Desde os ataques de Outubro de 2017 em Mocímboa da Praia, realizados por alegados insurgentes islamistas, vulgarmente referidos como Ahlu Sunnah Wa-Jama e localmente conhecidos como Al Shabab, não é inteiramente claro quem eram os atacantes, quais são os seus objectivos estratégicos e com que apoio nacional e internacional contam. O presente documento (“Carta” publica apenas a secção das Conclusões), baseado num entendimento histórico do conflito na província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, procura identificar possíveis intervenientes e cenários no que já deixámos de considerar uma insurreição para passar a considerar uma guerra.
Concluímos que sob o «nevoeiro da guerra» em Cabo Delgado, vários intervenientes e os seus aliados externos podem ter interesse nessa Nova Guerra, e agir estratégica e militarmente em função desses interesses, ocultos pelo nevoeiro e por um apagão total dos meios de comunicação social. Distinguimos seis cenários ou hipóteses, derivadas de explicações divergentes das origens da violência nas seções anteriores. Obviamente estes devem ser, sujeitos a mais investigação para serem confirmados ou infirmados:
Aliança entre negócios ilícitos e islamistas armados
Assente no interesse mútuo, esta hipótese implicaria o eventual surgimento de um proto-estado islâmico em Cabo Delgado, de que beneficiariam ambos os grupos de intervenientes – um, pela consolidação de uma forma radical de Islamismo em Cabo Delgado, e outro, pelo aumento dos lucros resultantes de transacções ilícitas, protegidas pela violência armada islamista. O estado moçambicano perderia cada vez mais o controlo. Dada a ausência de indícios de um programa político por parte dos insurgentes e do estabelecimento de uma base tributária própria, típica deste cenário, consideramos este cenário, por enquanto, irrealista e pouco provável. Para imitar o êxito do modelo do al-Shabaab na Somália, o grupo islâmico de Cabo Delgado pode não estar suficientemente enraizado na cultura local, impregnada de sufismo popular ao longo de séculos. Isto faz com que o surgimento de um proto-Estado islâmico que favoreça agentes económicos ilícitos não seja muito provável nesta altura.
Insurgentes como braço do ISIS
Este cenário, muito comum nos actuais relatórios sobre a guerra em Cabo Delgado, identificaria os insurgentes moçambicanos, cada vez mais bem equipados e mais bem formados, como executores de uma acção armada jihadista em Cabo Delgado, que constituiria o primeiro passo de uma incorporação de Cabo Delgado numa ISCAP dominada por islamistas. Neste caso, a ISCAP seria considerada «dona» da violência. O facto de os rebeldes terem empunhado a bandeira do ISIS em ataques a vilas de Cabo Delgado e de o ISIS ter reivindicado os ataques no prazo de 24 horas seriam indicadores da probabilidade deste cenário. Tal como no Cenário 1, porém, há dúvidas quanto ao programa político dos insurgentes, quanto à origem das suas armas e mantimentos, e quanto ao seu local de treino. Também seria necessário explicar como é que os andrajosos insurgentes dos primeiros momentos da ofensiva islamista de finais de 2017 se transformaram numa força de combate bem organizada e bem equipada, que conhece bem o terreno em Cabo Delgado. Apesar destas ressalvas, neste momento, este cenário parece mais realista e mais provável que o Cenário 1.
Homens Grandes macondes e secessão de Cabo Delgado
Este cenário assenta na constatação de que muitos cidadãos de Cabo Delgado consideram que a riqueza da província em gás natural lhes pertence e tem de ser defendida contra o interesse dominante dos «sulistas». Agora que o poder político e um parte do poder militar se deslocou para Cabo Delgado, onde se pensam encontrar as riquezas do país, o sonho do Nkavandame de um Cabo Delgado rico e parcialmente autónomo sob domínio maconde pode ser considerado menos fantasioso que quando o líder maconde foi morto por ter dado conta desse sonho. Este cenário implicaria também a atenuação de conflitos intraétnicos. Neste cenário, a elite maconde seria considerada «dona» da violência, mas as acções armadas podem ser executadas por outros, até por unidades especializadas ocultas, possivelmente com o apoio de empresas militares privadas do tipo do Grupo Wagner. O facto de os Homens Grandes macondes terem uma posição sólida na liderança política da Frelimo e beneficiarem de oportunidades de negócio em todo o país faz com que este cenário não seja nem realista nem provável.
Revolta muâni inspirada pelo islamismos contra a dominação maconde e da Frelimo
Este cenário implica uma tentativa militar de reafirmar o modo de vida e a religião dos falantes de outras línguas que não o maconde em Cabo Delgado. Dialectos do grupo linguístico macua, a que pertence o muâni, são falados pela maioria dos moçambicanos, também em Cabo Delgado. E o Islão é, segundo o censo populacional de 2017, de longe a religião dominante em Cabo Delgado, tanto nas zonas urbanas como zonas rurais, seguida pelo catolicismo. Este cenário pressuporia uma rebelião da maioria muçulmana da costa suaíli contra o regime minoritário que representa o estado da Frelimo, considerado opressivo e corrupto. Dois pormenores podem servir de indicadores. Em primeiro lugar, muitos dos insurgentes parecem ser falantes de muâni ou suaíli e, em segundo lugar, parecem estar a recrutar seguidores na província adjacente de Nampula, predominantemente nas zonas e distritos costeiros, com uma grande afinidade cultural e religiosa com os de Cabo Delgado.20 Uma «aliança de conveniência» com as FDA, o ISIS e/ou os rebeldes da costa suaíli tanzaniana seria interpretada como um reforço do poder bélico dos rebeldes e visaria promover o Islão como religião predominante. Este cenário é, a nosso ver, realista e provável, também porque implica um enraizamento na cultura local. Revolta muâni inspirada pelo islamismos contra a dominação maconde e da Frelimo.
Antigos detentores de poder e recursos contra os interesses dos novos poderosos
Este cenário representa um tipo de conspiração militar apoiada por assistência de segurança externa, por exemplo pelo FSG de Eric Prince e dos seus apoiantes, liderados pelos membros do grupo de Guebuza que, durante muito tempo, foram os anteriores detentores do poder. Teria o duplo objectivo de destruir qualquer sonho secessionista à nascença e consolidar o domínio dos «sulistas», e controlar a riqueza extractiva de Cabo Delgado sob o lema da unidade nacional. A sua motivação estratégica pode incluir a vingança contra um «tribalista» indesejado novo no poder, mas também a prevenção da erosão do domínio histórico dos ‘sulistas’ sobre os recursos políticos e econômicos de todo o país, associados ao medo de tais perdas. Na nossa análise, consideramos realista e provável este cenário, que parece ter um número considerável de adeptos em Cabo Delgado e não só.
Sobreposição parcial de cenários
Teoricamente, não se pode excluir a sobreposição parcial e temporária dos interesses dos intervenientes. Poder-se-ia pensar, por exemplo, numa intersecção dos Cenários 1 e 2, o que implicaria um juntar de forças entre o ISIS, negócios ilícitos e grupos armados jihadistas locais a fim de criar um proto-estado islâmico em Cabo Delgado para evitar o domínio dos «nortenhos» e o seu controlo sobre as indústrias extractivas. Poderia também ver-se alguma sobreposição dos Cenários 1, 2 e 3, o que certamente teria de ser considerado um cenário pessimista. Também se poderia imaginar uma intersecção entre os Cenários 1 e 5, em que os principais actores do Cenário 5 usam um «estilo» islâmico na sua acção armada para tentar alcançar os seus interesses estratégicos, sem necessariamente tentarem criar um proto-estado islâmico. (*Francisco Almeida dos Santos, in CMI Insight Maio 2020, Guerra no Norte de Moçambique, uma Região Rica em Recursos Naturais – Seis Cenários/Excerto)