Esta fotografia de uma jovem ostentando um cartaz a dizer “Stop funding gas in Mozambique”, numa das manifestações que rodearam a COP26 em Glasgow, pôs-me a pensar. A minha primeira reacção foi “Que estupidez!” mas era uma reacção epidérmica, achei que precisava de clarificar as razões da minha rejeição dessa mensagem. Vou tentar explicar essas minhas razões.
Ninguém vive sem consumir uma razoável quantidade de energia, sob a forma de electricidade, gasolina ou diesel para transporte, gás de cozinha, carvão vegetal ou lenha. A melhoria da qualidade de vida está intimamente ligada a um maior consumo de energia. O consumo de energia per capita em Moçambique é ridiculamente baixo. A cobertura pela rede eléctrica nacional não cobre nem trinta por cento da população.
Para se desenvolver, Moçambique precisa que a sua população disponha de energia fiável e a um preço acessível. O carvão vegetal e a lenha, predominantemente usados nas áreas rurais e nos subúrbios de Maputo e de outras cidades, têm-se tornado cada vez mais caros, em paralelo com a progressiva desflorestação à volta dos principais centros urbanos. Num clima como o de Moçambique em certas regiões, a desflorestação pode originar processos de desertificação dificilmente reversíveis. O impacto ambiental negativo é enorme. O uso desta fonte de energia não é desejável nem sustentável a longo prazo.
Quais são então os grandes recursos de energia de que Moçambique dispõe para fazer face a essa necessidade? Carvão em Moatize, gás na bacia do Rovuma e em muito menor quantidade na zona de Temane, hidroelectricidade no Zambeze e (bem menos) no Búzi, Púngoè e Lúrio, e energia solar. Estamos já a usar energia hidroeléctrica (Cahora Bassa impera, Chicamba/Mavúzi uma ordem de grandeza mais abaixo) e o gás de Temane e desenvolvemos os primeiros projectos de energia solar, ainda de baixa potência. O grande projecto carbonífero da Vale em Moatize orientou-se para a exportação do carvão metalúrgico, todas as ideias / projectos de centrais eléctricas usando o carvão térmico ainda não passaram do papel. O desenvolvimento dos projectos do gás do Rovuma foram negativamente afectados pelo terrorismo em Cabo Delgado, com atraso nos prazos previstos do início da exploração.
E agora, gente como a tal jovem e outros com bem mais poder do que ela dizem que, por causa das alterações climáticas para as quais nada contribuiu, Moçambique deve ser impedido de usar o seu carvão e o seu gás. Seria irónico se não fosse dramático, trágico. Este gráfico que circulou na internet traduz bem a ideia.
Não é que nos “proíbam” de desenvolver o nosso carvão e o gás, isso não, os ricos governos ocidentais são demasiados democráticos para actuarem abertamente como polícias do mundo. A via seguida é mais ínvia, é usarem o argumento do clima para não financiarem os nossos projectos, sabendo que Moçambique não tem recursos financeiros, técnicos e humanos para o fazer só por si. E não se limitam ao não financiamento, usam a sua capacidade de pressão para tentarem bloquear outras possíveis fontes de financiamento, nomeadamente da China e da Índia.
Como fazer então para dar satisfação às necessidades de uma população em franco crescimento e que justificadamente quer ter mais energia disponível? A única alternativa para energia em grande escala é a energia hidroeléctrica mas a sua produção implica a construção de barragens e, que chatice, os ambientalistas também também não gostam de barragens, começam logo a gritar sobre os seus impactos sociais e ambientais negativos, sem ligarem peva aos estudos que se fazem e ás medidas de mitigação que podem ser adoptadas. Não por acaso, as últimas grandes barragens que se fizeram em Moçambique e as únicas pós-Independência (Pequenos Libombos e Corumana, não hidroeléctricas, construídas nos anos da guerra, década de oitenta) foram concluídas em 1990, depois delas foi iniciada a construção de Moamba-Major – e interrompida por falta de fundos. Além de que a capacidade de produção de energia hidroeléctrica também pode ser significativamente reduzida em anos de seca que, dizem os especialistas em alterações climáticas, se vão tornar mais frequentes e, por isso, há toda a vantagem em combinar a hidroelectricidade como outras fontes de energia.
Energia solar em quantidade e a preço acessível? É de gozo. E enquanto não houver um meio eficiente de armazenar energia solar para a usar quando não há sol (o que acontece todos os dias), as centrais solares exigem outras fontes de energia em paralelo, como acontece, por exemplo, em Portugal.
Talvez seja bom lembrar nesta altura que África inteira contribui com três por cento das emissões de gases de estufa. Très por cento!
Ah, mas os países ricos vão ajudar com financiamentos para se encontrarem soluções de energia não fóssil, dizem-nos. Podemos esperar sentados. Em 2009, os países do G20 comprometeram-se a doar aos países em desenvolvimento 100 mil milhões de dólares por ano para esse efeito, compromisso renovado na cimeira do clima em Paris, 2015. Pois durante estes mais de dez anos o máximo que se alcançou foi de 80 mil milhões e apenas num ano, a média dos restantes anos andou pelos 50. E não se viu que se tenha recebido algo de significativo pelas bandas de cá. A seguir ao ciclone Idai, que o mundo considerou uma das primeiras grandes evidências das catástrofes climáticas que nos ameaçam, realizou-se em 31 de Maio, logo a seguir, uma grande conferência de doadores na Beira. O governo pediu 2500 milhões de dólares, os doadores prometeram 1100, foram recebidos até agora 300 milhões de dólares. Estamos conversados.
Podemos colocar-nos uma outra questão: os projectos do carvão e do gás beneficiam a população moçambicana? Há a justificada percepção de que a corrupção generalizada faz com que os benefícios dos projectos sirvam apenas uma reduzida elite e a população das zonas afectadas fica com nada ou até em condições piores do que estava e, por isso, é melhor que não haja projecto nenhum. É um argumento razoável mas pergunto: O projecto da Vale em Moatize não trouxe benefícios à população de Tete, mesmo que tais benefícios pudessem e devessem ter sido maiores e que alguns erros cometidos em processos de reassentamento devessem ter sido evitados? Só a elite é que vai penar com o fecho do projecto? Os trabalhos que estavam em curso nos projectos do gás não davam milhares de empregos, não criavam oportunidades de negócios na região e na Província, não tinham um efeito em cascata que era positivo? Se esses projectos não trazem para a população todos os benefícios que legitimamente deviam trazer, não é nossa obrigação lutarmos diariamente para que isso aconteça? Ou cruzamos os braços e ficamos à espera que alguém lute por nós?
*Professor Catedrático, Carmo Vaz distribui regularmente, para seus amigos, suas análises e comentários sobre a sociedade moçambicana e sobre o mundo. Os textos são de grande assertividade. A pedido de "Carta", ele permitiu a sua divulgação neste jornal.