O filósofo moçambicano, Severino Elias Ngoenha, defende que o partido Frelimo, que governa o país desde a independência, tem sido o freio (travão) para o avanço da descentralização em Moçambique, contando “subterfúgios para que a descentralização não tome forma no país” por entender que a mesma pode causar a etnicização do território nacional.
A ideia foi defendida esta quinta-feira, em Maputo, durante um debate sobre o modelo ideal de descentralização a ser seguido por Moçambique, organizado pelo Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE), uma organização da sociedade civil que se dedica à pesquisa sobre assuntos sociais, políticos e económicos do país.
Segundo Severino Ngoenha, desde 1990 que Moçambique tem assistido um combate entre duas doutrinas, nomeadamente, a centralista e descentralista, sendo que a doutrina descentralista tem perdido espaço devido ao medo da Frelimo de, supostamente, se confundir o federalismo com o tribalismo.
O académico lembrou, aliás, que o federalismo é o modelo de governação proposto por Eduardo Mondlane, primeiro Presidente da Frente de Libertação de Moçambique (actual partido Frelimo), por se tratar de um modelo que permite a participação efectiva da população (com as decisões a partir de baixo para cima e não ao contrário), pelo que não entende as razões que levaram o partido libertador a não segui-lo após a independência.
“Eduardo Mondlane defendia que o federalismo poderia permitir duas coisas: primeiro, uma participação real das diferentes populações, independentemente das suas origens, línguas, culturas e crenças; e, por outro lado, teríamos o poder de cima que não era autocrata, não ditava o que as populações tinham de fazer e como deviam fazer, mas que aglutinava as diferenças numa pirâmide que não partia de cima para baixo, mas de baixo para cima”, sublinhou.
No entanto, Severino Ngoenha defende que a etnicização, o maior medo da Frelimo, tornou-se uma marca em Moçambique, com os cidadãos provenientes da cidade e província de Maputo, por exemplo, a serem tratados como estrangeiros nas províncias do centro e norte do país. Aliás, o filósofo alerta para o risco da “sudanização” do país, em referência ao Sudão, um país africano marcado por frequentes conflitos étnicos.
Por isso, o académico entende haver necessidade de se descentralizar não só o poder político, mas também as instituições que constituem o pilar da democracia, nomeadamente, o Governo, os Tribunais e a Assembleia da República, como um sinal de que o país está descentralizado e que é uno e indivisível.
“Nada impede que se construa a Assembleia da República em Cabo Delgado ou que os Tribunais estejam no Niassa ou que as instituições do Governo estejam em Nampula. Maputo não vai passar fome por causa disso, porque continua ao lado da África do Sul e esta não se vai transferir”, rematou o professor universitário.
Vivemos uma grave crise de representação e representatividade
O Reitor da Universidade Técnica de Moçambique (UDM) defendeu ser a favor da introdução do federalismo no país, pois, permitiria as comunidades não dependerem das decisões que são tomadas a nível do topo, mas faria com que o essencial das decisões fossem tomadas em baixo e que alguns poderes de realização seriam confiadas às instâncias superiores, numa relação de confiança entre o poder local e o poder do Estado.
Segundo Severino Ngoenha, neste momento, o país vive uma grave crise de representação e de representatividade, com os parlamentares, por exemplo, a não representarem o povo, mas sim as formações políticas com as quais se fizeram eleger, tornando o país numa "partidocracia", um neologismo usado para definir o domínio que os partidos políticos exercem sobre o Estado.
O académico explica que os 250 deputados que compõem a Assembleia da República não sabem quase nada acerca dos problemas que preocupam a população, visto que estes não representam o povo, mas os partidos políticos.
Severino Ngoenha defendeu ainda a necessidade de se fortalecer as instituições, não somente as que compõem o pilar da democracia (os poderes executivo, judicial e legislativo), mas também as instituições descentralizadas, com destaque para as autarquias e os Governos provinciais.
Ngoenha entende, por exemplo, não fazer sentido que o país avance para a descentralização de nível provincial, para depois colocar um Polícia atrás do Governador eleito, no caso, o Secretário de Estado na província.
Também diz não fazer sentido que se fale de descentralização sem incluir a descentralização fiscal, pois diminui o papel dos órgãos descentralizados. Aliás, defende não haver condições económicas e nem políticas para a implementação das políticas dos órgãos descentralizados, enquanto estas dependerem de transferências feitas a partir de Maputo.
“É necessário que estes municípios descentralizados tenham meios de autonomia administrativa, política e financeira para que elas possam, de facto, levar a cabo as decisões que deveriam surgir de um diálogo entre elas [as autoridades municipais] e as comunidades que governam”, atirou Ngoenha, reafirmando: “não pode haver descentralização, se a vida dessas comunidades autonomizadas pela descentralização depende do bem-querer e da vontade do poder central”. (Abílio Maolela)