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quarta-feira, 24 junho 2020 05:58

Eduardo Mondlane, 100 anos do herói moçambicano*

Um dos fundadores da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e o seu primeiro presidente, Eduardo Mondlane (1920-1969), barbaramente assassinado pelo colonialismo português, é hoje um símbolo maior da unidade nacional do povo moçambicano.

 

No começo dos anos 60 do século XX, no quadro do amplo movimento independentista que alastrava, sobretudo desde o final da II Guerra Mundial, na Ásia, na América Latina e em África, e que tinha chegado também às colônias portuguesas, Eduardo Mondlane empenha-se na construção da unidade entre algumas organizações nacionalistas recentes, formadas por moçambicanos imigrados em territórios vizinhos.

 

Nesses esforços unitários é apoiado por outros combatentes da liberdade, como o seu compatriota Marcelino dos Santos, os angolanos Agostinho Neto e Mário de Andrade, do MPLA, e o guineense-cabo-verdiano Amílcar Cabral, do PAIGC, com os quais convivera em Lisboa em 1950/1951.

 

Para denunciar o colonialismo português a nível internacional e ajudar a dinamizar e coordenar as lutas independentistas nos territórios sob ocupação colonial portuguesa, em abril de 1961 teve lugar em Marrocos a I Conferência das Organizações Nacionalistas das Colônias Portuguesas (CONCP). Dali resultou a criação de um secretariado permanente da frente unitária, que cumpriu a sua missão histórica e se manteve em atividade até finais de 1975, depois de conquistadas, proclamadas e reconhecidas as independências de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe.

 

Nos seus esforços unitários, nessa altura, Mondlane foi também encorajado por outros destacados líderes africanos da época, como Kwame Nkrumah, presidente do já então independente Gana, ou Julius Nyerere, futuro presidente do Tanganica, depois Tanzânia, após a fusão com Zanzibar. 

 

Assim, sob impulso de Mondlane, de Marcelino dos Santos e de outros patriotas, é criada em Dar-es-Salam, em 25 de junho 1962, a FRELIMO, aglutinando a União Democrática Nacional de Moçambique (UDENAMO) e a União Nacional Africana de Moçambique (MANU) e, mais tarde, a União Nacional Africana de Moçambique Independente (UNAMI).

 

Estavam assim criadas as condições para o desencadear da última etapa da luta de libertação nacional dos moçambicanos, na continuação da resistência à dominação estrangeira e num contexto internacional favorável às aspirações dos povos colonizados à sua emancipação, acentuado após a II Guerra Mundial com a derrota do nazi-fascismo e a consolidação do prestígio da URSS e demais países socialistas.

 

Entre 23 e 28 de setembro de 1962, também em Dar-es-Salam, realiza-se o I Congresso da FRELIMO e Mondlane é eleito seu presidente por ampla maioria.

 

Logo ali ficam definidos os grandes objetivos da luta de libertação nacional do povo moçambicano, depois consagrados nos estatutos e programa da nova organização: a liquidação total da dominação colonial portuguesa e de todos os vestígios do colonialismo e do imperialismo; a conquista da independência total de Moçambique; e a realização das aspirações de todos os moçambicanos explorados e oprimidos pelo regime colonial (“construir um Moçambique independente, desenvolvido e próspero, onde o poder pertença ao povo”). Houve também desde o início uma preocupação grande com o forjar da unidade nacional (“eliminar todas as causas de divisão entre os diferentes grupos étnicos moçambicanos: construir a nação moçambicana, na base da igualdade de todos os moçambicanos e do respeito pelas particularidades regionais”).

 

À semelhança do que já acontecia em Angola e na Guiné, a luta armada foi a via emancipadora escolhida pela FRELIMO, dada a recusa intransigente do colonial-fascismo português em reconhecer e aceitar o direito dos povos africanos à autodeterminação e à independência. A ditadura salazarista já antes tinha recusado as propostas dos líderes do PAIGC e do MPLA para uma solução pacífica visando a independência dos territórios sob ocupação colonial portuguesa.

 

Inicia-se então a mobilização do povo moçambicano para a luta e, em 1963, os primeiros grupos de guerrilheiros são treinados na Argélia recém-independente. Desses primeiros combatentes faz parte Samora Machel, que depois seria líder da FRELIMO e mais tarde o primeiro presidente do Moçambique independente.

 

 

O desencadear da guerra libertadora moçambicana tem lugar em 25 de Setembro de 1964, na província nortenha de Cabo Delgado, abrindo uma terceira frente militar contra o colonialismo português, uma vez que movimentos como o MPLA, em Angola, desde 1961, e o PAIGC, na Guiné-Bissau, a partir de 1963, já lutavam de armas na mão pela independência e libertação nacional dos seus povos.

 

É Mondlane quem lê na rádio o comunicado da FRELIMO proclamando a “insurreição geral armada” contra o regime colonial português, dirigindo-se a “moçambicanas e moçambicanos, operários e camponeses, trabalhadores das plantações, das serrações (…), trabalhadores das minas e das estradas de ferro, dos portos e das fábricas, intelectuais, funcionários, estudantes, soldados moçambicanos no exército português, homens, mulheres e jovens, patriotas.” E promete que a luta para “a conquista da independência total e completa de Moçambique” só cessará com “a liquidação total e completa do colonialismo português.

 

A luta política e armada conduzida pela FRELIMO avança rapidamente. São criadas zonas libertadas no Norte de Moçambique que escapam à administração colonial e constituem o embrião do futuro Estado moçambicano.

 

Com o desenvolvimento da luta armada independentista, tem lugar de 20 a 25 de julho de 1968 o II Congresso da FRELIMO, em Matchedje, no Niassa, numa zona libertada. Participam 170 delegados de “todas as camadas do povo moçambicano, operários, camponeses, intelectuais e chefes tradicionais” e assistem observadores da Organização de Solidariedade Afro-Asiática e convidados do MPLA (Angola), ANC (África do Sul) e ZAPU (Zimbabwé), além do jornalista e escritor britânico Basil Davidson.

 

A declaração final do encontro é clara quanto aos objetivos estabelecidos e à natureza do combate libertador: “Unido, do Rovuma ao Maputo, gozando do apoio das forças populares do mundo inteiro, o povo moçambicano, sob a direção da FRELIMO, continua a desenvolver a guerra popular de libertação nacional, pela erradicação definitiva do colonialismo português, do imperialismo e da exploração do homem pelo homem, pela conquista da independência nacional e a instauração de uma ordem social popular em Moçambique”.

 

O caminho do socialismo

 

Em fevereiro de 1969, pouco antes de ter sido assassinado, numa declaração à rádio da oposição democrática portuguesa em Argel, feita no final da Conferência Internacional de Solidariedade com as Colônias Portuguesas e da África Austral, em Cartum, Mondlane falou sobre o II Congresso da FRELIMO.

 

Explicou por que razão a reunião teve lugar só cinco anos depois do I Congresso: “Dadas as dificuldades que surgiram, e também por causa do desenvolvimento da luta armada, não foi possível realizá-lo antes”. Nesse período, muitos problemas surgiram e desenvolveram-se na estrutura política interna da FRELIMO, no trabalho de organização das populações, na preparação das ações militares e na própria luta armada, desde 1964. Por isso, “era necessário reunir as massas, os representantes do povo, para discutir os problemas e ver qual seria a linha mais correta no desenvolvimento do trabalho”. E assim, “quando nos reunimos em junho, o povo estava preparado para compreender os objetivos dos dirigentes da FRELIMO, assim como estava preparado para perceber os problemas da própria luta armada”.

 

Segundo Mondlane, um dos problemas colocados ao povo era saber se a luta em curso seria “uma luta de longa duração, uma guerra prolongada ou uma luta a curto prazo”. Por isso, “foi necessário discutir que tipo de guerra, o tipo de luta que estamos a travar”, optando-se pela estratégia da guerra prolongada.

 

Também mereceram atenção os problemas econômicos e sociais que preocupavam quer a população das regiões libertadas e semi-libertadas, quer as populações que, por causa da luta, estavam em contato com o inimigo. Tais como o abastecimento de artigos de largo consumo, a falta de hospitais e escolas, o alojamento das pessoas, a participação das mulheres na luta.

 

A posição da FRELIMO em relação a outros países africanos foi igualmente debatida no II Congresso, contou Mondlane: “Nós estamos cara a cara com a Tanzânia, um país amigo e revolucionário. Por outro lado, temos o Malawi, cuja política é reacionária e colonialista, onde um homem como Banda, que foi militante africano no passado e do qual muita coisa esperávamos, está hoje do lado do imperialismo. Há aqueles que assumem posições intermédias, como é o caso da Zâmbia. Consequentemente, era necessário explicar: o que é a África libertada? Que sistemas políticos a dominam? Porque existem homens como Tchombé? Qual é a razão dos sucessivos golpes de Estado? Dado o papel que o imperialismo joga em todas estas situações, era necessário definir a orientação política a seguir e o que se pode esperar de países progressistas da Europa, da Ásia ou da América Latina. O povo que luta, especialmente no Norte, tem necessidade de saber quem é que nos ajuda. O seu contato diário com materiais, armas, medicamentos, equipamentos e alimentos obriga-nos, como é nosso dever, a explicar-lhe quais são as nações nossas amigas e quais são as razões políticas porque países tão distantes se interessam pelos problemas do nosso povo e dão-nos ajuda desinteressada”.

 

 

Sobre as relações entre os povos moçambicano e português, Mondlane era claro: “O povo português tem um papel importante a desempenhar na solução do problema comum aos povos das colônias e de Portugal. Nós, povos de Moçambique, Angola e Guiné, estamos unidos ao povo de Portugal pela identidade da nossa luta contra o fascismo português”. Mais: “Nós confiamos nas posições de luta do povo português contra o fascismo e esta confiança aumenta pelo fato de conhecermos os dirigentes do povo português”. Pelo que “o povo português deve compreender que o povo moçambicano é um povo irmão. Nós, moçambicanos, não temos nada contra o povo português, nem contra a cultura portuguesa. Pelo contrário, o português é a língua falada em todas as nossas escolas do Norte, nas regiões libertadas, e é também o português que é ensinado nas nossas escolas no estrangeiro”. E quanto ao futuro: “Nós queremos cooperar com os democratas portugueses no âmbito da libertação de Moçambique e de Portugal. Queremos colaborar com eles na construção de um novo Mundo, manter com eles um intercâmbio de experiência e de cultura”.

 

A seguir ao II Congresso da FRELIMO, em 1968, Mondlane precisa o seu pensamento sobre a natureza do movimento e os objetivos da luta de libertação nacional, numa entrevista ao jornalista Aquino de Bragança, que participara na fundação da CONCP e acompanhava de perto a luta de libertação nacional moçambicana.

 

(…) Uma base comum que todos tínhamos quando formámos a FRELIMO era o ódio ao colonialismo, a necessidade de destruir a estrutura colonial e impor uma nova estrutura social… Mas que tipo de estrutura social ninguém sabia. Alguns (…) tinham ideias teóricas, mas mesmo esses foram transformados pela luta. Há uma evolução no pensamento que se operou durante os últimos seis anos, que me pode autorizar (…) a concluir que a FRELIMO é, agora, realmente, muito mais socialista, revolucionária e progressista… E a tendência agora é mais e mais em direção ao socialismo de tipo marxista-leninista. Porque as condições de vida em Moçambique, o tipo de inimigo que nós temos, não admite qualquer outra alternativa (…) Eu acho que a FRELIMO, sem comprometer o Partido, que ainda não fez uma declaração oficial dizendo que era marxista-leninista, se está inclinando mais e mais nessa direção, porque as condições em que nós lutamos e trabalhamos assim o exigem”, afirmou Mondlane a Bragança.

 

Já em 1967, o líder da FRELIMO declarara a um jornal tunisiano que as mais importantes ajudas ao movimento provinham da União Soviética, China, Checoslováquia, Bulgária e Iugoslávia e que Moçambique, após a libertação, trilharia o caminho do socialismo.

 

Eduardo Mondlane nasce em 1924 numa aldeia do distrito de Manjacaze, na província do Xai-Xai, no Sul de Moçambique.

 

Faz o ensino primário em missões protestantes e, aos 13 anos, vai para a capital da colônia, Lourenço Marques, onde trabalha e estuda.

 

Apoiado pelos protestantes, recebe um bolsa para fazer o secundário na África do Sul. Em 1949 ingressa na Universidade de Witwatersrand, na Faculdade de Sociologia e Antropologia, em Joanesburgo, mas pouco depois é expulso pelas autoridades racistas sul-africanas.

 

Hoje, sabe-se que, nessa sua estada na África do Sul, Eduardo Mondlane e outros jovens, futuros dirigentes e movimentos anti-colonialistas da África Austral, tiveram contatos com Nelson Mandela, então dirigente do Congresso Nacional Africano (CNA), mais tarde o primeiro presidente eleito democraticamente no seu país.

 

Numa carta escrita da prisão de Robben Island, datada de 1 de dezembro de 1970, dirigida a Sanna Tysie, proprietário do café-restaurante Blue Lagoon, em Joanesburgo, Mandela conta que ali se reunia, após a II Guerra Mundial, com outros jovens patriotas africanos de diferentes países. Além de Mondlane, participaram desses encontros Seretse Khama, que seria o primeiro presidente do Botswana, Oliver Tambo, que foi presidente do CNA e Joshua Nkomo, fundador e líder da União Popular Africana do Zimbabwe (ZAPU).

 

Mondlane regressa então, em 1949, a Lourenço Marques, onde funda com outros jovens patriotas o Núcleo de Estudantes Secundários Africanos de Moçambique (NESAM), ligado ao Centro Associativo dos Negros de Moçambique.

 

Em outubro de 1950 segue para Portugal, para frequentar a Faculdade de Letras, em Lisboa, com uma bolsa de estudos da Phelps Stokes Found, uma organização privada de Nova Iorque que apoiava jovens africanos e negros norte-americanos.

 

Na capital portuguesa, Mondlane convive de perto com outros futuros destacados dirigentes das lutas de libertação nacional das então colônias africanas portuguesas – Agostinho Neto, Mário de Andrade, Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos –, frequenta a Casa dos Estudantes do Império e participa em atividades do Centro de Estudos Africanos, conhece de perto a luta dos democratas portugueses contra o fascismo.

 

Em 1951, face à “constante perseguição que a maior parte dos estudantes africanos sofria em Lisboa”, segue para os Estados Unidos, com nova bolsa de estudos, patrocinada por religiosos protestantes.

 

Licencia-se e doutora-se em Sociologia e Antropologia, em 1957 começa a trabalhar para as Nações Unidas, em 1961 lecciona na Syracuse University de Nova Iorque.

 

Nesse ano ainda visita Moçambique e decide regressar a África e dedicar-se à luta pela independência do seu país.

 

Em princípios de 1969, face aos avanços do combate emancipador, Eduardo Mondlane é assassinado em Dar-es-Salam, vítima da explosão de uma encomenda armadilhada, enviada por agentes do colonialismo português. O dia 3 de fevereiro, data da sua morte, é hoje celebrado no seu país como Dia dos Heróis Moçambicanos.

 

Apesar do hediondo crime, entre muitos outros – que o colonial-fascismo português repetiu em janeiro de 1973, assassinando em Conakry o líder do PAIGC, Amílcar Cabral –, já não foi possível impedir a luta emancipadora dos povos dos territórios africanos ocupados por Portugal.

 

A Guiné-Bissau, em 1973, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Moçambique e Angola, em 1975, conquistaram a independência e estabeleceram relações de amizade e cooperação com o Portugal democrático saído da Revolução de Abril, construindo desde então o seu próprio futuro, apesar das dificuldades e contradições e dos problemas criados ou agravados pelas pressões, ingerências e guerras provocadas pelo imperialismo, ontem como hoje o grande inimigo dos povos.

 

(*Carlos Alberto Pereira)

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