Podemos estabelecer definitivamente que o barulho que o povo de Covô Gêr-Gêr, uma povoação do Distrito de Nacala-à-Velha, deu como presente ontem ao Presidente Filipe Nyusi é mais um sinal de contestação popular, em face da recente crise de gestão eleitoral?
Talvez sim, talvez não! Nacala-à-velha não é um distrito autarcizado, mas suas populações não estão alheias à recente vaga de manifestações – e sua narrativa de reprovação ao regime – que marcou os dias subsequentes ao pleito de 11 de Outubro.
A televisão em Moçambique é vista em todo o lado e as redes sociais penetram nas profundezas do país rural, através da Movitel, que tem, curiosamente, como um dos accionistas a holding da Frelimo, SPI. Por isso, a hipótese de que o barulho do povo de Covô Gêr-Gêr era uma forma de reprodução do mesmo repúdio, mas aqui em voz baixa, pode ser plausível.
Na semana passada, Nyusi foi a Manica inaugurar o Hospital Distrital de Machaze, que passa a beneficiar directamente mais de 148 mil habitantes da região, além das populações dos distritos circunvizinhos de Mossurize (Manica), Chibabava (Sofala) e Massangena, em Gaza, numa “iniciativa presidencial” que ele promove em parceria com José Payarakem, o dono da Mozambique Holdings (30% das receitas hospitalares vão para esta firma).
Mas quando Nyusi deixou a unidade hospitalar e meteu-se a percorrer uma arteira poeirenta de Machaze, ladeado por mirones populares, estes limitaram-se a observá-lo, em surdina. Houve quem acenasse, vagamente, mas dando, a seguir, costas ao Chefe de Estado. Foi a mais penosa imagem da indiferença popular ao Presidente de que há memória desde que Filipe Nyusi ascendeu à Ponta Vermelha em 2014.
Ontem essa indiferença voltou ao palco. Depois do silêncio reprovante de Machaze, veio o barulho ensurdecedor dos povos de Covô Gêr-Gêr. Ontem, Nyusi chegou a esta povoação depois de ter estado em Saua-Saua, no Distrito de Nacarôa, onde acabava de inaugurar uma rede eléctrica local, orçada em “113 milhões de meticais e permitiu a criação de 57 postos de trabalho durante a execução das obras”, de acordo com uma nota da Electricidade de Moçambique (EDM).
Em Covô Gêr-Gêr, onde foram gastos pouco mais de 48 milhões de meticais, permitindo a criação de 46 postos de trabalho, depois da cerimónia de inauguração da Rede Eléctrica, o Presidente da República quis discursar, mas foi simplesmente bloqueado pelo barulho ensurdecedor.
“O nosso principal objectivo é garantir o alcance do acesso universal à energia eléctrica a todos os moçambicanos, até 2030. De 2020 a esta parte, foram electrificados 55 Postos Administrativos, sendo 43 através da Rede Eléctrica Nacional e os restantes 12 por meio de sistemas isolados, beneficiando mais de um milhão e duzentas mil famílias que passaram a ter acesso à energia eléctrica”, afirmou Filipe Nyusi.
Quando tentava progredir, sua fala era constantemente bloqueada. Nyusi interrompeu o discurso e desceu do palanque, perguntando: o que eles querem? Pegou num microfone e se aproximou da moldura humana. Procurou demover os “incautos”, como dirá o discurso oficial sua voz era inaudível perante a barulheira. A STV disse que se tratava de jovens e crianças, mas o vozeirão era como um coro espontâneo reprovando sua presença. Derrotado, o Presidente regressa e tenta retomar sob improviso, mas a teimosia arranhada era mais forte que toda a simbologia do poder à sua volta. Gente iletrada, passando uma clara mensagem de rejeição.
Na nota de imprensa da EDM, lê-se que o Projecto de Saua-Saua consistiu na construção de 50km de Linha de Média Tensão e 10 km de Rede de Baixa Tensão. Igualmente, foram instalados 150 candeeiros de iluminação pública e cinco Postos de Transformação (PT), que totalizam 500kVA de potência, o que assegurou a ligação de 713 consumidores, dos 1500 previstos na primeira fase. Esta linha abrange, no seu trajecto, a Sede do Posto Administrativo e a Localidade de Saua-Saua e os povoados de Mercurcune, Chicamalala e Muchelia.
Por seu turno, a Rede Eléctrica do Posto Administrativo de Covô Gêr-Gêr “é constituída por 25km de Linha de Média Tensão e 10 km de Rede de Baixa Tensão. O projecto inclui 150 candeeiros de iluminação pública e sete PT´s, que totalizam 650kVA de potência, o que assegurou a ligação de 1050 consumidores, dos 1500 previstos na primeira fase, beneficiando as comunidades da Sede do Posto Administrativo de Covô Gêr-Gêr, da Localidade de Covô, Povoado de Mulatala e dos Bairros Mucupi e Nikuakua”.
Nyusi espera, em vez de barulho, ser recebido com ovações e hosanas, tal como é habitual nas suas incursões partidárias. Mas não…e visivelmente embaraçado, ele desceu do palanque e, quando se batia em retirada, ainda foi interpelado pela STV.
Então, esse barulho? perguntou o repórter.
“Trata-se de satisfação. O povo está satisfeito”, respondeu ele, interpretando favoravelmente o cenário para si, ele que nunca tinha sido confrontado com uma "satisfação" ruidosa.
E as vozes, dentro do partido (figuras veteranas da Frelimo como Teodato Hunguana e Graça Machel, entre outros) que falam de uma Frelimo em crise...? Nyusi fugiu ao debate, alegando que não tinha ido para ali falar sobre o Partido Frelimo, que ele dirige, e onde começa a ser alvo de forte contestação.
O vozeirão de Covô Gêr-Gêr vai certamente obrigar a Presidência da República a um TPC: Valerá a pena o Presidente se expor entre multidões antes de o Conselho Constitucional publicar seu acórdão sobre as eleições de 11 de Outubro, em que a Frelimo alega que ganhou em 64 das 65 autarquias, mas cuja percepção geral é de que essa vitória foi fraudulenta?