Nas vésperas de mais uma sessão do Comité Central da FRELIMO, que se realiza no fim-de-semana, a questão do tribalismo e regionalismo nos processos de sucessão e ascensão ao poder volta a dominar as conversas nos corredores digitais e não só. “Carta” faz o enquadramento da problemática, amplificando uma discussão que é, afinal, nacional.
O problema do regionalismo na governação no Moçambique actual tem bases que remontam à criação da FRELIMO em 1962 e à construção do imaginário da nação moçambicana. Ora, com o surgimento das primeiras zonas libertadas, nos anos 70, a FRELIMO encontrava terreno para implantar a ideia do homem novo. Tratava-se de um projecto de construção do Moçambique Novo, que visava destruir as ideias e hábitos corruptos herdados do passado, eliminação da superstição, promoção de uma cultura nacional, banir o elitismo e o individualismo.
Como alternativa de combate às diferenças étnicas e tribais, a FRELIMO procurou organizar os seus destacamentos, aglutinando indivíduos provenientes de diferentes regiões do país como fortalecimento do conhecimento mútuo e cultivo de solidariedade. Este projecto político visava uma sociedade baseada na partilha conjunta, cancelando qualquer tentativa tribalista, racial ou regional que sempre esteve eminente desde 1962.
É neste imaginário de construção da nação moçambicana que, logo após a independência, o III Congresso a FRELIMO (1977) decide empreender a ofensiva contra o Xiconhoca, uma figura com resquícios do colonialismo, inimigo do povo, promotor de tribalismo, racismo e regionalismo. É neste desiderato que Sergio Vieira, 1978, afirmava:
[…] eu deixei de desprezar aquele por ser Changana, porque é Maconde, porque é Ajawa, Nhungue,…começa-se a entrar nesta noção de que do Rovuma ao Maputo somos um só povo. Não há tribo pequena nem grande, não há tribo somos povo moçambicano].
Esta preocupação mostra que a “morte da tribo para construir a Nação" (Samora Machel, 1977), em nome da criação do mesmo paradigma identitário, não visava, na essência, apagar as diferenças étnicas, mas representava a vontade de promover uma unidade nacional que neutralizasse todas as tentativas particularistas e localistas, pois, como Sérgio Vieira também sentenciava, a “revolução em curso em Moçambique triunfa ou fracassa na medida em que emerge ou não emerge o homem novo (1978)”.
Ora, desde o início, esta visão esteve clara, tanto para Moçambique quanto para outros países africanos recém-independentes, porquanto as diferenças entre os grupos étnicos que se uniram para combater o inimigo directo (colonialismo) revelavam, quer antes, quer após a independência, ser uma das dificuldades do processo da construção da sociedade nova.
No entanto, a dificuldade de colocar em prática este projecto ideológico gerou um efeito contrário, aumentando conflitos e revoltas de natureza tribal. Vale lembrar que a FRELIMO foi sempre criticada por alguns dos seus militantes como sendo aquela que, desde Mondlane, privilegiava o Sul em detrimento de outras regiões. Mas, Chichava (2008) considera o período democrático de Moçambique como o momento da afirmação dos particularismos, bastando observar os partidos étnicos-regionais que emergem na década 90, na sua maioria compostos por integrantes de grupos étnicos não-reconhecidos (do centro e norte) que reivindicam a sua integração no poder e no Estado. Para além dos partidos, Chichava aponta para as associações étnico-regionais (SOTEMAZA, MOCIZA, ASSANA, etc) que, a exemplo de SOTEMAZA, expressaram abertamente o seu pedido de inclusão no poder como forma de garantir a coesão nacional.
Como pode-se notar, quer no Aparelho do Estado quer dentro do Partido FRELIMO, a questão do regionalismo é saliente. No partido, por exemplo, várias individualidades têm-no denunciado. O Presidente Armando Guebuza, discursando na I Secção Extraordinária do Comité Central da Frelimo do dia 13 de Maio de 2014, exortava aos membros do comité central para que impedissem acções que atentassem à unidade dos moçambicanos e à coesão do país, como plena alusão ao racismo, tribalismo e regionalismo ou grupo de interesse contrários a unidade nacional florescentes no partido.
Guebuza retomaria estes pronunciamentos na reunião do Comité Central de Maio de 2019 para vincar que o Tribalismo era forte na Frelimo e que se não fosse combatido, a Frelimo estaria de volta a 1962, apenas com a diferença de se ter um país independente (Carta de Moçambique, 2019). Na sequência, embora reconhecendo a existência de tendências regionalistas no seio do partido, Graça Machel, falando no IX Congresso, deplorou o crescimento do tribalismo e regionalismo na FRELIMO, notando por exemplo, que até o processo de mobilização é feito com base no regionalismo e nepotismo.
Ademais, o regionalismo no acesso ao poder nas instituições públicas foi denunciado pela presença massiva de governantes provenientes do sul de Moçambique em muitas províncias do Centro e Norte (ex. Zambézia, Tete), desde o primeiro mandato do Presidente Joaquim Chissano. Este factor reacendeu, segundo Chichava, as clivagens étnicos-tribais da época da luta pela independência. Aliás, a pressão feita pela REMANO para que a governação de cada província estivesse nas mãos dos locais é prova de que as reivindicações de vários partidos da oposição estiveram em volta da exclusão ao poder baseada em questões étnicas. Por isso, investidas da oposição para a introdução do pacote de descentralização que culminou com a última Revisão da Constituição, tinham como pano de fundo acesso à governação.
Em suma, questões de natureza tribal e regional sempre dominaram a governação em Moçambique, factor que vem propiciando o surgimento de um ambiente generalizado de desconfiança e radicalização de conflitos que, segundo Severino Ngoenha, decorrem do erro histórico que a Frelimo não consegue remediar desde que assumiu o poder, citando como exemplo a guerra em Cabo Delgado.
Portanto, para além criar crise humanitárias, a questão do tribalismo aumenta a disfuncionalidade das instituições públicas enquanto agente impulsionador do nepotismo, amiguismo, corrupção e impunidade alimentado pelo espírito de “its our turn to eat” [é nossa vez de comer], título do célebre livro de Michela Wrong sobre a ascensão ao poder em Quénia da tribo Kikuio, através do seu presidente Mwai Kibaki.
A generalização de regionalismo na governação constitui um verdadeiro entrave à prosperidade do país, estagnação da economia, terrorismo religioso, consolidação da corrupção, subornos e exclusão social como consequência da fragilização do Estado. (Carta)