Jovens de vários extractos sociais saíram à rua esta quarta-feira, trajados de preto em vários pontos do país, em repúdio ao assassinato de pelo menos 50 pessoas pelas forças policiais durante as manifestações convocadas por Venâncio Mondlane em protesto aos resultados eleitorais anunciados pela Comissão Nacional de Eleições, que dão vitória à Frelimo e Daniel Chapo.
O traje resulta do anúncio, na terça-feira, de três dias de luto nacional, decretados pelo candidato presidencial Venâncio Mondlane, em memória aos cinquenta mortos durante as manifestações contra a fraude eleitoral. Durante este período de luto, Mondlane apelou que todos vestissem de preto ou, pelo menos, usassem um item de cor preta (laço, luvas, chapéu, entre outros artigos).
O pedido foi acatado e ontem milhares de cidadãos saíram à rua de preto, em Maputo e Matola. Logo nas primeiras horas do dia, “Carta” fez uma escala em Malhampswene, um dos locais de maior concentração de vendedores e de diversos populares provenientes de diferentes bairros da cidade e província de Maputo, e observou algo diferente: a presença massiva do preto. Quase todos os vendedores e passageiros usavam roupa preta ou um avental, boné, lenço ou laço preto.
Aliás, para a nossa surpresa, vários operadores de transporte semi-colectivo que desaguam em Malhampswene exigiam uma peça preta como condição para que os passageiros tivessem acesso ao carro e pudessem se dirigir aos seus destinos.
Em conversa com Noémia Nhampossa, residente em Marracuene, contou que teve de vestir-se de preto para garantir a sua segurança na rua, enquanto se dirigia ao seu local de trabalho. “Depois de acompanhar a live de Venâncio Mondlane, ontem [terça-feira], em que ele apelava para que vestíssemos uma peça preta, decidi preparar uma saia e blusa preta para garantir a minha livre circulação”, contou.
Continuando, disse: “um facto curioso é que não foi nada fácil conseguir transporte hoje [ontem] devido à roupa que eu trajava. Na minha zona, há falta de transporte e dependemos muito de boleia paga em carros particulares para chegar à cidade. O que pude perceber é que muitos dos que nos dão essas boleias são frelimistas e, quando perceberam que grande parte dos que estavam na paragem estavam vestidos de preto, passavam e não aceitavam levar ninguém. Outros até paravam para espreitar da janela e, logo que viam alguém de preto, diziam: ‘Vocês são venancistas [referência aos que apoiam Venâncio Mondlane], por isso, hoje não vamos vos levar”.
Conversamos também com Hélio Mateus Cuna, residente na cidade da Matola, que contou à nossa reportagem que, na noite de terça-feira, quando se apercebeu de que a sua esposa estava engomando uma camisa vermelha, ordenou que ela trocasse por uma preta para evitar que lhe partissem os vidros do carro na estrada.
“Eu vesti-me de preto em respeito ao luto, porque 50 vidas se foram a defender a nossa causa e isso não é pouco. Não sou pró nem contra o venacismo, mas gosto de ser justo. Foram vários inocentes que deram o peito à bala para defender um futuro melhor do nosso país. Mas, uma das maiores razões que me fez vestir um fato preto e uma camisa preta foi para conseguir sair de casa e voltar em segurança, porque alguns oportunistas nas ruas acabam se aproveitando dessas situações para partir os vidros, principalmente quando percebem que você não acata o que Venâncio diz”, disse Cuna.
Cruzamos também com Helena Lopes Loforte e Judite Laura das Neves, vizinhas e colegas de trabalho, ambas vestidas de preto da cabeça aos pés. As duas residem no bairro Patrice Lumumba e contaram que, logo nas primeiras horas, os “modjeiros” (aqueles que são responsáveis pela busca de passageiros) estavam a mandar descer todo o passageiro que tentasse subir no transporte público sem roupa preta. Para sorte delas, não fugiram ao protocolo.
“Na verdade, eu vesti roupa preta por medo do que poderia acontecer na rua. Eu trabalho num local onde não posso faltar, sob o risco de perder o emprego. Então, para garantir a minha ida segura, vesti a roupa preta. Eu sou do Venâncio, eu estou com o povo, eu sinto pelas vidas que se foram, mas o meu preto de hoje foi mesmo pela minha segurança”, disse Helena.
“Na empresa onde trabalhamos, o meu supervisor procurou saber se estávamos de preto ou não. E, logo que o ponteiro indicou 12h00, todas as máquinas foram desligadas e fizemos uma oração em memória às 50 mortes. Foi bonito de ver. Alguns colegas murmuravam e diziam que o trabalho estava atrasado por conta de infantilidades e pessoas usadas pelo Venâncio”, frisou Judite.
Outro facto curioso anotado pela nossa reportagem foi quando tomamos o transporte da cidade da Matola para Malhampsene, em que todos os passageiros estavam vestidos com uma peça preta, incluindo o cobrador e o motorista. Durante o percurso, o cobrador procurou saber se todos estávamos de preto para prosseguir com a viagem, pois, em Malhampsene foi estabelecida como condição levar apenas os passageiros “de preto”.
Convidado a pronunciar-se sobre o momento actual, Luarte Simão Rungo, cobrador daquele transporte, disse que o preto para ele tinha um significado muito importante e que continuaria a usá-lo até novas ordens de Venâncio Mondlane.
“Eu vi um vizinho perder a vida vítima de uma bala disparada pela Polícia, vítima da covardia daqueles que trabalham para a Frelimo, vítima da reivindicação dos nossos direitos... Ele lutou por nós, lutou para que fôssemos libertos. Vestir preto é pouco para mostrar solidariedade por essas vítimas que morreram para termos melhores condições neste país.”
Refira-se que, além de “decretar” três dias de luto nacional, Mondlane apelou para a recontagem dos votos, em vez de novas eleições, e uma homenagem bem prestada aos mártires da revolução. (M.A.)