A intervenção ruandesa no combate ao terrorismo na província de Cabo Delgado continua a alimentar debates, havendo críticos que acreditam haver uma “mão” francesa na presença das tropas de Paul Kagame, assim como há quem acredita que Moçambique terá oferecido “cabeça” de alguns opositores do regime ditatorial de Kigali em troca da restauração da segurança e tranquilidade públicas no norte do país.
A tese é defendida desde Julho último, quando as tropas ruandesas começaram a palmilhar as matas de Cabo Delgado, tendo conseguido controlar os distritos de Mocímboa da Praia e Palma, dois dos distritos mais afectados pelos ataques terroristas.
Discursando na passada quinta-feira, na Assembleia da República, por ocasião da apresentação do Informe sobre o Estado Geral da Nação, o Presidente da República, Filipe Jacinto Nyusi, voltou a negar tais alegações, reiterando que o apoio ruandês se enquadra num espírito de solidariedade e na parceria bilateral existente entre os dois Estados no sector da defesa e segurança.
“Explicamos na altura [25 de Julho de 2021] que a participação do Ruanda se enquadra no princípio de solidariedade e na defesa de uma causa nobre e comum. Esse esforço de defesa não tem preço. Trata-se de salvar vidas. Trata-se de evitar a decapitação de pessoas. Trata-se de evitar a destruição de bens e infra-estruturas públicas e privadas. A República do Ruanda encontra-se no terreno a dar vida de alguns dos seus melhores filhos”, disse o Chefe de Estado.
Na verdade, trata-se de um discurso já conhecido, apresentado no passado dia 25 de Julho, aquando da comunicação à nação acerca da entrada de tropas estrangeiras no país, e repetido no dia 25 de Setembro, em Pemba, aquando da visita de Paul Kagame às tropas do seu país.
Entretanto, o rapto de um refugiado ruandês, em KaNyaca, Ntamuhanga Cassien, e o assassinato de Revocant Karemangingo, no Município da Matola, província de Maputo, levantaram suspeitas de que Maputo esteja a entregar, de “bandeja”, opositores de Paul Kagame, que se encontram refugiados em Moçambique.
A partir do pódio da Assembleia da República, Nyusi refutou tais interpretações. Entretanto, disse que o sigilo que caracteriza este tipo de memorandos o impede de dar detalhes ao povo, o seu patrão.
“Não tenho dificuldades de trazer uma coisa e mostrar que é esta ou de chamar alguém para mostrar. Mas não há exemplos iguais no mundo, quando se celebra contratos destes. Existe lá uma cláusula de sigilo. A partir do momento em que eu chego a esta casa, que é do povo, e dizer que escrevemos isto e isso, estou a violar o acordo que celebramos e não há nenhum país que tem isso. Não inventem. Não somos um país «extra-mundo» para andarmos a fazer coisas à nossa maneira e sermos estranhos ao sistema mundial”, defendeu Nyusi.
“Universidade Joaquim Chissano deve dar mais palestras a falar de tratados internacionais”
Para além de explicar o contexto da presença de tropas ruandesas, Nyusi abordou a intervenção da Força em Estado de Alerta da SADC (Comunidade de Desenvolvimento da África Austral), tendo reiterado que esta se encontra no país ao abrigo do Tratado Pacto de Defesa Mútua da organização e do Protocolo de Cooperação nas áreas de Política, Defesa e Segurança, todos ratificados pelo nosso país.
“A Universidade Joaquim Chissano [antigo Instituto Superior de Relações Internacionais] talvez tenha de fazer mais palestras para explicar esses tratados que há no mundo para não ficarmos a explicar tratados a pessoas que deviam dominar os tratados”, sugeriu Nyusi, sem apontar as pessoas que já deviam dominar os referidos documentos internacionais.
“O mandato das forças estrangeiras é de ajudar as Forças de Defesa de Segurança no terreno a restaurar a segurança e tranquilidade e permitir a retoma da normalidade para consolidar a paz definitiva. (…)”, afirmou, defendendo que Moçambique sempre foi palco de missões estrangeiras, mas que nunca tiveram qualquer questionamento como a missão de Cabo Delgado.
“Não é a primeira vez que Moçambique tem missões como estas. Aquando do Idai [Ciclone Tropical], tivemos outros voluntários que não nos pediram nada. Vieram pessoas de Angola, África do Sul, Portugal, de todo o mundo, não houve questionamento”, afirmou.
Nyusi garantiu ainda aos moçambicanos não haver atritos entre as forças que se encontram no terreno e que a intervenção estrangeira que se verifica na província de Cabo Delgado deve servir de exemplo no mundo. “A actuação das forças estrangeiras obedece a preceitos preconizados em instrumentos próprios e no âmbito de uma estrutura de comando previamente aprovada. Essas linhas garantem que não haja atritos e nem desarticulação entre as nossas forças e estrangeiras. Estamos a trabalhar com harmonia. São os nossos quadros que asseguram a direcção estratégica das operações. Assim acontece por uma questão de soberania”, assegurou Nyusi, numa explicação que durou aproximadamente 10 minutos. (Carta)