A tormenta do IDAI tirou do anonimato a localidade de Grudja, nos confins do Buzi. Por razões trágicas, como já se adivinha. Mas também produziu heróis anónimos, que não tiveram mãos a medir para ajudar quem estava impotente, abeirando-se lentamente da morte. O sul-africano Nicky Gagiano é uma dessas figuras, um verdadeiro herói anónimo como muitos outros moçambicanos cujas estórias ainda não foram contadas (e muitas delas ficarão bem cravadas, sem serem ditas, nas memórias dos seus actores).
Nicky Gagiano chegou a Moçambique nos anos 2000 atraído pela febre da “jatropha”, que se dizia uma planta mágica cuja produção era como que plantar “sementes” de ouro. Gagiano, com 10 mil hectares no interior do Buzi, não conseguiu render com a “jatropha”. Mas permaneceu em Moçambique e, nos últimos anos, mudou-se para a celulose. Na vastidão das terras molhadas das baixas de Grudja, a 70 km da Estrada Nacional número 1, a partir de um desvio localizado a 50 km ao sul do Inchope, ele plantou um milhão de eucaliptos.
E tudo o vento levou, quando no dia 14 veio a tormenta!
Nicky Gagiano tinha-se literalmente precavido, evacuando a família para longe. Os boletins hidrológicos dos dias anteriores e a informação sobre a chuva intensa carregada na volúpia infernal do ciclone faziam antever o desastre e…muita água. Gagiano estava avisado, mas nunca podia imaginar que a enchente chegaria à altura da viga de cobertura de um casebre. Mas foi isso o que aconteceu.
Nicky Gagiano decidiu que não sairia dali, recusando-se a ‘deixar ao Deus dará’ os seus funcionários, familiares e população circunvizinha da sua farma em Grudja. Eram cerca de 70 pessoas, e todas subiram ao tecto da administração da localidade. No domingo, dia 16, quando a chuva torrencial amainou, Nicky conseguiu comunicar com um amigo em Maputo: o empresário Dino Foi, cuja quinta em Grudja ficara completamente inundada. Dino moveu ‘mundos e fundos’. Era mesmo preciso um autêntico SOS. No domingo, Nicky e o resto dos sitiados continuavam aflitos. A esperança era que o salvamento acontecesse por helicóptero. Na segunda-feira, o gigantesco pássaro chegou mas não pousou (também não tinha mantimentos). Os pilotos comunicaram que viriam barcos. Mas não vieram. Afinal, não eram só eles os que estavam sitiados no cimo de árvores e casebres. Como eles, havia milhares de outras pessoas. E o resgate só podia ser aleatório.
Nicky percebeu isso. E decidiu meter mãos à obra. Ele e sua equipa improvisaram canoas, logrando tirar do telhado da administração e de outros (telhados) das redondezas todas as cerca de 300 pessoas que lá se encontravam. Num esforço titânico, Nicky Gagiano tentou também levar as crianças que estavam desidratadas e com fome para o hospital rural de Grudja. Algumas sucumbiram. Depois do resgate veio o risco das doenças. E da fome.
Com apoio de alguns funcionários, Gagiano conseguira acolher todos os sitiados na sua fábrica, e também numa escola. Na terça-feira faltava comida, cobertores e comprimidos para malária. Nos pedidos de ajuda que enviava para Dino Foi, Nicky Gagiano fazia questão de realçar o grau de urgência. A partir de Maputo, Dino partilhava a informação com as autoridades de emergência. “Mantas e comprimidos vão ajudar”, gritava Nicky para Dino.
Cá na capital, Dino Foi já tinha planeado uma deslocação à Beira, de avião, para tentar dar também a sua mão no salvamento geral. Mas…em vez disso, e como não tinha a certeza de que os sitiados de Grudja teriam apoio em mantimentos, ele enviou uma “pick up” dupla cabine, carregada de comida e medicamentos.
Na imaginação de Dino Foi havia muita gente a precisar de ajuda em regiões do interior, no sul. Ele gostaria de ver as viaturas da emergência que partiam de Maputo para a Beira a pararem nas zonas mais ao sul de Sofala, pois a estrada EN6 ainda estava cortada. “Pensem em Grudja. Neste momento os mantimentos para Beira que já foram enviados por estrada não podem chegar. Então pensemos em quem pode ter acesso. Não deixemos produtos na estrada enquanto outros irmãos estão à espera noutros sítios. Tem de se chegar à Mutindire, 50 quilómetros de Inchope”, escrevia Dino, espalhando o alerta pelas redes sociais, tentando complementar o esforço hercúleo do amigo Gagiano.
E Dino Foi fez mais do que imaginara. Juntou 10 toneladas de arroz, 200 camas desmontáveis, 200 mantas, 50 caixas de água mineral de 1.5L e 500 redes mosquiteiras da Fundação Tzu Chi, de que ele é representante para Moçambique, tendo enviado tudo para Buzi, onde Nicky Gagiano estava com mais de 500 pessoas. Os bens foram recolhidos de muitos cidadãos anónimos de Maputo. Dino tratou de encontrar um camião de 15 toneladas que levasse tudo em 24 horas para Buzi: farinha de milho, comida para bebés, peixe seco, sal e mantas.
Gagiano conseguiu uma façanha notável, sem apoios, contando com as suas próprias forças e das de meia dúzia dos seus colaboradores. Muitos dos que foram retirados do telhado e de outros pontos conseguiram escapar à morte. Um belo exemplo de heroísmo desinteressado no meio de uma tragédia com riscos para si próprio. Como Nicky Gagiano há muitos heróis anónimos! (Marcelo Mosse)