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quarta-feira, 23 fevereiro 2022 05:23

Investigação: A infância interrompida e a luta pela sobrevivência da criança deslocada em Cabo Delgado

Dados do Fundo das Nações Unidas Para a Infância (UNICEF) indicam que os ataques terroristas, em Cabo Delgado, colocaram em situação de deslocadas mais de 350 mil crianças. Entretanto, mais do que os números expostos, uma investigação jornalística realizada pela “Carta” nos distritos de Montepuez e cidade de Pemba, naquela província do norte do país, constatou haver crianças deslocadas, que foram submetidas ao trabalho infantil e exploração sexual.

 

Entre as crianças que se encontram nesta situação está Issufo Sualey, de 13 anos de idade, natural do distrito de Mocímboa da Praia, que teve de se separar da família após ser vítima dos terroristas (pai, mãe e irmãos) durante o ataque à vila-sede daquele distrito, em Março de 2020.

 

À “Carta”, contou que foi graças ao apoio de algumas pessoas que conseguiu chegar ao distrito de Montepuez. Sem soluções e cansado de chorar para as pessoas no Terminal de Transportes Públicos e Semi-Colectivos de Passageiros daquele distrito, decidiu mudar-se para o distrito de Ancuabe, concretamente no Posto Administrativo de Metoro, onde passou a dedicar-se ao tapamento de buracos da estrada local.

 

O petiz é agora mais um contribuinte nas contas da família, onde foi acolhido. “Acordo cedo e durmo tarde, porque temos que levar areia de um local para estrada e fechar buracos que estão ao longo do troço e ficar parado com uma tigela na mão para que os automobilistas que por ali passam nos dêem algum dinheiro”, disse Issufo.

 

À semelhança de Issufo, Cabo Delgado conta com milhares de crianças deslocadas com estórias idênticas. Juma Aibo, de 15 anos de idade, é um dos menores que perdeu o contacto com os familiares após a invasão da sede distrital de Mocímboa da Praia.

 

Também se dedica ao tapamento de buracos em Metoro e revela que optou por aquela actividade, devido às dificuldades que passara no Centro de Acolhimento de Deslocados de Nakaka, no distrito de Montepuez, onde idosas chegavam a desmaiar devido à fome. Assegura que, com o valor que ganha (que varia de 10 a 50 Meticais por dia), poderá chegar à cidade de Pemba, onde acredita haver melhores condições de vida.

 

Juma Aibo disse à nossa reportagem que interrompeu os estudos na 5ª Classe e não acredita que possa voltar à escola, pois, por não ter mais familiar, acredita que ninguém irá custear as suas despesas.

 

Por seu turno, Sarifo Jamal, de 12 anos de idade, natural da Localidade de Oasse, distrito de Mocímboa da Praia, conta que se tem dedicado ao carregamento de diversos tipos produtos, no Terminal de Transportes de Montepuez, como forma de ganhar dinheiro para ajudar a família que o acolheu no Centro de Nakaka. Pelo trabalho, a criança ganha 5,00 Meticais por cada mercadoria que carrega.

 

Mário Atumane, cidadão residente em Montepuez, assegura que mandar carregar saco de arroz (25 Kg) é a única forma que encontrou para ajudar as crianças “que tanto precisam”. “Nunca imaginei que fosse trabalho infantil, uma vez que as crianças precisam de dinheiro para comprar comida”, afirmou, quando questionado se não sabia que estava a cometer um crime.

 

Crianças carregam sacos, roubam e prostituem-se em Pemba

 

 

Tal como em Montepuez, em Pemba, capital provincial de Cabo Delgado, também há estórias chocantes. Caminhando ao longo da Estrada Nacional Nº 1, a nossa reportagem deparou-se com uma dezena de crianças, com idades compreendidas entre 10 e 13 anos, descarregando sacos de farinha de trigo (de 25 Kg e 50 Kg) de um camião para um estabelecimento comercial.

 

Um dos petizes que fazia esse trabalho chama-se Abdul Saíde, de 12 anos de idade, natural de Macomia, que se encontra em Pemba fugindo dos ataques terroristas. Disse à “Carta” que desenvolve aquela actividade exactamente para ajudar a família que o acolhe. Conta que, nos casos em que não consegue levar qualquer moeda para casa, não tem direito a prato de comida.

 

Já Amisse Quitara, de 14 anos de idade, também natural de Macomia, que se encontra a viver em casa da irmã, dedica-se à venda de frigideiras nas ruas da cidade de Pemba. As frigideiras são fabricadas pelo seu cunhado e é na base delas que a sua família consegue se sustentar. Enquanto isso, Mamudo Abacar e Tayob Bilal, de 13 e 15 anos de idade, respectivamente, dedicam-se à pesca e à venda do pescado, na praia de Paquitequete.

 

Para além de usar as crianças deslocadas para fazer trabalhos de venda ou carregamento de produtos, a nossa investigação descobriu que os citadinos de Pemba também usam aqueles petizes para trabalhos maléficos, como roubos e prostituição.

 

A nossa reportagem apurou haver um caso de roubo, que está a ser seguido pela Polícia, em que os ladrões são crianças deslocadas, porém, instrumentalizadas por um grupo de meliantes que se dedica àquela actividade criminal.

 

Já ao longo da Avenida da Marginal, raparigas com idades que variam entre 14 e 17 anos integram a lista de trabalhadoras de sexo, alegando ser a única forma que encontraram para ganhar a vida.

 

Activista exorta Governo para protecção dos direitos da criança deslocada

 

 

Em entrevista concedida à nossa reportagem, o activista social e psicólogo Vasco Achá disse ser preocupante a situação da criança deslocada na província de Cabo Delgado. Confirmou haver situações de crianças que se dedicam ao carregamento de sacos, tal como à prostituição e aos assaltos. Aliás, lamenta o facto de as pessoas usarem essas crianças para o trabalho infantil, do que mandá-las para escola.

 

O activista social garantiu à nossa reportagem, haver acções desenvolvidas por Organizações Não Governamentais, com vista ao combate deste mal. Exortou ainda o Governo para trabalhar, em prol da protecção dos direitos da criança, há muito desrespeitados na província de Cabo Delgado. Lembra que uma criança que se dedica à prostituição pode, inocentemente, contrair doenças de transmissão sexual ou mesmo gravidez indesejadas.

 

“Carta” não conseguiu obter qualquer reacção por parte do Ministério do Género, Criança e Acção Social. Entretanto, o Plano de Acção Nacional para o Combate às Piores Formas do Trabalho Infantil em Moçambique referente ao período 2017-2022, aprovado pelo Governo, em Setembro de 2017, defende a fiscalização da utilização de menores em números de entretenimento, assim como do controlo da admissão de menores aos recintos de diversão nocturna, aspectos que ainda não são observados em Pemba. (Omardine Omar)

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