A frase "nepotism baby" (ou o diminutivo "nepo baby") tem permeado as redes sociais desde os anos 2022, em expressões de seguidores dos famosos que são denominados por nepo baby e em séries de surpresa na TV. É uma adjetivação corriqueira que vai ganhando espaço formal, particularmente para denominar os artistas da Hollywood que chegam ao topo da carreira por via de influências dos seus pais (cfr. NYT, 2022). A popularidade do termo é resultado da “geração Z”, particularmente da mídia periférica. Segundo The New York Time (2022), esta expressão ganhou mais voz nos últimos anos “quando uma fã de Maude Apatow soube que a atriz tinha pais famosos, ela tuitou sua surpresa e inspirou uma série de piadas sobre os chamados “bebês do nepotismo” (NYT, 2022).
É facto que durante séculos, as crianças nascidas em famílias ricas, famosas e poderosas tiveram uma vantagem na vida, herdando monarquias, impérios empresariais, riqueza e poder estelar. Em alguns casos, eles ultrapassaram o status de seus pais. Isso é o que a maioria dos pais deseja para seus filhos. Também é muitas vezes como o poder funciona, especialmente em Hollywood (NYT, 2022).
Ora, a política não escapa a esta realidade, particularmente em Moçambique. Entre eventos políticos midiatizados, assistimos nas últimas semanas a publicação de listas de candidatos para serem os novos inquilinos da Ponta Vermelha, da Assembleia da República, governadores e assembleias provinciais, por parte dos partidos políticos, que por sua gênese, são totalitários à não virtude política, que resulta nos “ridículos políticos” (TIMBURI, 2018). Paralelamente ao fenômeno de “ridículos políticos”, que caracteriza a corrida eleitoral para as próximas eleições, temos visto proliferar mais um, o dos bebês políticos filhos do nepotismo partidária.
Estamos objetivamente falando dos “bebês do nepotismo político” gestados nos partidos para a praça pública, na maioria das vezes, protagonistas do ridículo político. É gente sem projeto político e nem mínima visão de Estado e nação. São, alguns deles, desconhecidos na militância e nas fileiras políticas, portanto, desprovidos de qualquer preparo. São estes nepo baby, que de uns tempos para cá têm tomado “de assalto” as instituições de soberania, como seja o parlamento e, aos poucos, a presidência. Não engrossam por vontade genuína de fazerem diferente como legisladores e fiscalizadores, ou por terem um projeto de desenvolvimento do país, pois nem sabem como e por que estão lá. Atufam o círculo de múmias vivas, que mais não sabem senão torrar o dinheiro do Estado e, no caso do parlamento, para mostrar alguma subserviência partidária, reproduzindo hinos panegíricos em hosanas aos chefes.
Tal fenômeno é facilitado pela promiscuidade de relações estabelecidas e vividas dentro das organizações políticas moçambicanas, sobretudo se considerarmos que a condição necessária para adesão a um partido político é a “filiação partidária” e os seus afetos relacionais ao nível de graus de confiabilidade paternal. Os partidos se tornam hoje, em Moçambique, um berço fértil para incubação e exportação de nepo baby nos espaços do poder político.
Além do mais, cabe sublinhar que filiação é o vínculo que estabelece a relação entre pais e filhos. Ela pode ser biológica ou por adoção. A filiação partidária, por sua vez, deveria ser inegociavelmente um vínculo de natureza jurídica entre o cidadão e o partido político. Esse vínculo asseguraria os direitos e a imposição dos deveres aos cidadãos e aos partidos no cuidado do povo e da “coisa partidária e pública” (Estabelecidos na Constituição da República e no Estatuto Partidário).
Na verdade, o vínculo de paternidade é o mais comum na prática da “política ativa partidária” do que o “vínculo de natureza jurídica partidária” (abundam as reclamações nos órgãos deliberativos partidários) e, deste nepotismo partidário resulta igualmente o atual Estado Paternalista Moçambicano, fruto do nepotismo político generalizado que tem a sua origem nos partidos políticos que gestam bebês do nepotismo para a esfera política moçambicana. No contexto político, o Estado paternalista intervém nas decisões governamentais, assumindo o papel de um pai que define regras para o bem-estar dos cidadãos, independentemente de concordarem ou não (no fundo, é o misto entre a aparente democracia do cuidado do povo e o totalitarismo).
Se governar é arte e ciência de dirigir a partir da deliberação daquilo que é bom para uma sociedade, bens simbólicos e materiais; e se a votação é o momento em que escolhemos aqueles que acreditamos terem confiança e competência para nos dirigir; então o dia de votação pode ser comparado ao momento em que atravessamos a rua das nossas expectativas, entregando um veículo que irá circular nas nossas estradas aos motoristas certos para dirigirem. Ora, “habitualmente as pessoas atravessam a rua apenas quando acreditam que está desimpedida. Têm todos os incentivos para olhar para ambos os lados. Também têm todos os incentivos para formular crenças de forma racional sobre se a rua está desimpedida. Quando veem o que parece ser um camião Mack desgovernado na sua direção, não se atrevem a pensar que se trata de uma ilusão ótica (BRENNAN, 2020).
O que estamos argumentando? Que os partidos políticos, se fossem sérios e com responsabilidade social, como pais, categoricamente, deveriam escolher dentro dos quadros existentes “adultos políticos”, os seus mais bem filiados; posto que “há uma base ampla de investigação empírica que mostra que, em quase todas a tentativas de medir o conhecimento político, o seu nível em termo de média, moda e mediana entre os cidadãos nas democracias contemporâneas é baixo” (BRENNAN, 2020).
Entretanto, recorrentemente e à surdina, não tardam queixas de listas ao estilo norte-coreano. Mas também vieram, nas últimas semanas, vídeos de descontentes a relatar listas forjadas à base de relações de influência e não como resultado da democracia interna: constam marido e esposa, amantes, filhos de altos dirigentes dos partidos, propagandistas de ocasião que pululam os programas de TV e rádio, ora premiados pela sua falta de escrúpulo. Ao fim e ao cabo, esses novos atores, os filhos do nepotismo político, mais do que agregar, só vem deteriorar o já exaurido ambiente político moçambicano, pois os meios pelos quais ascendem são parte de um problema danoso para o fortalecimento democrático (BAQUERO, 2003). Sabemos que quando a ética não for capaz de dar conta desse rol de problemas ao nível interno (dos partidos), o caminho mais razoável seria o rigor da lei. Mas porque a nossa legislação é porosa nessa matéria, o que dá livre curso às arbitrariedades, descambamos nos interesses subjetivos e desejos perversos daqueles que se perpetuam no poder por meio do clientelismo, personalismo, patrimonialismo.
Por isso, em última instância caberá ao cidadão o poder de decidir se corrobora esse modelo que nos é impingido por boa parte dos partidos políticos. Para tal, torna-se necessário um amplo domínio não só dos processos políticos, mas também dos internos (ao nível dos partidos), que culminaram com o tipo de candidatos a vários órgãos, e, por fim, a pertinente reflexão em torno dos projetos políticos. É que num país em que as discussões políticas, sobretudo neste período pré-eleitoral, resvalaram para a fulanização, precisamos de insistir que há um país e várias gerações, cuja sobrevivência dependem de um projeto comum e supra partidário.
Ora se a atividade política profissional pressupõe um modelo de democracia que conceba a ação política como um espaço de circulação de conhecimento e informação para transformação e provisão do bem comum, algo está falhando na democracia partidária em Moçambique. Estamos falando das dimensões social (axiológica) e pragmática (deliberativa) da atividade política como critérios de eleição dos representantes do povo. Parece consensual a acepção de que “a reflexão sobre a política é sempre [uma] reflexão sobre a natureza humana, sobre as “modalidades reais de conexão de indivíduos” (TUNHAS, 2012). Mas este facto não justifica a coragem de visibilizar os nepotismos partidários através de figuras que esteticamente denominamos no presente texto por “bebês do nepotismo político”, os filhos partidários que podem, nos próximos cinco anos, assinar um contrato social com o povo moçambicano para dirigir os destinos do país nas duas dimensões contratuais: legislativo, executivo.
Com efeito, se faz necessário voltar a humanizar a nossa democracia, nos libertando dos inimigos cívicos, os filhos do nepotismo partidário - bebês do nepotismo político. Pois, “só nos tornamos mais humanos à medida que nos tornamos mais políticos no sentido de Seres cientes da relação de poder e violência, como forma de sustentar a convivência, que é o elemento mais simples da condição política da espécie humana” (TIMBURI, 2018). É também necessário a renovação de um contrato social que não mate ao circular nas estradas do nosso tecido social moçambicano, e que não entregue os destinos da nação aos "nepo baby" da política.
A renovação do contrato social acarreta, no plano prático, uma sociedade permanentemente educada e mobilizada em torno do bem comum. Nesse sentido, um político que ascende por competência e mérito próprio e não como um “filho do nepotismo político” – que emerge pela influência do poder de quem o endossa – será o corolário de uma transformação estruturalmente necessária da sociedade. Não é por acaso que em “A República”, Platão já asseverava a necessidade de depuração de comportamentos e práticas de carácter privado na vida política. Por isso não é de admirar a visão de uma educação que inculque no cidadão a capacidade de separar as relações de fórum familiar das relações de carácter republicano, norteadas pela impessoalidade da justiça. Um dos maiores legados deste modelo – também alvo de críticas – é uma educação política direcionada ao bem comum, muitas vezes conflitante com apetites egoístas e excludentes, como as que caracterizam a elite política moçambicana.
Urge, por fim, um novo contrato cultural que seja a condição de possiblidade moderadora entre a inegociabilidade da condição jurídica democrática (constituição) e a dimensão ética da convivência entre os homens dentro da democracia (tolerância). Neste sentido, a dimensão axiológica da democracia impõe o fim do ridículo político, de uma maneira apodítica e não negociável, a igualdade entre os cidadãos e o respeito pela dignidade das pessoas dos direitos do homem, e também a igualdade entre os cidadãos e o respeito pela dignidade das pessoas (NGOENHA, 2016). Ainda podemos dizer não à avalanche dos nepo baby da política. Cabe a nós!
Referências Bibliográficas
BAQUERO, Marcello. Construindo uma outra sociedade: o capital social na estruturação de uma cultura política participativa no Brasil. Revista. Sociol. Polít., Curitiba, 21, p. 83-108, nov. 2003.
BRENNAN, Jason. Contra a Democracia. Trad. Elisabete Lucas. 3 ed, Lisboa: Editora Gradiva, 2020.
NGOENHA, Severino. Os Tempos da Filosofia. Imprensa Universitária, Maputo, 2016.
TIBURI, Marcia. Ridículo Político: uma investigação sobre o risível, a manipulação da imagem e o esteticamente correto. 4ª Ed., Editora Record: Rio de Janeiro, 2018.
TUNHAS, Paulo O pensamento e seus objetos. Maneiras de pensar e Sistemas filosóficos, MLAG Discussion Papers, Vol.5, Edições da Universidade do Porto, Porto, 2012. (Págs. 465- 466)
The New York Times. What Is a ‘Nepotism Baby’? Disponível em https://www.nytimes.com/2022/05/02/style/nepotism-babies.html. Acesso a 14/06/2024
No balanço do seu consulado de 10 anos, Filipe Nyusi vai debitar uma narrativa de sucesso de governação, tal como ele pontuou seus discursos de Estado da Nação ao longo destes anos segurando a batuta da Ponta Vermelha.
Mas ele vai dizer que não fez muito porque encontrou o país já de tangas e um Tesouro de cofres vazios, herdados do calote guebuzista. Seu governo fez muito para reverter o cenário sombrio das finanças públicas - negociando com os credores e litigando contra a Privinvest e companhia (cujo desfecho foi conhecido na semana passada) - mas nenhum esforço serviu para recuperar a confiança dos mercados externos, resultando num endividamento interno quase insustentável, estimado agora em 14 mil milhões de USD.
Ou seja, Nyusi vai também deixar um legado perverso, uma espiral de endividamento que manterá o país na cauda da pobreza. A questão central então é: ele não podia ter feito melhor? Talvez sim!
Mas sua governação foi um recorte de remendos mal urdidos, um despesismo ocioso e corruptivo e uma contradição insana entre princípios de políticas públicas e a prática no terreno (discurso e prática), como no caso da conservação ambiental, onde ninguém percebeu como é que o Governo aprovou a invasão da mineração de areias pesadas na costa sul de Moçambique em detrimento do turismo; muito menos a ressurreição do monstro obsoleto de Techobanine no meio de um santuário de preservação ecológica no sul de Maputo.
Filipe Nyusi vai certamente engasgar-se no seu discurso. Na verdade, ele não tem nada para celebrar. A Educação está uma lástima e a Saúde pior. As crianças moçambicanas continuam sentadas no chão e a madeira nacional é exportada para o benefício de uma elite rendeira. Os hospitais não têm compressas. Médicos, enfermeiros e professores estão em constantes reivindicações, a começar pelas condições de trabalho.
Nyusi vai citar o Sustenta, mas o desafio a longo prazo da agricultura e da segurança alimentar continuam intactos. Nyusi vai citar seu programa Um Tribunal Um Distrito, mas há cada vez mais moçambicanos detidos em cadeias precárias, com fome e doenças. Esse programa foi mais uma justificativa para a drenagem de fundos do Tesouro e nada que tivesse a ver com a humanização da Justiça em Moçambique.
O mesmo se pode dizer do programa Um Hospital Um Distrito, que essencialmente visava expandir os negócios do seu amigo da Moçambique Holdings, José Parayukem, na sua relação com o Estado.
O que mais dizer?
Ah, Cabo Delgado. Nyusi vai deixar as armas da guerra troando. Seu governo foi uma lástima neste quesito. Andou de negação em negação ao longo dos anos, depois instrumentalizou o conflito para criar oportunidades de renda através do procurement militar e no fim foi se ajoelhar no espertalhão do Kagame, que abraçou a protecção da TotalEnergies como bandeira da sua relevância na geopolítica da segurança a sul do mundo.
Mas onde está o gás? Nada!
“Carta” sabe que o projecto controlado pela TotalEnergies está retomando gradualmente suas operações, agora com uma componente humanitária mais consistente, mas nada indica que Nyusi assistirá ao levantamento da “força maior”. Um grande fracasso político, também neste sentido.
O país de Nyusi é um país de desesperança. A pobreza urbana é tremenda. A qualidade dos serviços públicos vem se degradando velozmente. O nepotismo impera. E o propalado combate à corrupção continua ainda nas boas intenções, tal como mostrou ontem o GCCC, que se agarra em estatística processual de casos ainda não transitados nem julgados para querer mostrar trabalho e sucesso.
Nyusi vai cantar hosanas à recente avalanche da PGR contra o branqueamento de dinheiro, mas esta reação penal decorre da demanda externa e não tem nada a ver com vontade endógena. De resto, como noutros casos, a PGR montou uma máquina de comunicação para mostrar o impacto da ofensiva, mas ninguém ainda foi julgado nem condenado. E a presunção da inocência é uma instância a considerar antes de qualquer vitória.
Combate à corrupção? Não, ninguém está interessado. O Governo de Nyusi foi claro nisso, quando recusou ostensivamente a distinção operacional entre pequena e grande corrupção, dizendo que essa distinção não fazia sentido. Só não faz sentido para quem não pretende reformas. Não se combate a corrupção de enfermeiro com a mesma pílula destinada ao lobista de colarinho branco, que controla toda a traficância do colarinho branco.
O próximo incumbente tem muito a fazer neste campo, mas ainda não vimos ideias sólidas sobre como reverter o problema. Mas este é tema para outro debate. Os dez anos de Filipe Nyusi foram um fracasso. Ele fracassou!
Simplesmente isso! Para sustentar nosso argumento do fracasso nyusista podemos elencar vários indicadores. Aliás, já o fizemos nas linhas traseiras. Faltou mencionar a evidência mais pungente: os raptos. Aqui você foi uma desilusão total, Senhor Presidente, um autêntico logro!
De que o país vive momentos conturbados da sua história ninguém duvida. Eu ainda tinha alguma esperança, mas neste final de semana ela despencou. E foi num Chapa (transporte público) na rota Baixa-Facim.
O Chapa, que depois de partir da terminal da Baixa com todos assentos ocupados, parou no cruzamento da “Brigada” para levar novos passageiros. Um destes passageiros era um senhor já de idade e com uma vestimenta solene que denunciava que vinha de mais uma jornada dominical com o divino.
Depois de ele subir o Chapa, este arranca, e o cota se posiciona no corredor central ao mesmo tempo que passava lentamente o olhar a procura de um assento vago ou de uma alma caridosa que o cedesse.
“Pai está com a braguilha aberta”. Era a voz de um dos passageiros que o alertava, na língua ronga, que tinha o zipe das calças aberto. Em seguida, enquanto o cota sentava no lugar cedido pelo passageiro que o alertara, ele responde: “ Não te preocupes meu neto, já cá não mora ninguém!”
Esta tirada do cota foi seguida de uma gargalhada dos restantes passageiros, que até então seguiam o trajecto num silêncio religioso. Em seguida, e em jeito de uma contra-resposta solidária, o jovem disse que o cota ficasse sossegado, pois a actual situação do país era igual a do seu antigo inquilino.
Senhor Júlio Parruque, os negociadores de ruas e terrenos alheios estão de volta no bairro Matola Gare. Há uma rua que acaba de ser vendida, no bairro Matola Gare, ali nas complicadas azinhagas do quarteirão 06. Essa rua não tem um segundo de sossego, nunca há um mínimo esboceto de sorriso nos rostos das famílias que dependem dessa rua para terem acesso às suas casas. Essa rua foi improvisada depois de se vender uma rua principal.
A primeira negociata da rua, ano passado, foi enxotada pela presidente Calisto Cossa e os mercadores de ruas levaram sumiço num rufo: a rua ficou livre, a rua voltou a ser rua depois de ter sido tatuada como um quintal. E agora a rua foi novamente vendida. E os negociantes, com um olhar dardejado, respondem a qualquer rosto que lhes põe a vista em cima “Calisto Cossa já saiu, queixem onde quiserem”.
As estruturas conhecem essa rua, mas ninguém faz nada. Esta, de certeza, é a primeira, de várias ruas que ainda serão engolidas por este grupo. Há gente que já se prepara para ver mais ruas vendidas.
Essa rua, que foi vendida, é entrada e saída de diversas famílias, é uma rua que os mocinhos, carregados de cadeirinhas e mochilas, usam como caminho quando vão à escola lá nas bandas da linha férrea. Se calhar, senhor Júlio Parruque, a partir de amanhã teremos de pendurar uma pequena placa a dizer “isto já não é entrada, saída e nem caminho”. O comprador da rua, o segundo, já esteve no local, já viu a rua que será seu quintal nos próximos dias. E a frase de ordem ecoa aos estrondos nos ouvidos dessas famílias “Calisto Cossa já saiu, queixem onde quiserem”.
Senhor Júlio Parruque, na Matola Gare as ruas são vendidas aos molhos como legumes, outras famílias são arrancadas terrenos e existem outras que são obrigadas a assistir, sem nada a fazer, os seus terrenos sendo comidos por uma fita métrica desses ilustres negociantes. Neste exacto momento que escrevo este texto, senhor Júlio Parruque, há diversas famílias que se preparam para se colarem asas e voarem para terem acesso às suas residências.
Ninguém mexe nesse grupo, ninguém coloca um basta a esse grupo, ninguém tira o apetite por essa e várias ruas a esse grupo. Parece que ninguém tem força suficiente para parar esse grupo. Na Matola Gare, eram os ladrões que tiravam a tranquilidade de todos, mas agora é esse grupo que vai arrancando as ruas, esse grupo que vai transformando ruas em poços e minas de moedas.
Venderam uma rua, senhor Júlio Parruque. O senhor Calisto Cossa, de forma excelente e corajosa, tinha colocado um basta a esse grupo, mas o grupo ressurgiu e já anda, à socapa, a fazer inventários de ruas para vendê-las. O grupo desce, pé ante pé, a farejar ruas e terrenos para enriquecer. E, agora, vomita a todos na cara a frase “Calisto Cossa já saiu, queixem onde quiserem”.
Entre as figuras de grande gabarito literário e intelectual que marcaram o tempo e o destino da Primeira República, o nome de Leite de Vasconcelos é dos que mais se destaca. Era um homem de uma soberba, eclética e monumental cultura geral. Como publicista movia-se por todos os meios de comunicação com um engenho invejável, da rádio à escrita nos jornais, da televisão ao teatro. Era, à época, a maior figura do nosso espaço mediático. Prolífero, fecundo, abundante. Poderia ser ferozmente mordaz, mas nunca deixava de ser afável ou até mesmo cordial. Tinha argumento vívido e sagaz quando polemizava e era um prazer ouvi-lo. Não tergiversava. Era acutilante, mas com urbanidade e elegância. Era facundo. Das vezes que tive a benesse de me entrevistar com ele nunca tive a pretensão de o ombrear na conversa. Escutava-o apenas. Falasse do que falasse, fosse de autores ou livros policiais (de que era um leitor omnívoro) ou de nomes exemplares da literatura universal, ou do país e dos nossos desencontros, era um prazer escutá-lo. Dominava a arte da argumentação. Era fino na análise, quase viperino na crítica. A sua conversa, também direi dele, melhorava o silêncio. Isso é apanágio de poucos.
Os seus pais haviam chegado a Moçambique entre os finais da década de 20 e primórdios dos anos 30. A sua família cultivava a primazia de ter os filhos no mesmo lugar. Não obstante a guerra, a mãe, grávida, embarcou para Portugal para o ter em Arcos de Valdevez. Com 4 meses trouxe-o de volta. Mocímboa da Praia, Chemba, Gorongosa marcam a sua geografia infantil e juvenil. Na Beira fundará a Associação dos Jovens de Moçambique. Escusado será dizer que a censura e a proibição irão exercer-se sobre a mesma. Ainda intentaram encenar uma peça de teatro. Debalde.
O pai era funcionário na indústria do algodão. Viveu sempre longe das cidades. A importância da rádio na sua vida justifica-se, também, por esse facto biográfico. Iria para a cidade prosseguir os estudos nos Irmãos Maristas. O espaço, a liberdade, a felicidade são os acenos do interior. Quando chegou a Portugal, já adulto, ficou chocado com a pobreza e a sua rudeza: viu, pela primeira vez, brancos pobres.
Cumpriu, como meteorologista na Força Aérea, o serviço militar entre 1964 e 1968. Estou Ciências Sociais. Regressa a Moçambique. Tem uma breve passagem pelo Banco Standard Totta. Considerava-a uma experiência atroz. A despeito, começa a escrever. Essa fase da sua investida poética está espelhada nos poemas à volta do “ciclo da cidade”. Era o tempo dos cafés e da tertúlia. A contradição entre o jovem branco criado no mato e a cidade revela-se neste ciclo e nesses poemas. Mas também as interrogações mais profundas – se quisermos mais ontológicas – sobre a sua condição social e a realidade política de Moçambique e a sua evolução histórica. Um sentimento de culpa exorcizado na poesia.
Em 1969 concorre e é admitido como locutor da rádio. Tivera uma experiência breve no Aeroclube da Beira com um programa da rádio. Aliás desde essa altura até ao fim será jornalista e a rádio será o seu meio primordial. Nesses anos fazia um programa que se intitulava “A noite e o ouvinte”, no qual divulgava a actividade literária de então. É através desse programa que contactará Rui Knopfli e Eugénio Lisboa. Na mesma altura participava, na Associação Africana, nos saraus de poesia. Um grupo de dança e de música, que iria redundar no Grupo João Domingos, animava os espectáculos da Associação Africana. Foi aliás nesta agremiação que conheceu José Craveirinha. Recitava os poemas de Craveirinha, de Noémia de Sousa e de Rui Nogar. Eram subversivos. Leite de Vasconcelos dizia espantosamente bem.
Nessa altura também irá colaborar no jornal da Associação dos Naturais de Moçambique, “A Voz de Moçambique”, chegará a ser seu chefe de redacção. Rui Knopfli, Eugénio Lisboa e Adrião Rodrigues faziam a vez do conselho editorial. Foi nessa época que conheceu (também) António Quadros, que irá animar, com Rui Knopfli, a publicação dos cadernos de poesia “Caliban”, iniciativa eivada de subversão. Por vezes, encontrava-os no café Djambo. João Pedro Grabato Dias (um dos heterónimos de Quadros) tem poemas que falam abundantemente dessa tertúlia, no Djambo, e da cidade alvoroçada. Leite de Vasconcelos ia lá ouvir os mestres. Um dia, Knopfli pede-lhe colaboração para “Caliban”, o que virá a ser uma circunstância biográfica e poética de grande significado.
Em 1972 proíbem-no de trabalhar na rádio. A sua voz é banida. Ironicamente será esta mesma voz que dois anos depois irá dar expressão à senha do 25 de Abril em Portugal. Vai para Londres, contacta a Frelimo, queria ir para a Tanzania juntar-se à Frente. Aconselham-no a ir a Portugal. Lá seria mais útil à causa. Trabalha, inicialmente, no “Expresso”, semanário fundado por Pinto Balsemão e alguns dos seus companheiros da chamada Ala Liberal, que estava nos antípodas do regime. Ele está no escol de jornalista precursores do jornal. Não muito tempo depois, com um angolano e um guineense, criam, na Rádio Renascença, um programa chamado “Limite”. Manuel Tomás que saíra com ele de Moçambique participa da aventura. Como o nome denuncia queriam experimentar os limites da censura. O programa tinha grande audiência, o que levou o Movimento das Forças Armadas a contactá-lo para passar a senha do 25 de Abril. A voz que lê os versos da canção de Zeca Afonso e que está na origem do desencadeamento da revolução é a de Leite de Vasconcelos.
A Frelimo pede-lhe para permanecer em Lisboa e vai trabalhar para a delegação do Rádio Clube de Moçambique. Ficará, entre Agosto de 1974 e Abril de 1975 quando, finalmente, retorna a Moçambique e para a Rádio Moçambique, sucedânea do Rádio Clube. Vive intensamente a utopia revolucionária, como repórter, como cidadão. Entre Maio e Junho de 1975 acompanha o trabalho do então Primeiro-Ministro do Governo de Transição, Joaquim Chissano, na preparação da independência. Contacta vilas, povoações, a população e o chamado país real. Acompanha, ulteriormente, o Presidente Samora na célebre e triunfal viagem do Rovuma ao Maputo iniciada em Dar-es-Salaam. Reporta a independência. Entre os seus companheiros da Rádio está outro poeta, Gulamo Khan. Vivem, exultantes, esses momentos tremendos de profundas mudanças.
No número duplo 3 e 4 dos cadernos de poesia “Caliban”, em Junho de 1972, aparecem 3 poemas de Leite de Vasconcelos (“Sociedade de consumo”, “Sem causa” e “Sensualidade”) ao lado da colaboração poética de José Craveirinha, Orlando Mendes, Sebastião Alba, Glória de Sant’Anna, Frey Ioannes Garabatus, Jorge Viegas, entre outros. “Pelo entardecer / o sol será rubro e fulgurantemente marítimo / iremos mais sós que nós / no périplo costumado dos lugares permitidos / fazer amor com as montras e os cartazes / revestidos da passividade orgásmica / no passeio dos tristes”. A cidade, um dos seus temas obsessivos, na primeira fase da sua criação, assume já um lugar central na sua poética. Dará corpo, anos depois, ao “ciclo da cidade”. Poemas onde encontramos “pensamentos enlaçados / mãos afastadas / e na testa o mesmo vinco de ferocidade”. A cidade estava, por assim dizer, arraigada à sua poesia. Como a morte ou o amor. Sobretudo o amor sensual, táctil, corpóreo, inteligível e sensível.
Em “Sensualidade” escreve: “À porta da cantina bebia odor e seios pequenos / que passavam adivinhados ou nus nas muanacages / e segregava árvores e sombras onde deitá-las comprimi-las / iniciá-las no meu mistério de frio e de suor”. O lirismo amoroso aqui na sua indisfarçável sensualidade. Muitos anos depois, Leite de Vasconcelos escreverá alguns dos mais belos poemas da nossa lírica (“De imaginar Somente”): “Amo-te na rua quando passas / não pelo rosto / não pelas graças / que vão contigo quando passas” (…) “Amo-te na rua Rosa Ana Helena / quando passas / deixas (devagar despida) / imaginar somente Rosa Ana Helena” em “Irmão de Universo”.
Em Outubro de 1985 o poeta publicou, nas páginas da “Gazeta de Artes e Letras” da “Tempo” o poema “Lamento”. Lembro-me da impressão que me causou aquele belíssimo poema. Aliás, em Janeiro de 1987, num texto fatalmente juvenil (“A viagem da nossa poesia”) faço uma referência ao texto e ao espanto que então me causara. Leite de Vasconcelos, então Director Geral da Rádio Moçambique, onde eu debutava na profissão, chama-me à conversa e trata-me como seu igual. Não tenho sequer 20 anos. A minha admiração por ele, que já era bastante, ensoberbece.
“Lamento” é, seguramente, um dos mais belos poemas de amor da língua portuguesa. Na época encontrei alguma alusão estética ao poema “Namoro” de Viriato da Cruz. Leite de Vasconcelos não enjeitou a confinidade poética entre os dois textos, ambos de uma espantosa beleza e raro lustro. Não resisto a citá-lo na íntegra: “Cantei-te serenatas em noite de cetim / com timbilas e violinos / preparei-te um jantar de ushua e lagostim / com cebolas e pepinos. // Falei segredos a búzios da Macaneta / e mandei-tos pelo correio / aluguei à semana o estro de um poeta / e fiz um verso à curva do teu seio. // Colhi flores de madrugada nas Barreiras / abri uma machamba em Matutuíne / disse-te amor em trinta línguas estrangeiras / passeei-te no bazar em Xipamanine. / Comprei um anel de pêlo de elefante / um disco de sungura / um sofá, uma cama e uma estante / um fato azul e um garrafão de sura. // Levei-te às farras das noites de sábado. / À sombra das acácias / contei-te lendas de um tempo passado. / Deixei de ter notícias / e o fluir da tua ausência não se estanca. / Namorado, só, itinerante. / Busco-te nas ruas, encontro-te na Franca / perdi-te em casa dum cooperante.”
Bastava ter escrito este poema para Leite de Vasconcelos pertencer ao panteão dos grandes poetas. É, indubitavelmente, um dos meus poetas electivos. Escreveu tantos outros. A sua grandeza não lhe sobrevinha apenas dos textos líricos. Os seus poemas mais reflexivos ou até ontológicos são igualmente exemplares. Um dos mais belos, “Receita para uma infração" (lembra “Receita para se fazer um herói” de Reinaldo Ferreira): “Toma nas mãos uma manga / dessas que verdes o Knopfli sente / na infância do palato // Tens cinquenta anos / dois rins em greve até à morte / e um que pertenceu a alguém que desconheces / e por morto não soube a quem doou / a faculdade de mijar ainda”. Ou “Telegrama para Manuel Bandeira”, ou “O débito”, ou tantos outros.
A publicação de “Irmão de Universo” (1994) levou o tempo das nossas vicissitudes. Mas veio estabelecer um dos mais importantes revelados na década de 70, a geração à qual pertence Heliodoro Baptista, que tinha a sua firme admiração. Aliás, numa entrevista a Michel Laban afirma: “Penso que a literatura é uma literatura ainda em formação e que nós temos, neste momento, na poesia, uma voz que eu considero muito importante – além do Craveirinha, obviamente –, que é a do Heliodoro Baptista”.
Depois de um longo interregno a poesia veio-lhe numa enxurrada. Nascem os poemas que irão dar corpo a “Resumos, Insumos e Dores Emergentes” (1997) publicado após a sua morte. Escreveu teatro “As Mortes de Lucas Mateus” (2000), argumento para um filme “O Lento Gotejar da Luz” (2001) e não chegou a ver as suas crónicas coligidas em livro: “Pela Boca Morre o Peixe”(1999). “A Nona Pata da Aranha” (2004) revela-nos um contista primoroso. A cidade, o amor e a morte são os seus temas obsessivos. Todos os grandes poetas, afinal, têm os seus temas recorrentes.
Entrevistei-o em Julho de 1990 (eu tinha 23 anos e ele justamente o dobro da minha idade, 46 anos) e disse-me, nessa longa conversa, quando o interroguei sobre as suas influências, que se considerava próximo da poesia de Craveirinha, não formalmente, “mas pela atitude poética que se espelha na sua obra”, disse-me ainda que tinha “uma dívida para com o Rui Knopfli e com a revista “Caliban”. Outras referências? “Outros dois poetas com dívida importante são o António Gedeão – mesmo formalmente há algumas influências na minha poesia – e o Jorge de Sena. Mas depois há tantos outros.” Fernando Pessoa, Luís de Camões.
Falámos sobre o país, o drama da morte de Samora Machel, o papel dos intelectuais ou a ausência dele, da autocensura que muitos jornalistas se auto-impuseram, da guerra que nos corroía e desgraçava e quando lhe perguntei que aspecto destacaria nos 9 anos da nossa independência fez o diagnóstico que ainda hoje nos persegue: aviltou o proselitismo.
Não viu o melhor do seu labor publicado. A 29 de Janeiro de 1997, Teodomiro Leite de Vasconcelos, nascido a 4 de Agosto de 1944 – passam hoje 80 anos – emigrou para o páramos dos eleitos. A sua voz ainda reverbera em alguns de nós, pese embora o esquecimento e o descaso a que votamos alguns dos nossos melhores seja a franquia dos néscios.
Leite de Vasconcelos, poeta, contista, cronista, argumentista, dramaturgo, jornalista, locutor, actor, publicista, homem de rádio e de televisão, polemista, homem de uma grande cultura e de um gabarito incomum, é, definitivamente, uma das mais belas vozes da poesia moçambicana, uma das suas plumas mais esplendentes, uma das suas mentes mais cintilantes e estimulantes, irrefutavelmente a maior figura mediática dos primórdios da nossa independência.
Lisboa, 4 de Agosto de 2024