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segunda-feira, 26 agosto 2019 09:24

Uniões prematuras no país: Legislação é importante e bem-vinda, mas a “vontade política é central”, defende Conceição Osório

A Assembleia da República (AR) aprovou, em Julho último, a Lei de Prevenção e Combate às Uniões Prematuras. E por as uniões prematuras constituírem um tema que mexe com a estrutura da sociedade moçambicana, a diversos níveis, “Carta” conversou com a socióloga e coordenadora de pesquisa da Women and Law in Southern Africa Research and Education Trust (WLSA), Conceição Osório.

 

 

Conceição Osório é clara quanto ao papel da legislação ora aprovada. “É importante e bem-vinda”, mas defende a transformação do assunto das uniões prematuras numa “questão pública”, isto porque mexe com os direitos e liberdades dos cidadãos. Aliás, a pesquisadora considera, igualmente, a necessidade de a classe política assumir, de forma realística, o combate a estas práticas, apontando a “vontade política” como um elemento primordial para a erradicação das mesmas, que marcam profundamente a sociedade moçambicana.

 

Autora do livro “Género e Democracia”, Conceição Osório apontou o investimento na educação da rapariga, do adolescente e jovem como um importante meio para a mudança do estado de coisas.

 

Acompanhe a seguir os excertos da conversa.   

 

Foi aprovada a legislação sobre as Uniões Prematuras, mas a principal questão que se levanta é a aplicação. Como olha para esta realidade?

 

“Esse é um problema que nós tínhamos até com a Lei da Violência Doméstica. A Lei é importante porque tem o efeito dissuasor, na medida em que as pessoas conhecem e sabem que ela sanciona, mas não só sanciona, quando é divulgada tem o carácter de prevenir que as coisas se realizem, neste caso, as uniões prematuras. Por outro lado, é evidente que não basta existirem leis, mas é preciso que haja um trabalho inter-sectorial. Que haja políticas públicas de combate aos casamentos prematuros. Que tenha, por exemplo, condições para o acolhimento das crianças que se recusam a casar. Quando fazia um trabalho em Búzi, encontrei meninas que fugiram aos casamentos prematuros. É preciso que haja um esforço e que deve ser assumido. Há sim um compromisso teórico e depois não há um compromisso de dizer como é que nós vamos actuar para que as famílias sejam convencidas a não aderir. É preciso que haja convicção de que isto é uma violação do direito”.

E a questão dos Ritos de Iniciação?

 

“Realmente, os ritos estimulam os casamentos prematuros, embora eu ache que seja um processo muito em mudança, mas estimulam. Entrevistei dezenas de meninas e o meu colega entrevistou rapazes e a última coisa que se diz às meninas, no último dia dos ritos, é que estás pronta e, muitas vezes, nas aldeias onde a menina é iniciada vai-se de casa em casa batendo palmas, dizendo que temos rapariga. Então, isto estimula”.

 

Que garantias há de que estas leis não vão entrar em choque com os hábitos e os costumes da nossa sociedade que é marcadamente tradicional?

 

“Se formos ao longo da história, desde a legislação que é a favor dos direitos humanos, tem havido resistência e ela não é aplicada com êxito em 10 anos ou em 20 anos. Tem de ser acompanhada por outras acções como, por exemplo, a divulgação. É necessário que seja um compromisso político assumido por toda a gente. Se nós estamos a lutar contra uma cultura de violência, e o casamento prematuro insere-se nesse âmbito, todos, sem excepção, devem estar envolvidos nesta causa. Não podemos permitir que haja grupos que exerçam poderes completamente arbitrários sobre os outros, sobretudo com os que são dependentes pela idade. Vai ser um processo de muitas acções que devem ser levadas a cabo por muitos anos. É preciso investir na juventude. A lei é muito importante porque é dissuasora e tem todas estas componentes que se forem cumpridas podem trazer resultados positivos”.

 

Tendo em conta o estado de coisas, que futuro se desenha para o país, tendo em conta, primeiro, a evolução do quadro legislativo aliado aos aspectos culturais?

 

“Eu acho que a lei é imprescindível e é um progresso. É uma vitória para todos aqueles que lutaram por igualdade de direitos. É evidente que a cultura, os contextos culturais, são variáveis e até, às vezes, são variáveis na mesma região. Depende de muitos factores. Agora, se formos a Mocímboa da Praia, por exemplo, há uma tendência de as pessoas se fecharem em determinados elementos conservadores até por questões de sobrevivência espiritual, mas eu acho que isso é inevitável e já temos provas de que a cultura está a ser transformada de forma mais lenta”.

 

Será que é punindo o líder comunitário, aquele pai, aquela mãe, o encarregado de guarda que abona a união prematura que resolvemos a situação?

 

“Nenhuma medida legislativa por si só resolve o problema. Tem de ser uma medida que envolva vários grupos e isso leva muitos anos. Tem de ser uma medida que congrega a discussão, a prevenção e a sanção. A sanção só por si não resolve nada porque ela só penaliza, mas não muda a mentalidade. As coisas continuam e vão continuar a ser feitas clandestinamente. Eu acho que não é chegar ao líder e dizer que há uma lei e que vai ser preso. É tudo um conjunto de acções que têm de ser preventivas, que têm de ser ao mesmo tempo de acolher e convencer as pessoas e mostrar que as coisas estão a mudar, porque se calhar esse líder não casa facilmente a sua filha”.

 

A Dra. falou da necessidade da mudança de mentalidade. Por onde começamos esse processo de mudança da mentalidade?

 

“Nós temos de começar de vários pontos, dependendo inclusive do contexto, porque há contextos diferenciados no país. Tem de se começar pela educação. Acções múltiplas de educação junto dos vários actores, sobretudo dos jovens. A Escola tem um papel determinante nisso. Criar espaços para discussão, criar debates entre rapazes e raparigas, onde discutam questões, desde pessoais às mais gerais. Criar uma certa forma de despir tabus. Tirar estes assuntos que mais parecem que se discutem no privado. Transformar isso numa questão pública, uma questão de direito e a educação é fundamental, mas isso depende muito de políticas públicas bem-feitas e vontade política. A vontade política é central porque, às vezes, quando a lei existe e é devidamente aplicada, receia-se o facto de as pessoas reivindicarem mais. E o combate aos casamentos prematuros é uma reivindicação de direitos. Vai ser um processo muito lento, mas eu acho que passa por aí. E nesse campo, a lei é importante porque ela diz que eu não só sanciono como quero prevenir, criando uma série de condições para que os casamentos prematuros não aconteçam”.

 

Apesar das reformas (legislativas), as uniões prematuras não fazem parte da agenda nacional (dívida oculta, partido X). Como lidar com essa questão?

 

“Enquanto este problema de restrição dos direitos, ocultação da violação de direitos na família não for trazido para o espaço público como uma questão importante é mesma coisa que dizermos que temos um sistema de cotas e temos presença das mulheres na esfera pública, mas não temos transformação do campo político. O campo político continua a ser eminentemente masculino. O campo político não está a atravessar para a esfera da política. A presença feminina não pode significar apenas presença, não queremos mais mulheres, como o que aconteceu com Alice Tomás que apareceu a estimular a violação sexual da Fátima Mimbire, por exemplo. Nós queremos gente que traga o problema da violação à tona e nós sabemos que a mesma é um problema de suade pública. São problemas de direitos gerais dos cidadãos e da cidadã, não de um grupo só. Têm de ser trazidos para o discurso político como um problema central da vida das pessoas”. (Ilódio Bata)

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