse isso muitas vezes. Digo-o sempre, sobretudo quando ele bebe um copo e canta coisas que me põem maluca, também.

 

- Obrigado.

 

Mas  eu queria fazer qualquer coisa por alguém que abre as cortinas do meu dia, assim da forma tão amorosa e tão linda e tão desinteressada, então perguntei, não tens uma camisola mais grossa que esta? Ela disse que não, “esta é a única que tenho”. Pedi o número do celular do pai e ela deu-me sem hesitação, na mesma altura em que se preparava para descer e dirigir-se à escola. O chapa parou e ela desceu, fazendo-me um “tchau” com a mão leve e um sorriso cândido.

 

* Flores, em bitonga

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