Boa tarde a todos
Sinto-me bastante honrado em estar aqui neste lugar que hoje nos acolhe, e dar-vos as boas vindas. Na verdade estamos todos em igualdade de circunstância, não exactamente para um almoço de confraternização, mas para uma viagem no tempo, em busca de algo que nos faça ressurgir como geração, ou como testemunhas da geração constituída por uma panóplia de homens e mulheres nascidos para brilhar, cada um com a sua luz, porém do mesmo maná. E eles luziram enquanto vagueavam por aqui, como manhambanas típicos de uma cidade que se recusa a mudar, para além dos seus limites demarcados pela pacatez.
Estamos aqui para uma conversa espontânea, sem alinhamento. Sem compromisso. Se calhar com o propósito de homenagear pessoas que se tornaram personagens vivas, e sentir os cheiros guardados na memória e recordarmo-nos de lugares como por exemplo, Bángwè, onde jogávamos a bola em liberdade, com muita amizade, sem almejar absolutamente nada para além da alegria de viver.
Bángwè tornou-se um centro de festas futebolísticas inolvidáveis, com jogadores que mostravam, ainda imberbes, ser talhados para grandes estádios, mas como a vida não é linear, pode ser que não tenham tido a sorte de receber os aplausos do reconheciomento. E da admiração. Noutras terras. Mas foram ovacionados aqui.
Não vou mencioná-los a todos, seria impossível, mas há dois que terão desfraldado de forma particular, a sua evolução no Bángwè: Nando Guihoto e Chumbo Lipato, para quem peço uma salva de palmas. Aliás há quem dizia que os mortos não morrem, então esta ovação é para estas duas vedetas que vão viver dentro de nós de forma indelével.
Pode ser que estejamos a fazer isso, a exaltar aqueles que fazem parte da tecelagem da nossa cidade, e não precisamos de ir às tumbas onde não há vida para render a nossa homenagem a eles. Então, Fernando Guipatwane não morreu. Repito o que alguém dizia: os mortos não morrem! Fernando Guipatwane era um actor alegre, predisposto a uma gargalhada estranha, porém doce. Vinda de de dentro de um homem que não tinha espaço para feridas dentro de si. Ele, certamente, vai nos ouvir a recordá-lo neste espaço que ficará assinalado na nossa caminhada colectiva: então, uma salva de palmas para Fernando Guipatwane!
A jornalista e escritora portuguesa, Agustina Bessa Luís já dizia: a história é uma ficção controlada! E nós aqui, ao evocarmos essas figuras, se calhar estamos entre a história e a ficção. Digo isso porque Matangalane Boby era ao mesmo tempo ficção e realidade.
Uma pessoa que se senta no encosto dos bancos de bentão que existiam na ponte cais de Inhambane, sem se importar com o perigo que isso representa, só pode ser actor de um filme de ficção. E Matangalane fez isso numa das suas façanhas. Deixou-se embalar pela briza, o sono tomou com conta dele, e caíu na água em maré cheia. A sorte dele, é que estava por perto o Adério França, nadador puro, que não pestanejou duas vezes. Mergulhou e salvou Matangalane Boby, já com água por demais engolida.
Mas, por ironia, Matangalane ainda dizia: Nhi digue, nhi digue... FidA PUTA (Deixe-me, deixe-me, filho da p..
Não importa de onde ele vem, se daqui ou de outras terras e outros mares. O que nós sabemos é que Matangalane Boby é património da nossa cidade. Um homem com olhar de felino, pronto a apedrejar-te se o provocasses. E a dor que deviamos sentir todos neste momento, é que depois morreu sem amparo, como quem não tem a quem chorar. E ninguém chorou no dia do seu funeral. E hoje estamos aqui para homenagea-lo. Por isso, vai uma salva de palmas para Matangalane Boby!
Pois é, a cidade de Inhambane tem um estendal sagrado de figuras relevantes em todas as áreas. E as consagrações não existem somente para os políticos e as elites. Os viventes da periferia também merecem que nos lembremos deles, como nos lembramos agora de Bernabé e de Bernardo Wonane e de Helena Maluca, Laura Maluca, Chura Boy, Abdul Nha Mbafa, Micaela, Hamad Guikolomane, Guibochane! Viventes das bermas da vida em todos os momentos de sol e de chuva e de frio e de calor. Mas são esses que fazem a sétima nota da escala diátónica da nossa urbe, então merecem uma salva de palmas! Assim como vai uma ovação para estrondosa para Otto Glória (o nosso Otto Glória e Guegué.
Senhoras e senhoras, eu sei que a lista das nossas estrelas é interminável, e não pretendemos ser exaustivos, e nesse aspecto estamos todos de acordo, não é verdade? O importante é que estamos aqui, de forma desinteressada para celebrar a vida, e a vida, em memória, daqueles que orbitam no cosmos da luz definitiva. Então, ocorre-me formar uma selecção de ouro composta por, Lóngwè, Babarriba, Berehemo Guifototo, Manwelito do Inhambane 70, Daniel Mosse, Tsungu Maciel, Tsungu Abílio, Guihoto, Tsungu Max, Manuel da Luz, Nuno Gobo, Siya Libendzi, Bata, Tsungu Thsoni, Guimesseryane, Madobolo, Naniá, Dogologo, Vangyane, Tsotsi, TAP, Tsungu Arouca, e demais estrelas.
Não evocaremos os nomes de todos os nossos ídolos, obviamente! Há informações que a memória vai protelando, fechando a hipófeses, então ficamos limitados. Mas o própósito do nosso encontro aqui está claro: confraternizarmos e içarmos as bandeiras daqueles que viverão para sempre na nossa história colectiva. Os mortos não morrem!
* Texto de apresentação no almoço de confraternizaão dos manhambanas, havido no dia 5 de Outubro corrente na cidade de Inhambane
Nunca tivemos dúvidas de que a Estrada Nacional Número Um (EN1) será para sempre a coluna vertebral do nosso País. E se você tem esta comporta decisiva com danos profundos na sua estrutura, então todo o resto do corpo entrará em derrocada e não lhe restará outra saída, passarás a ser um cadeirante. Na verdade é o que está a acontecer, Moçambique é um país cadeirante.
A EN1 é o último testemunho de uma governação de dez anos, que passou quase todo esse tempo destruindo a poesia que existia dentro de nós. Agora só temos como alternativa, soletrar repetidamente os versos da sinfonia dos demónios, que nos atormentam de noite e de dia. É este o legado que fica para comprovar a incapacidade de juntar as pedras existentes em fartura na nossa terra, e reinventar as madrugadas e os amanheceres e as utopias.
A própria paisagem exuberante que se metamorfosea em espectáculo de harpas, de norte a sul de Moçambique, perdeu o esplendor aos nossos olhos, pois o miradouro que é a EN1 , construída para mover a economia e através dessa mesma estrada contemplarmos a dádiva em si, para gáudio do espírito, está absolutamente despedaçada. O pior é que o ilustre Carlos Mesquita, investido na pasta de ministro das Obras Públicas e Recursos Hídricos, jamais teve a humildade de vir cá fora dizer que o governo inteiro, por ele representado nesta área, degenerou em todos os sentidos.
Mas isso é falta de humildade, e a humildade é a parte mais luminosa da sabedoria. Então, não haverá nada que possa justificar o estado em que chegou a EN1, nem as ladaínhas de Mesquita que vai sair daqui a pouco sem nada no regaço, para além dos remendos que fez ou vai fazendo em determinados troços, mesmo assim sem muita garantia. Governar não é remediar.
A EN1 é o último testemunho mais importante que este governo vai deixar para os que vierem, e se houvesse humildade por parte dos actuais dirigentes, diriam, em uníssono, assim: “na verdade não fizemos nada! E o testemunho de que não fizemos nada, está retratado na EN1! Tentamos fazer qualquer mas não conseguimos, reconhecemos a nossa incompetência”!
São estas as palavras que os actuais “boices” deviam dizer ao povo, e não a costura desesperada de teorias que em nada lhes abonam. Não haverá estrofe alguma capaz de esconder a maior ferida cavada e aprofundada nos últimos dez anos, que é a EN1, envergonhando-nos a todos. Por inteiro.
A EN1 é o espelho claro de um país tornado miserável. E se Moçambique foi despromovido à (des)categoria de miserável, significa que nós também, como pessoas, somos miseráveis. É assim como somos tratados pelos outros. É essa a nossa actual condição, não temos outra.
É isso, ilustre Carlos Mesquita, você pode ter tentado fazer algo em prol do desenvolvimento de Moçambique, mas foi incapaz. Então venha a terreiro dizer isso, com humildade, a sua pena será atenuada!
Conheci-o na cidade de Inhambane em 1974, depois dos Acordos de Lusaka, altura em que se anunciava o crepúsculo do amanhecer, eivado de euforias e canções jamais ouvidas antes, vindas das matas soberbas com cheiro a pólvora. Era um jovem que, assim mesmo, como o ressurgir dos tigres, colocava-se na linha de ataque com o cabelo por aparar, distinguindo-se deste modo, de todos os outros que se entregavam com denodo a uma aurora construída com sangue e balas.
Tomaz já tinha consciência do que fazia. Sabia que tinha asas tenazes, capazes de sobreviver aos temporais, então passou a usá-las em voos de grande altitude que não podiam esperar mais. Galgou rapidamente os degraus de forma segura, passando pelo Ministério da Defesa por indicação, a dedo, de Samora Machel, onde lhe colocou para lidar com falcões da luta de libertação nacional, sem que ele, o Tomaz, tivesse sequer manipulado uma simples carabina em toda a sua vida. Aliás, o próprio Tomaz não sabia o que ia fazer num lugar tão movediço, como é que aparecia no meio de lobos, ou melhor, na dianteira de felinos.
Tomaz cintilava, mas o que ele não sabia, é que ao longo do tempo, a sua aura, que passaria por dirigir ministérios importantes, iria diluir-se pouco a pouco, até ao ponto de olhar para trás e perguntar-se a si mesmo se valeu a pena todo este galope. Ora, os sonhos que trazia no regaço foram sossobrando. As orcas que ele dirigiu no Ministério da Defesa começaram a seguir caminhos diferentes dos que tinham sido traçados nas matas. Os projectos que ele ajudou a desenhar nas instituições do Estado, enfraqueceram. Então o homem começou a ser conduzido pelos receios.
Hoje não reconheço o Tomaz Salomão, aquele jovem de vanguarda que outrora eu gostava de seguir de longe, sem que ele soubesse. Tornou-se incapaz de inventar palavras novas que nos possam reaninar. Agora acho, depois de o comboio perder os carris, que Tomaz devia saltar do barco dos poderosos, aqueles que sugam o povo até ao tutano, e vir para o mar aberto, ajudar a salvar aos que vão naufragando em massa. Era essa a minha esperança, de que o meu ídolo vestisse também a luta do povo. Não bastam as palavras já esvaziadas pela realidade, ditas em intervalos, enquanto na calada da noite, e mesmo à luz do dia, ele mergulha no regabofe e na pompa indisfarçável.
Não vai valer a pena a tua luta, Tomaz, apesar de tudo o que fizeste. Não valerão a pena as tuas bonitas palavras, pois continuas sentado à mesma mesa com os poderosos, bebendo conhaque. Tu fazes parte desse poder que está-se marimbando para o povo, então perdeste a legitimidade de falar para esse mesmo povo, o que é lamentável, pois eu me tornara teu seguidor desde os tempos em que acreditava na tua força. Agora não!
Mas ainda vais a tempo de te perdoares a ti próprio, faça qualquer coisa para salvar o teu país! Faça qualquer coisa para que a poesia retumbe e a timbila da tua terra ressoe, reboando por todo o Moçambique. Faz isso, meu irmão, que o povo vai te agradecer.
Mas eu não sou o personagem principal nesta trama, também não sou um figurante. Sou o tabuleiro indicado para que todas as cenas passem por mim como nas pontes de betão, onde os camiões de grande tonelagem atravessam, fazendo com que os fundamentos de toda a estrutura estremeçam. Por vezes dá-me prazer vestir a pele que me atribuiram, de um inconsequente, porém noutras vezes sinto que o meu lombo não aguenta, sou frágil demais para suportar este papel, é como se o meu castigo viesse para ficar.
A informação que tenho é de vamos partir às quatro da manhã, então às três estarei de pé para aquecer água no fogareiro à carvão, e foi isso que eu fiz. A minha casa de banho é externa, e em cima da hora fui descobrir que a lâmpada fundiu, está escuro lá dentro. Recorri à lanterna do telefone que me dava a sensação de eu próprio ser um fantasma. Ou seja, não parece real alguém estar a tomar banho às três da manhã, num silêncio em que o único som que se ouve, é da água deslizando pela minha cutis.
Cheguei a pensar que a única pessoa que estaria acordada àquela hora, sou eu. Mas esses pensamentos não me perturbavam, o que me empolgava era a viagem que iria iniciar daqui a pouco. Uma longa viagem que terminaria numa cidade cercada de montanhas pedra, Tete, e eu conheço o percurso que passa pela espectacular cordilheira de Catandica. Do outro lado fica o Zimbabwe, onde se pode entrar também pela fronteira de Cuchamano. Pensava em tudo isto durante um banho que não durou mais do que dez minutos, um banho quente e agradável.
Ao sair da toilett vejo um homem parado em frente à porta da minha casa, na verdade uma silhueta virada de costas para mim, parecia Yupidu, e eu cubro as partes sensíveis com a toalha, entregando o meu tronco à cacimba fria que cai imperceptível, sem deixar, mesmo assim, de ser letal. Perguntei, quem é você!
Quem me responde é o silêncio, mas eu estou animado pela viagem que vai começar daqui a pocuo e já são quatro horas! Há uma rola que arrulha à esta hora e isso não é normal, pode ser sinal de mau agoiro. Ao mesmo tempo o meu telefone retine com um número desconhecido. Um cão que ladra lá fora de forma persistente, mas aqui na zona nenhum dos meu vizinhos tem cão. Sinto cheiro de tabaco aceso, alguém está a fumar.
Mas isto é um turbilhão, e o centro do remoínho sou eu, condenado com pena de tormenta, sem julgamento sem nada, o juiz da causa são os meus actos, os meus caminhos tortos. É por isso que estou aqui apenas com a toalha na cintura, e o tronco do meu corpo sendo molhando pela cacimba que cai em gotas microscópicas. Não consigo mexer-me.
Então já não tenho dúvidas de que estou perante as mandímbulas do lagarto mais frio do planeta, que se ri como as hienas, porém eu vou viajar. Em liberdade. Cantando as músicas copiadas do Salmos.
M´saho é essa grande festa dos chopes, organizada anualmente para esconjurar os espíritos que têm trazido ventos infaustos por aqui. Mas há quem por outro lado, investe na destruição do mwenje, árvore de onde se extrai a madeira usada na produção da timbila. Subjaz ainda a sensação, neste cenário constrangedor, de que todo o remoinho provocado pelo toque e dança e canto desta tribo do sul de Moçambique, está a desvanecer. E o testemunho disso são os últimos festivais a que tivemos a oportunidade de assistir.
Warethwa! (Cuidado!)! Este é o grito deles de guerra desde os tempos. Na verdade quando a xipalapala ecoa, é preciso ter-se cuidado com o que vem das mãos e de todo o corpo e da alma dos chopes. Ou seja, depois do grito, Quissico ressurge. Engrandece-se. Embevece. E é projectada para o mundo inteiro. Todos querem estar aqui para se embebedarem com a loucura da timbila.
Mas hoje em dia o M´saho já não é o mesmo. É muito provável que esteja a ser diluído pelo tempo. Não se sente a vertigem, e ainda por cima estamos em presença de um Património Cultural da humanidade. Então, há coisas que os chopes não podem fazer sozinhos, mesmo sabendo-se que eles nunca se resignaram em nenhum momento.
Não que não haja esse respeito, mas a sensação que tenho é de que está-se a fazer pouco, começando pelo palco que acolhe as orquestras. Ou seja, para quem chega antes de começar o M´saho, e antes de chegarem as pessoas da assistência, regra geral o que se vê são pequenos sinais como dísticos apelativos com pouca chama em termos de imagem. E pior do que isso, olhando-se para o palco, a pergunta que vai surgir imediatamente será: é aqui onde vamos assistir às loucuras dos chopes? Na verdade o palco instalado não é de forma alguma digno de receber uma manifestação de tão elevado porte cultural.
É aqui provavelmente onde começa, ou se agudiza a contrariedade. Talvez a decepção. Os executantes são acolhidos naquilo que tende mais para um alpendre carrancudo, do que propriamente para um palco. Quem construiu aquilo provavelmente não tem sensibilidade sobre o que é um festival desta dimensão, sobre a grandeza da timbila no mundo. Não só temos na obra os irritantes pilares múltiplosÉ urgente repensar-se no local da realização dos festivais de Timbila. Zavala tem um tesouro invejável que são as Lagoas de Quissico, esplendorosas, algo que não pode passar despercebido durante o evento. As Lagoas de Quissico devem fazer parte do Festival, e, fazer com que aquela paisagem seja pertença do M´saho, passa necessariamente por repensar o palco.
É imperioso e urgente levar as coisas mais a sério, porque aqueles que vão à Quissico pelas alturas do M´saho, querem ver a beleza em si estampada em todo o lado. Os estrangeiros em particular, vão para ali porque já ouviram falar desta manifestação cultural e sabem que é Património Cultural da Humanidade. Sabem que a festa da timbila é elevada, então os organizadores precisam de corresponder à todas as expectativas, tornando o festival num importante eixo que deve passar também pela capacidade de fazer a comunicação e imagem. O Marketing. E espreitar aquilo que se faz noutros eventos pelo mundo fora, porque o M´saho tem dimesão mundial. E em tendo uma dimensão universal, é preciso fazer algo que justifique isso.
Mas eu não sou o personagem principal nesta trama, também não sou um figurante. Sou o tabuleiro indicado para que todas as cenas passem por mim como nas pontes de betão, onde os camiões de grande tonelagem atravessam, fazendo com que os fundamentos de toda a estrutura estremeçam. Por vezes dá-me prazer vestir a pele que me atribuiram, de um inconsequente, porém noutras vezes sinto que o meu lombo não aguenta, sou frágil demais para suportar este papel, é como se o meu castigo viesse para ficar.
A informação que tenho é de vamos partir às quatro da manhã, então às três estarei de pé para aquecer água no fogareiro à carvão, e foi isso que eu fiz. A minha casa de banho é externa, e em cima da hora fui descobrir que a lâmpada fundiu, está escuro lá dentro. Recorri à lanterna do telefone que me dava a sensação de eu próprio ser um fantasma. Ou seja, não parece real alguém estar a tomar banho às três da manhã, num silêncio em que o único som que se ouve, é da água deslizando pela minha cutis.
Cheguei a pensar que a única pessoa que estaria acordada àquela hora, sou eu. Mas esses pensamentos não me perturbavam, o que me empolgava era a viagem que iria iniciar daqui a pouco. Uma longa viagem que terminaria numa cidade cercada de montanhas pedra, Tete, e eu conheço o percurso que passa pela espectacular cordilheira de Catandica. Do outro lado fica o Zimbabwe, onde se pode entrar também pela fronteira de Cuchamano. Pensava em tudo isto durante um banho que não durou mais do que dez minutos, um banho quente e agradável.
Ao sair da toilett vejo um homem parado em frente à porta da minha casa, na verdade uma silhueta virada de costas para mim, parecia Yupidu, e eu cubro as partes sensíveis com a toalha, entregando o meu tronco à cacimba fria que cai imperceptível, sem deixar, mesmo assim, de ser letal. Perguntei, quem é você!
Quem me responde é o silêncio, mas eu estou animado pela viagem que vai começar daqui a pocuo e já são quatro horas! Há uma rola que arrulha à esta hora e isso não é normal, pode ser sinal de mau agoiro. Ao mesmo tempo o meu telefone retine com um número desconhecido. Um cão que ladra lá fora de forma persistente, mas aqui na zona nenhum dos meu vizinhos tem cão. Sinto cheiro de tabaco aceso, alguém está a fumar.
Mas isto é um turbilhão, e o centro do remoínho sou eu, condenado com pena de tormenta, sem julgamento sem nada, o juiz da causa são os meus actos, os meus caminhos tortos. É por isso que estou aqui apenas com a toalha na cintura, e o tronco do meu corpo sendo molhando pela cacimba que cai em gotas microscópicas. Não consigo mexer-me.
Então já não tenho dúvidas de que estou perante as mandímbulas do lagarto mais frio do planeta, que se ri como as hienas, porém eu vou viajar. Em liberdade. Cantando as músicas copiadas do Salmos.
Ele já estava no local combinado, quando cheguei, virado de costas para a entrada do bar, sentado numa mesa sobre a qual a empregada acabava de deixar uma chávena de café fumegante. Apagou o cigarro no cinzeiro com a mão a tremer e logo a seguir iniciou o desfrute. Assisti a estes movimentos de forma dissimulada, a partir do balcão onde me sentara sem pedir nada, fingindo que não estava a vê-lo, sem saber se tomava a iniciativa de me aproximar, ou esperaria até que me reconhecesse e desse algum sinal.
Bebia o café com tremelique nos lábios e na mão direita que segurava intermitentemente a chávena. Parecia ter medo de olhar para as pessoas que estavam ali com canecas de cerveja celebrando a vida logo de manhã. Naquelas circunstâncias, não passava de uma silhueta varrida até às vísceras, contrariando os tempos em que, mesmo não exalando soberba, era um personagem da primeira linha, que jamais poderia passar despercebido.
Mas eu já não podia esperar mais no balcão, de uma pessoa que estava à espera de mim, então era necessário que chegasse até ele. Vou ter com alguém com quem me relacionara, quando eu praticava jornalismo activo. Tornamo-nos confidentes um do outro. Há muita coisa que eu sei dele. Ele também, tem muita coisa que sabe de mim, das minhas incongruências, mais do que das minhas virtudes, que nem as tenho. Criamos um ambiente de amizade, quando era um ministro de proa e me convidava amiúde para um café onde falávamos de tudo, menos do futuro. E o futuro dele agora é este, desastroso. Cheio de frustrações. De mágoas.
O que o ex-ministro quer de mim é que o ajude a escrever qualquer coisa sobre a sua vida. Qualquer coisa que seja sincera e hosnesta em forma de livro. Na verdade nunca pisou a ninguém. Tratou sempre as pessoas com respeito. Cumpriu, durante o seu mandato, todas as orientações do presidente, e tornou-se um profissional irrepreensível.
Estamos sentados frente a frente, ele de costas para a porta de entrada do bar e para as pessoas que conversam bebendo cerveja livremente em grandes canecas, e eu encaro o ambiente como os cowboys nos saloons buliçosos de Farwest.
Vai um café? Perguntou-me tirando um cigarro do maço da marca Palmar azul, e eu disse que não ia beber café, por causa da cafeína, sou hipertenso. Então peça alguma coisa do seu gosto, pedi água. Já tinha tomado o pequeno almoço em casa, sardinhas fritas com salada de alface e chá de cidreira.
O homem já não treme, nem nos lábios, nem nas mãos, o café e o whisky trouxeram-lhe à falsa sensação de bem estar. E assim começou dizendo: olha, meu caro, estou profundamente frustrado por não ter feito nada pelo meu país.
- Mas porque é que você não fez se tinha condições e a obrigação de o fazer, tomando em conta o lugar privilegiado que ocupou durante dois mandatos?
O ex-ministro pediu mais um duplo e olhou para mim com incisão: eu podia ter feito muito, com certeza, porém estava atado, não me deixaram fazer. Pior do que isso, obrigaram-me a cometer erros, a cometer crimes.
- Então, se fizeram isso contigo, porque é que continuou a seguir um caminho que não será o mais correcto?
- Essa é a pergunta mais perfurante que me faço a mim mesmo todos os dias. Perdi a oportunidade de acender luzes para o povo, e já não posso voltar para trás. Sou um pulha!
Mas a vida é assim, como as marés que vibram numa época, e baixam na época que vem. As flores também. Acordam vigorosas nas manhãs com os cheiros perfumados da noite, e ao picar do sol cedem. Perdem a graça, e ninguém as quer. É o interminável recomeço do ciclo. Que nos faz acreditar na força interior da utopia.
Eu também sou assim, sigo, ou sou levado a seguir pelos espíritos, esse caminho do sol que nasce no esplendor do amanhecer, exubera em todo o dia, porém vem o anoitecer e apaga essa luz que supera todas as estrelas. É por isso que não tenho medo, aliás perante as pedras do caminho visto o escafandro da música dos bitongas, para ver se amanhã acordo outra vez, com as mesmas azagaias. Com os mesmos ritos.
É o mar a minha prancha para os voos da imaginação, então volto sempre a este lugar para ouvir a ressonância das ondas que se esbatem na areia. E hoje cheguei a meio da manhã com a maré vaza e, para minha surpresa, está no meu lugar habitual uma mulher desconhecida deitada de barriga, deixando as fartas nádegas ressurgindo do fio do bikini, e eu ainda me perguntei: mas o que é isto?!
Sentei-me ali mesmo, ao lado dela, baralhado pela sensação de alta voltagem que me percorria por inteiro, não sabendo bem se por causa de uma mulher deitada no meu lugar, deixando as nádegas cheias de carne em exposição, ou porque sou fraco. Esqueci-me completamente de contemplar os pernilongos dos flamingos que dançam na esgravatação dos moluscos, e já estou em ebulição, sou feito de carne também.
Bebi um gole da cachaça que sempre levo no bolso à praia para que a harmonia entre mim e a natureza se aclare, mas este gole foi longo demais. Os meus olhos não saem das nádegas livres de uma mulher que está deitada na areia da praia, sòzinha, ainda por cima no meu lugar onde implantei uma sombra de folhas de palmeira para estar sozinho na minha solidão, e eu jamais imaginei que isto podia acontecer num retiro que ainda perserva os tabus.
Bebi outro gole numa altura em que ela se revirava, deitando-se agora de costas com as pernas estendidas, meio afastadas uma da outra, para gáudio da loucura. Os seios são perenes, oprimidos porém no soutean, e o bikini só protege a parte mais macia de um corpo esculpido por mãos invisíveis, o resto está fora. E essa mostra não será propriamente um problema, estamos na praia.
A maré está a encher e os flamingos vão bater as asas em liberdade, rasgando os céus em fila para outros poisos, mas eu estou hipnotizado por um ser feminino deitado no meu lugar, na minha sombra. Na sombra das minhas lucubrações.
Então ela agora levanta-se. Espreguiça-se. Olha para mim despreocupada.
- Oh, desculpa, o senhor é o dono desta sombra?
- Sim, sou eu.
- Avisaram-me uns miúdos que passaram por aqui, disseram-me que é um sítio privativo, desculpa pela invasão.
- Você não invadiu o meu lugar, você adornou a minha sombra.
Afinal somos conhecidos. Estudamos na mesma escola primária, e depois o tempo separou-nos, cada um para o seu destino. Mas, como o próprio mar, voltamos para a nossa terra, depois de muitas escalas pela vida, com muitas alegrias e derrotas até hoje, que recusamos ser vencidos.
Abraçamo-nos longamente. Bebemos juntos a cachaça, e eu disse assim para ela, a vida dá-nos sempre um espaço para recomeçar! E ela respondeu: é verdade!
Não sei bem onde moro. É por isso que você nem sequer me procura. Na verdade eu vivo neste buraco escuro, sem estrelas, ao lado de outras ratasanas que saem nas noites a procura de alimento inexistente nos celeiros. Mas eu não tenho medo das pessoas, você é que tem medo de mim. Sou ratasana da nova espécie, não violo as machambas. Mesmo que quisesse fazer isso, aqui não há terra cultivada, a mandioca secou com o tempo, então as minhas mãos vão criar novas searas.
Não sei bem onde moro, moro em todas as tocas sombrias onde já não espero nada, nem de você. Aqui não há pássaros. Morreram todos, deixando o cheiro das melodias que se transformaram em sinfonia do diabo na memória de mim. Nunca amanhece neste lugar, então é mentira a poesia de Jorge Rebelo.
Não sei bem onde moro, e todas as minhas forças estão se esvaindo no escuro. A chuva que cai neste lugar, todos os dias, é pegajosa e mal cheirosa. É por isso que o sol tem medo de raiar, faz muito frio. E os pássaros têm medo do frio e da chuva, fugiram sem deixar vestígio. Nem os sons sobrevivem onde eu moro. E já não oiço a fala do próprio silêncio, moro numa tumba.
Não sei bem onde moro, mas eu existo. Definhando em cada palavra dos discursos vazios anunciando as vitórias que no fundo são uma falácia, não há vitória nenhuma, tudo isto é mentira. Se houvesse vitória eu retumbaria dos abismos onde não há música nem poesia, e de onde não vejo a possibilidadde de sair e vir cá fora rebolar na dança. E você entregou todas as minhas canções buriladas na honestidadde e integridade, e voltei a ser um escravo desprezível. Um cão sem nome, sem lugar para viver. As minhas terras estão sendo levadas e entregues aos poucos e poucos. Outra vez!
Mas eu estou cansado de ser ratasana, não é essa a minha vocação. Eu sou orca, a fúria dos mares! E você tem medo da minha revolução. Eu sou a turbina do povo e vou chegar a todas as tumbas e ressuscitar todas as ratasanas e transformá-las em orcas também, como eu. Eu não sou ratasana, porra! Sou uma das lenhas amarradas no feixe da luta popular, e não é você que vai quebrar este feixe! A este feixe não se quebra.
Eu sei bem onde morava, morava na tumba como as ratasanas do fim do mundo, mas agora acabou, não volto mais para lá. Sou o remoínho das canções transformadas em comportas que enchem albufeiras inteiras: Eyuphuru, Gorhwane, Kapa Dêch, Djaka, Massuku, Alambique!
Eu sou a tempestade do povo!
Toda esta enxurrada que parece levar-nos ao pricipício, onde nos esperam as verrumas do diabo, pode não ter volta, não haverá espaço para o recomeço. Vivemos dias das maiores incertezas, ninguém sabe para onde vamos nem o que nos espera. As crianças, como guerreiros desarmados nas savanas, enfrentam os seus próprios docentes nas escolas, encurralando-os como o fazem as hienas em matilhas ferozes nos momentos de desespero, desmentindo assim a realeza dos leões.
Perdemos o medo, e quando isso acontece significa que já não há outro caminho, já não há mais montanha para subir, então vamos morrer vivos nos combates, tendo a música como estandarte e toda a poesia das matas da libertação como azagaia lançada no espaço. Não podemos vacilar, o novo amanhecer está hipotecado. As ribanceiras do nosso país descem todas para o inferno, e quando é assim é preciso cingir o lombo e mudar o rumo, nem que seja pela última vez.
O pão é escasso nas nossas mesas, dançamos nas noites o remoínho do “nhau” que ressurge do estômago vazio, e vamos dormir sem fazer sexo porque estamos com fome, somos a geração dos novos escravos. Os feudais voltaram com outras roupas, estão aqui... na nossa casa. Organizam seminários e palestras em hotéis de luxo para nos enganarem, para falarem da nossa vida, daquilo que devemos fazer, e no fim servem-nos chamussas e rissóis e sumos duvidosos e ficamos contentes com isso. Os ministros do governo anunciam rigozijados, investimentos bilionários das multinacionais como se o dinheiro fosse nosso, como se os proventos viessem para nós!
A EN1 está absolutamente rebentada, mas se o rosto do homem é um pouco a janela da alma, então nós também estamos rebentados, não somos nada. É por isso que nos cavalgam, fornicam a nossa dignidade à frente dos nossos filhos. Por exemplo, no tempo em que Helena Taipo era governante, os chineses de uma empreitada qualquer na cidade da Beira, defecavam em sacos plásticos e mandavam os moçambicanos recolher a merda deles.
Temos no nosso país, compatriotas que segurariam com firmeza, concerteza, os remos da almadia onde todos nós iamos caber e navegaríamos em marés tranquilas, mas esses marinheiros da esperança foram abatidos como lobos solitários. Outros fugiram e remeteram-se ao silêncio com medo de que sejam os próximos. Já não temos baluarte, o que nos resta é construir outra arca para enfrentar as tempestades que virão dos ventos que estão sendo semeados na nossa terra.
O receio é de que o sol não nasça mais, ou nasça com luz de sangue a gotejar sobre nós. Somos nós próprios, em apoio a eles, que vamos criando condições para a última chacina. Seremos, com este andar das coisas, enterrados sem túmulo, outra vez como no tempo das correntes ao pescoço. Morreremos sem glória. Nem nós o povo, nem os combatentes da libertação, que se esvaziaram na ganância.
Macacos me mordam! Diabos me levem!