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quarta-feira, 01 junho 2022 12:11

Polémica do livro escolar: desfazendo a teia de uma aranha corruptiva e uma recomendação, escreve Marcelo Mosse

Nos últimos anos, a etapa da concepção do livro escolar era a menos polêmica da cadeia de valor da sua produção. As evidências de prevaricação apontavam para desvios e disrupções apenas no “procurement” da impressão dos livros (depois da privatização do Cegraf), adjudicado generosamente a gráficas de fachada, empresários de colarinho branco, que subcontrata(va)m gráficas sul-africanas, indianas e chinesas para fazerem seu trabalho.

 

Grosso modo, a adjudicação directa da impressão do livro escolar escondia práticas corruptivas. Esconde!

 

Noutra etapa da cadeia, está a distribuição, e seu caos inerente, representativo da tamanha ineficiência do Estado. No passado era a Diname, centralizada, com representações provinciais, mas eficiente: o livro, concebido pela Editora Escolar, mais tarde INDE, impresso no Cegraf e distribuído pela Diname, era de qualidade programática superior, embora suas nuances enviesadas relativamente à história política recente de Moçambique, obviamente decorrente do então regime monopartidário. De resto, os curricula eram bons e o controlo de qualidade desempenhava sua função. Com o triunfo do liberalismo em tudo que era intervenção do Estado, a produção do livro foi tomada por novos actores, privados e estrangeiros, ávidos do endinheiramento fácil. Houve uma "descapacitação" perversa do papel do Estado.

 

O papel do INDE foi reduzido à elaboração de programas e não do livro em si, e a Diname simplesmente escangalhada. A impressão e a distribuição foram tomadas pelo caos já referido: gráficas intermediárias e uma distribuição a cargo de transportadores operando sem cultura de manuseamento do livro e sem supervisão.

 

Nos últimos 10 ou 15 anos, o governo apadrinhou esse escangalhamento, embalado também na corrente liberal. O resultado foi o florescimento da corrupção em toda a cadeia de valor, com os responsáveis do MINEDH privilegiando fornecedores incompetentes a troco de chorudas comissões.

 

O vazio ético das editoras

 

O livro passou a ser um negócio de “dumba nengue” e nem os doadores conseguiram com sua voz activa impor novos padrões morais e de ética. Eles acarinharam um liberalismo selvagem. Como o Estado já estava depauperizado, a panaceia foi fazer tudo no estrangeiro...evitando-se revitalizar a capacidade produtiva do Estado,

 

E a concepção do livro passou a ser da responsabilidade de editoras estrangeiras porque o imperativo eram concursos públicos internacionais, como se na Europa isso fosse concebível.

 

As editoras que tomaram conta da concepção e produção operam num vazio de supervisão. As principais editoras são a Porto Editora, a Plural Editores e a Texto. Seu “modus operandi”, descrito por dois autores moçambicanos (os quais deixaram de escrever livros por discordarem de suas práticas menos éticas) é ruim.

 

Elas contratam autores moçambicanos, que escrevem os livros até uma dada etapa, no fim da qual recebem seus Direitos de Autor; depois entram em cena “autores” e maquetizadores portugueses, que mexem nos conteúdos e completam os manuais, mas seus nomes nunca constam das fichas técnicas. As editoras, nos últimos anos, protegem a identidade de quem, em Portugal, completa a concepção temática dos livros.

 

Os autores moçambicanos recebem ninharias pelo seu trabalho. Grosso modo, a revisão dos livros é feita pelos próprios autores; as editoras evitam contratar revisores independentes para não terem de pagar. Um autor disse que, por vezes, são enviadas equipas do Conselho de Avaliação do Livro Escolar (CALE), que se juntam em Bilene ou na Namaacha com autores e representantes de editores, mas o ambiente final é de festança regada de álcool. “Quem vai rever um livro de Química em Namaacha. Ninguém”.

 

O Conselho de Avaliação do Livro Escolar (CALE) que, ao abrigo do Diploma Ministerial 122/2011 de 11 de Maio, tem o dever de avaliar os conteúdos dos livros atendendo critérios definidos pelo MINEDH sobre curricula, metodologia e língua, valores e assuntos transversais, estrutura e organização, já não o faz.

 

Outro autor repisou que já não há comissões independentes, uma espécie de “peer review” que faça o controlo de qualidade do livro escolar. “Trata-se de uma selva em que as editoras fazem e desfazem e ninguém controla”. Por exemplo, a aparição de uma foto da Assembleia Nacional de  Angola usada para ilustrar nossa AR é tida como um exemplo do laxismo desenfreado das editoras. Elas evitam usar fotos sujeitas a direitos de autor.

 

Geralmente, os autores moçambicanos escrevem livros, mas a inserção de gráficos e imagens é feita em Portugal, no caso de editoras portuguesas, que às vezes atribuem essa função a técnicos de maquetização. As principais editoras portuguesas que se instalaram no Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano sabem como navegar na maré turva de um “procurement” vicioso.

 

O Ministério tem dois departamentos que lidam com contratação de editoras, o Departamento do Livro (DL) e o Departamento de Aquisições (DA). O livro proposta das editoras, antes de aprovado, deve passar pelo crivo dos peritos do CALE, que são nomeados pelo Ministro titular. Mas isso não é feito.

 

O DL selecciona um conjunto de propostas de livros que é metido num cesto único, mas é o DA que faz a escolha final, que nem sempre recai sobre proposta com melhor qualidade. E ganha quem paga melhor por debaixo da mesa.

 

A figura sinistra de Ismael Nheze

 

Nos últimos anos, a concepção do livro escolar ficou corroída com a chegada de Ismael Nheze ao INDE, que substituiu a antiga Editora Escolar. Em poucos anos, disse uma fonte, ele tomou também as rédeas da Comissão Nacional de Avaliação do Livro Escolar (CALE), que tinha a missão de controlar a qualidade temática dos manuais, mas não o faz.

 

Aqui está o problema por detrás dos erros na concepção. O Conselho é determinante na aprovação dos livros propostos pelas editoras seleccionadas para a produção. É o conselho que, após avaliação, propõe à Ministra os livros a adoptar. Com o Conselho corrompido, fica comprometida a integridade do escrutínio/avaliação dos livros.

 

O Diploma supra refere que os membros do conselho não devem ter vínculos com as editoras. Quem fiscaliza isso? E Ismael Nheze anda de mãos atadas com as editoras.

 

Ele passou a acumular os dois cargos, numa flagrante situação de conflito de interesses. Nesse contexto, quadros do INDE deixaram de ter voz sobre conteúdos temáticos e as comissões (formadas por elementos indicados pelas universidades, coordenadores de áreas de ensino e do Ministério do Comércio) deixaram de, efectivamente, avaliar os livros.

 

“Tudo passou a ser feito por Nheze”, disse outra fonte. Sua relação com as editoras tornou-se muito chegada, tendo passado a ter uma palavra a dizer na renovação dos contratos das editoras. Inclusivamente, Ismael Nheze aparece como coordenador dalguns manuais. Mas o Diploma relevante estabelece que os membros da Comissão não devem ser autores dos livros nem ter vínculos com as editoras que submetem os livros para avaliação.

 

(Nheze parece ser uma figura sinistra na Educação: ele é apontado como sendo sócio de algumas escolas privadas na Matola e detém uma empresa que produz e fornece sistemas de gestão  escolar, andando sempre em conflito de interesses; “Carta” chegou à fala com ele, ontem, mas ele disse que estava fora do país, entretanto, uma fonte do MINEDH disse que ele estava sob inquérito e devia comparecer todos os dias ao trabalho).

 

O quadro vigente é alarmante. Moçambique precisa de uma revolução nesta matéria. O MINEDH instaurou um inquérito que já está em curso. Eventualmente, o inquérito vai identificar a responsabilidade de cada uma das partes envolvidas na concepção do livro, mas e depois?

 

Depois...depois a nossa tomada de posição: o Governo deve assumir uma competência para que a concepção e impressão do livro seja feita dentro do país. Moçambique tem quadros e cientistas competentes em cada área de ensino que podem ser nomeados para elaborarem os livros às expensas do Estado. O Banco Mundial e os doadores devem ser convencidos a investir nesse projecto. Tal como aconteceu com o Tribunal Administrativo na sua função de Auditor do Estado.

 

Essa função foi revitalizada com sucesso, e com apoio da Suécia. Há 15 anos ou 20 anos essa função era uma lástima. Hoje seu desempenho é 70% satisfatório. Houve vontade política para tal. No ano passado, pela primeira vez o TA apresentou ao parlamento seu relatório e parecer à Conta Geral do Estado do ano anterior. Foi um feito notável.

 

O Governo deve ter a coragem política de bater a mão na mesa.

 

Então, os doadores devem ser convencidos a apoiar nossa capacidade de fazer as coisas com qualidade. Isto de nossos livros de ensino serem concebidos em Portugal é um “nonsense” de todo o tamanho. Se o Banco Mundial e os doadores declinarem, temos o Fundo Soberano da indústria extractiva. Ele pode começar por ser aplicado na revitalização da Educação neste país, para preservar nosso futuro. Sem Educação, o país torna-se uma miragem. (MM, Carta)

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