Acabo de chegar à casa vindo do trabalho, cansado e revoltado contra a minha incapacidade de perceber que tudo isto já foi anunciado pela Palavra. Nunca quis ouvir os apelos do Noa, “meus irmãos e minhas irmãs, vamos construir a arca porque vem aí o Dilúvio”. Qual dilúvio que vai engolir casas e árvores e montes e montanhas! Que dilívio é esse? Desde que eu nasci e desde que nasceram todos os meus antepassados, jamais ouvi dizer que as águas que caem do Céu alguma vez subiram até aos montes, devorando-os inteiros. Isso não passa de imaginação, ou de loucura por velhice do Noa. Noa está obsoleto.
Isto é um delírio. Talvez um suspiro. O penúltimo. Estou debaixo do choveiro entregando-me ao prazer de sentir a água deslizando pela cútis, no bairro de Macurungo onde moro, nesta cidade da Beira despojada dos bosques que a ornamentavam. Já tenho a informação, “vem aí um temporal, um ciclone de grande magnitude e torrentes de chuva. Precavejam-se, procurem lugares seguros, não fiquem debaixo de árvores, fechem as portas e as janelas”.
Está a chover desde manhã, mas isso não me preocupa mesmo depois do Noa avisar com palavras claras, “vem aí o dilúvio, vamos construir a arca”. Isto vai passar, por enquanto deixem-me gozar este deleite que o choveiro me oferece. Também se vier essa tal hecatombe e engolir a minha casa eu sei nadar. De mariposa e de livre e de costas e de bruços. O meu corpo vai servir de jangada para a minha mulher e meus filhos.
Troveja fortemente em toda a cidade da Beira. O Davis Simango é o Noa, “meus irmãos, não deixem as crianças ir à escola, vocês também, que trabalham perto da orla marítima, fechem as empresas, fiquem em casa com as vossas famílias porque isto não é brincadeira, não!
Davis parece um pastor que vai à frente do rebanho quando fala do dilúvio que já está, aos poucos e poucos, lavrando para transbordar o Chiveve e submergir as casas. Chove forte agora, o vento sibilia como várias mambas ao mesmo tempo, e eu sinto que sim, que tenho de cingir o lombo para levar a minha família quando o tecto da casa estiver por debaixo da água.
Espreito pela janela da casade banho e vejo as palmeiras que os manhambanas e os maquelimanes trouxeram para aqui, dançando a dança do Idai. É um lindo espectáculo. É a arte em si. Que me faz sorrir ao pensar que a morte também pode vir do lado do belo. E se calhar todos nós podemos morrer aqui na terra dos senas e ndaus. A ver vamos, diz o cego!
Vou à sala para ver televisão e o corte de energia eléctrica é sagaz. Implacável. Pego no meu celular para efectuar uma chamada e do outro lado é o mutismo que me responde. As torres de comunicação tremeram nas bases. Lá fora o vento continua a sibilar. Agora uíva como os mabecos. Cada vez mais forte. E a chuva ruge no lugar dos trovões, fazendo-me lembrar, tudo isto, que não somos nada. Podemos ser executados agora mesmo, sem apelo nem agravo. Mesmo com os lombos cingidos.
Sempre estive preocupado com esses sentinelas de prontidão sentados em cada esquina das redes sociais e não só que tentam titanicamente a todo custo fazer-nos crer que o Presidente da República está sempre certo. Assustam-me esses compatriotas que de tanto endeusarem o Presidente da República chegam a acreditar que ele é Deus de verdade, não erra... não falha. Esses nossos irmãos que pensam que o Presidente da República não pode ser corrigido, negado, lembrado, guiado, sugerido ou chamado à razão. Esses que, para eles, o Presidente da República pode cair num buraco, se ele não viu é problema dele. Esses que pensam que é falta de respeito dizer ao Presidente da República que a sua gravata está torta ou que a sua braguilha está aberta.
O próprio Presidente da República abraçou a sensatez e interrompeu a sua visita ao Reino de Eswatine (uma visita que nem devia ter iniciado, diga-se). Fez uma introspecção. Ouviu o seu coração, aquele onde cabemos todos nós, e ouviu o brado do seu povo. Reconheceu que era melhor ir pessoalmente ao terreno do que tomar decisões com base em imagens partilhadas no "feici" por puxa-sacos estagiários. Deu-se conta de que, afinal, a sua presença lá em Macurungo, na Munhava, no Chinde, na Soalpo, em Canongola, etecetera, era melhor que a de qualquer ministro. Percebeu que o seu abraço era de longe melhor que qualquer comunicado da Presidência. Lembrou-se que a mulher de César não basta ser honesta, tem de parecer também.
Mas, há uma claque de académicos-cipaios que desencadeou uma corrente de aplausos à visita do Presidente dando a entender que se tratava de uma decisão tirada dos melhores manuais de boas práticas de uma sociedade. Foram até desenterrar teorias satânicas para justificarem tais hossanas. Mas, como o bem sempre vence, o prevaleceu o bom senso.
Ahhh, sim! Tenho medo desses assessores voluntários recém-convertidos que pululam por aqui. Esses académicos que fizeram pacto de não agressão com os seus próprios diplomas a troco de petisco. Esses nossos bradas que pensam que Filipe Nyusi é presidente só deles. Esses nossos contemporâneos que querem vender ingressos ao coração do Presidente Nyusi. Esses que assumiram que Nyusi é propriedade privada deles.
Hoje, Filipe Nyusi está aí no terreno abraçando, chorando e dando força pessoalmente ao seu povo. Está aí mostrando que, se enfrentou os mistérios de Satungira para negociar a paz com Dhlakama, pode também enfrentar os estragos do Idai. Está aí dizendo ao mundo que unidos venceremos. Está aí mostrando que pisa matope e lodo mesmo quando não é para pedir voto. E, de certeza, deve estar com a alma muito leve. E os sentinelas estão aqui com caras de picolho, carentes de ideias, mandando indirectas para si mesmos.
Ao Presidente Filipe Nyusi vão os meus parabéns pela sábia e humana decisão de interromper a visita (repito: uma visita que devia ter sido cancelada antes mesmo de iniciar). Nunca é tarde. Afinal, diria Jonathan Swift, uma pessoa nunca se deve envergonhar de ter errado, ou seja, nunca se deve envergonhar de ser mais sábio hoje do que era ontem. Somente quem nada faz nunca comete erros. Errar é humano. Todos nós humanos ainda viventes somos susceptíveis a errar a qualquer momento.
Aos académicos-cipaios sugiro que as vezes arranjem um tempinho para visitarem os seus cérebros lá no estômago onde deixaram. Vai que um dia descarregam com autoclismo sem se aperceberem.
- Co'licença!
“Hoje estou aqui/ entre mártires e traidores/ entre bandidos e inocentes/ entre hipócritas e fariseus” (Vera Duarte, Esta canção desesperada)
Apaixonei-me à primeira vista pelo livro Repensar o Estado: para uma social-democracia da inovação logo que o vi, entre tantos, na prateleira de uma livraria, em Bragança, finais do ano passado. Comprei-o e passou a ser meu fiel companheiro de viagem e cabeceira.
A edição que tenho em mãos sai sob chancela da Círculo de Leitores, da autoria de Aghion, P. & Roulet, A. (2012), economistas franceses, tradução de Francisco Telhado, do original Repenser l’État: poer une social-démocratie de l’innovation (Éditions du Seuil et La République des Idées, 2011).
O livro que, em traços gerais, delineia “os contornos de um Estado repensado: Estado investidor, Estado regulador, Estado garante do contrato social e da democracia” (p.145) tem quatro capítulos, sendo o quarto Aprofundar a democracia (pp. 117-143). É nele que me baseio para tecer estas pequenas notas.
Não sendo cientista social, muito menos economista, este acto emana do exercício da cidadania, como os seus próprios autores testemunham, “a liberdade de consciência e de expressão, o confronto das ideias, a possibilidade de um debate contraditório, de pôr em causa um regime, ou até mesmo de derrubá-lo, fazem parte integrante da dignidade humana” (p.117).
O capítulo Aprofundar a democracia tem como principal linha de força a possibilidade de medição da democracia, assente, por sua vez, na democracia como indicador de crescimento, da liberdade, da criatividade e da corrupção. Nestes nós, a meu ver, podem tirar-se importantes lições para a escola moçambicana (uso o termo escola no sentido de educação), embora a reflexão original se refira aos países membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), em especial a França.
Para atender às necessidades urgentes da nossa escola (nossa porque também faço parte dela, no dia-a-dia, na sala de aulas), entabulamos às premissas do capítulo em recensão, a liberdade, a criatividade e os valores morais que se querem cultivados em Moçambique. Alias, parecem esses fazer um entrosamento com a linha urdida por Aghion & Roulet.
Ao debruçar-se sobre a liberdade, Aghion & Roulet (2012:122) apontam “é um facto que as grandes invenções não se coadunam com o autoritarismo e a hierarquia” e parece essas práticas amararem a nossa escola ao marasmo a que se encontra. Como exemplo, os autores partilham:
Se Larry Page e Sergey Brin, estudantes em Stanford, puderam desenvolver conjuntamente, no âmbito do seu doutoramento, o que viria a ser o Google, foi porque tiveram toda a liberdade para escolher a pista que desejavam explorar e não receberam ordens dos seus «superiores» relativamente a escolha do tema da sua tese.
(Aghion & Roulet, 2012:123-124)
O autoritarismo e a hierarquia empurraram a nossa escola para o círculo do yes man: só a ideia do chefe vinga, só o chefe sabe, o chefe sabe tudo, só o chefe fala, o chefe fala tudo. Na nossa escola quem sabe ou fala mais que o chefe sofre sevícias. Reina, na nossa escola, o culto do silêncio.
O aluno da nossa escola não só não sabe ler e escrever, isso é de menos. O aluno da nossa escola é ensinado a ter medo do professor, a dizer o que o professor quer ouvir, a dizer direitinho ao pé da letra do apontamento. O aluno da nossa escola deve vestir-se bem e não superior ao professor, deve fazer a barba, o cabelo e as unhas, igual ao que o “regulamento” manda. Experimente furar a orelha!
O aluno da nossa escola é um mero reprodutor que não foi ensinado a transformar uma frase activa em passiva, a inverter o sujeito do objecto, a usar da recursividade proposta por N. Chomsky, porque o professor não disse assim. Da noite ao dia, estamos a formar autênticas multiplicadoras, caixas de ressonância, quando bem formadas.
O professor da nossa escola não fala em reuniões, não aponta erros e nem sabe dizer o que pensa em grupos de whatsapp institucionais com medo de não ser promovido ou ser despromovido.
A nossa escola devia ser o laboratório de ideias. Mas as ideias só nascem em espírito e ambiente livres: livres da burocracia excessiva, livres dos lambe-botas, livres dos chefes pro-adulação, livres da censura, livres do medo.
A nossa escola transformou-se em centro de imitação, “pelo contrário, nos setores de ponta, o crescimento das empresas baseia-se na inovação «na fronteira», que implica delegar pelo menos parte do poder decisório, de maneira a estimular a criatividade no seio da empresa” (Aghion & Roulet, 2012:124).
A criatividade só é possível onde não se tem medo de errar, onde não se tem medo de experimentar novas coisas, novos métodos, novas técnicas, na fronteira entre a realidade e a loucura. Este espaço parece cada vez mais longe da escola moçambicana.
A gritante falta de valores morais na sociedade moçambicana é, em grande medida, produto da nossa escola. Numa escola aonde a democracia não está aprofundada não se pode praticar os valores da tolerância, da escuta, do respeito, da cedência, do perdão, do amor ao próximo, da paz. E, em última instância, nesse ambiente não se pode exaltar a pátria.
A nossa escola inverteu os paradigmas: transformou nacionalistas em gatunos, dirigentes em corruptos. A mudança desse quadro, tal como Aghion & Roulet (2012:118) sugerem para uma economia de crescimento, parece estar no aprofundamento da democracia na nossa escola. E isto passa por: (i) um maior grau de democracia e descentralização na gestão da nossa escola – que, por sua vez, propicia a criatividade e o aparecimento de novos paradigmas; (ii) um sistema político mais democrático e menos corrupto, onde os lóbis exercem menos influência sobre os gestores da escola – o que dá lugar à inovação; e (iii) evitar comportamentos de favoritismo ou de clientelismo – o que impede que a escola seja tomada por interesses da casta dos gestores a base de favores e apetências pessoais.
Para fortalecer esse quadro de uma democracia aprofundada, para o qual a escola joga um fator determinante, Aghion & Roulet (2012:129) sugerem que os meios de comunicação social sejam suficientemente independentes para apontar o dedo a práticas políticas duvidosas ou abusivas e que se criem instituições adequadas e dotadas de meios suficientes para avaliar as políticas públicas de forma sistemática, independente e rigorosa.
Enfim, parece aprofundar a democracia na escola moçambicana ser o passo para o povo tomar o poder.
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[1] Linguista, escritor e docente.
A todas e a todos, permitam-me que expresse a minha felicidade por estar aqui na Universidade Lusófona do Porto, para fazer parte da mesa redonda sobre o ‘Associativismo e Cidadania’, na companhia da Cecília Gonçalves, Fátima Cordeiro, do João Russo, do Joaquim Guedes, e do Alberto Magassela.
Ainda no espírito de 8 de Março, é com muito gosto que me dirijo às raparigas, jovens e mulheres, presentes nesta sala.
Antes de começar, permitam-me, de igual modo, agradecer a Índico Associação Cívica de Moçambique, em Portugal, pelo convite.
Como nota prévia, devo confessar que o convite que recebi com muito gosto para ‘cogitar’ sobre ‘Associativismo e Cidadania’ no contexto global é desafiante pois o meu ‘raciocínio’ melhor funciona na lógica local, glocal e global. Todavia, o termo desafiante faz parte de um leque de palavras que se tornaram ‘corriqueiras’ no contexto moçambicano. Espero saber fluir nesta globalidade multi e pluricultural.
Falar de associativismo e cidadania, ou melhor, o que no nosso ‘dialecto’ seria o jargão “activismo”, faz parte da característica ‘social’ do ‘eu’ que pensa no outro, um ‘eu’ que não se dilui na relação com o outro, mas sim que se fortalece e se humaniza cada vez mais na companhia do outro. Para o contexto ‘local’ português, diria: um ‘eu’ que busca aprender e fortalecer com o ‘eu’ multicultural.
A cultura que o activismo, ou se preferirem, que o associativismo e cidadania devem evocar, é a cultura das entrelinhas dos artefactos, a cultura implícita nas capulanas, uma cultura mental imbuída de abertura e aceitação do outro.
Cultura não como uma condição acrítica ou condição pré-lógica, cultura não como polarização. Mas cultura como terapia, cultura como superação, cultura como o bem-estar e bem-ser, cultura como status quo na ciência, cultura como ética, cultura como empatia, cultura como alteridade e cultura como glocalidade.
Actualmente esta temática ganha mais relevância na condição de movimentos sociais, pois hoje, ao que mais se assiste, infelizmente, é o fenómeno do nossismo, isto é, a lógica nós e outros, ou estás comigo ou estás contra mim. Simplificando, vivemos hoje numa época em que se legitimam, de maneira estrutural, as várias formas de intolerância e violência (simbólica) face ao ‘estranho’, ao ‘viente’, ao ‘diferente’. Pois, para uns, a narrativa actual sobre a cidadania pode ser um campo de aberturas analíticas e, para outros, pode ser um campo fechado, linear e sem esperança.
Quando estes dois não comunicam, não procuram uma forma de entendimento, entram para um status quo nocivo que levaria a pontes quebradas, onde, de um lado, tens o eu e do outro lado bem distante tens o outro que pensa de forma diferente e, consequentemente, é visto como o eterno outro a ‘abater’, o que seria o nossimos.
O triângulo euismo, outrismo e o nossismos faz parte das formas (ins)conscientes da fobia pelo diferente, criando assim várias nuances do nossismo, a saber:
Nós produzimos inconscientemente estas formas de ‘medo’ perante ao desconhecimento, que não precisa ser necessariamente físico, pois, muitas vezes, ele está na dimensão mental, cultural e ideológica.
Os discursos dos governantes, dos políticos e dos activistas estão cheios de narrativas acerca da cidadania activa, mas, no final do dia, trata-se de uma cidadania formal ou informal? A zona de conforto está na narrativa da cidadania formal, legislada, aquela que fica bem na fotografia, pois tem um ‘rosto’.
A cidadania informal irrompe do quotidiano, não conhece ‘as leis e as regras’, não tem ‘rosto’, a cidadania informal é rica pelo anonimato, ela é elástica e flexível. Isso faz dela vítima da sua própria condição.
Cidadania é saber ser, saber estar e saber viver com os outros, ou seja, estar online pelo lugar do eu e pelo lugar do outro.
Cidadania pressupõe o eu social, o outro, o grupo, a relação intergrupal que deve ser alimentada pela relação intra-pessoal.
O eu e o outro pressupõem uma comunicação ética e empática, enquanto categorias das nossas relações grupais, pois só somos eu e eles porque existe uma relação com o outro, mas, o que acontece quando não temos a ética e empatia em nome da cidadania?
Riscos ou desafios que devem ser evitados em nome da ‘cidadania’, em nome do ‘associativismo’ e em nome do ‘activismo’, a saber:
Obrigada a todas e a todos
Mulher barriguda que vai ter menino
qual o destino que ele vai ter?
Que será ele quando crescer?
Haverá guerra ainda?
Tomara que não!
(“Secos e molhados”, grupo musical brasileiro)
É uma mulher madura, que apesar disso já não acredita na vida. É céptica. Talvez realista. Houve tempos em que no seu horizonte tudo o que acontecia igualava-se à aurora. As próprias palavras que lhe saíam da boca eram o cacimbo em si, que molhava o capim dando-lhe frescura. Renovação. Levava tempo para responder às perguntas, como os sábios. Acima de tudo deixava-se orientar pela fé de que todos nós fomos feitos para viver em paz e em liberdade. Nascemos para a felicidade. Mas hoje ela é a antítese de todas as suas crenças de outrora. Já não tem esperança. Pior, não tem dúvida de que caminhamos em direcção à Hades.
Estamos sentados frente a frente na esplanada do Hotel Inhambane, lugar onde tenho frequentado com alguma relutância, e ela não se cansa de tamborilar com os dedos no tampo da mesa para dar ênfase às concisas frases compostas com pausa. Aliás o tamborilar é mesmo para isso: dar pausa às palavras. Deus já disse, meu caro, tudo o que vier do ventre da mulher será amaldiçoado, mas ao que parece, até hoje ainda não percebemos essa parábola. Continuamos a inocular catervas e catervas de filhos para depois serem assados na fornalha que nós próprios activamos.
Raci traça um futuro sombrio, e diz mesmo que o que nos espera não pode ser outra coisa senão o bréu. Se eu fosse essas jovens que andam por aí, sonhando com a nascente, recusar-me-ia a engravidar. Engravidar para quê se os filhos já saem doentes dos nossos ventres? Alguma vez já tinhas ouvido dizer que as crinças vêm cancerígenas do útero da mãe? Aonde é que ouviste isso? Não assusta? Não mete medo? Come on, meu!
Estamos sentados frente a frente, eu e a Raci. Ela bebe Whisky em doses excessivas, e eu sinto-me confortável com a água que vou consumindo enquanto escuto os discursos de alguém que, quanto mais vai bebendo, mais lúcido vai ficando. Escuta bem, meu caro: Jesus disse assim à Nicodemus, tu e esses para quem estás a falar, não entrareis no Reino dos Céus enquanto não aceitares nascer de novo. Nicodemus não percebeu logo à primeira, procurou Jesus de noite, o Qual voltou a dizer-lhe a mesma coisa.
A mulher que está à minha frente bebendo whisky sem parar perguntou-me se tinha entendido o que ela havia me dito. Eu não lhe respondi. Pois é: o problema é que ninguém está preocupado com o badalo que anuncia incansavelmente a descida da Espada, nem as mulheres como eu, que engravidam e desejam fazer filhos mesmo sabendo que são seropositivas. O quê isso!? O pior é que alguém ao mais alto nível da governação encoraja esse pecado de saber que pode sair uma criança infectada para sempre. Uma criança que virá à terra para padecer, por culpa da nossa insanidade.
Estamos na esplanada do Hotel Inhambane há mais de duas horas e eu devo ter dito apenas duas ou três palavras. Ela é que fala. Com clareza, como agora depois de entornar mais um duplo: até os homens, muitos deles, acreditam que por terem sido circuncisados, estão protegidos contra o virus do HIV. Eu não se essa percepção constitui a verdade. Mas alguém quer lhes incutir isso. Ou seja, quando vêm nos dizer que os riscos de um homem circuncisado são menores, querem nos dizer o quê?
DHABUNO MUTHABWA, que significa ‘vocês agora estão a piorar’; é uma nobre expressão que se tornou popular (particularmente) nos homens no contexto das eleições autárquicas de 2013 e presidenciais de 2014, perante um cenário em que as mulheres apareciam como candidatas a ‘cabeçaa de lista’, na linguagem actual, à presidência ao Concelho Autárquico de Mocuba.
Uma vez que no contexto moçambicano as ‘capulanas’ ainda continuam a representar e simbolizar as mulheres, e as ‘calças’ os homens nas dinâmicas dos espaços privados, públicos e políticos, perante este cenário ‘estranho’ de surgimento de candidatas a ‘lógica’ das calças criou uma representação política para descrever este fenómeno que os assustará (reacção ao medo), ou seja, a expressão DHABUNO MUTHABWA, naquele caso, ‘vocês ‘mulheres’ agora estão a piorar’.
Sob o lema “Queremos Viver Sem Medo: Por um Moçambique Livre de Violência Sexual”, no âmbito da marcha alusiva ao Dia Internacional da Mulher, 08 de Março, uma data que internacionalmente é vivida e sentida com muita emoção e consciência, na qual mulheres e ‘homens’ “exaltam”, a partir de marchas simbólicas, as suas agendas em prol de um Moçambique cada vez mais justo e inclusivo para TODAS e todos, por um lado, e por outro lado repudiam todas as formas de MANHAZOS ‘vergonhas’ que afectam o bem-ser e o bem-estar das MULHERES.
Porém, o cérebro nem sempre reage como o previsto, ou seja, por vezes quando dizemos ‘sim’, o cérebro subentende ‘não’, e vice-versa. Pode ter sido com base nesta lógica natural de inversão e de entrelinhas que surgiu o ‘medo’ por parte das “calças”, pelo ‘medo’ que surge através do/a partir do lema proposto pelas “capulanas”, criando assim cogumelos de medo e mal-estar. Mas aqui, este fenómeno de ‘medo do medo’ terá dupla ‘polarização’, ou seja, por representar uma forma de MANHAZO ‘vergonha’ pelo medo das multidões e, sobretudo, porque desta vez o DHABUNO MUTHABWA tem um sentudo inverso, não surge a partir das “calças” para as “capalunas”, mas sim das “capulanas” para as “calças”, isto significa: vocês ‘homens’ agora estão a piorar’. Porquê a polarização dos movimentos sociais e cívicos, das multidões, das marchas, das manifestações? O porquê do medo do poder das multidões? Têm medo das mulheres? Pode o Estado controlar as multidões? Os políticos gostam das multidões? Temos medo das multidões? Estaremos perante a ‘repressão’ e os ‘silêncios’ como escola, como instrução ou como status quo? Por que perdemos tempo com os mensageiros e não com a mensagem?Acreditamos na racionalidade individual e na irracionalidade colectiva? Acreditamos na consciência individual e na inconsciência colectiva? Como Moçambique percebe as multidões: políticas, sociais, culturais, económicas ou emancipatórias?
Cronologicamente, as narrativas sobre as multidões estão associadas ao mito de loucura (Mackay, 1841), da irracionalidade (Le Bon, 1895), dos acríticos, da negatividade, das acções impulsivas, da libertação do inconsciente , da percepção de que os indivíduos nos grupos são hipnotizados pelos líderes. Nos grupos, o racional seria o líder, e os demais meros seguidores. Consequentente, são vistos como sendo os inimigos do poder e da política e, quiçá, da economia, ou seja, teorias que visavam combater e negativar o eu social (grupal) como algo positivo, defendendo o indivíduo racional na condição de individualidade, e o indivíduo irracional na condição societal, ou seja, o processo de desendividualização.
Estas teorias dos finais do século XIX sobre as multidões foram e ainda são impactantes nos mudus operandi dos séculos XX e XXI. Influenciam os políticos, os governos, e legitimam certas formas de ‘silenciamento’ com recurso às forças estatais. Pois, para os seguidores desta teoria as pessoas são manipuladas nas e pelas multidões, a saber: Quando estão nas multidões, os indivíduos tornam-se menos civilizados, comportam se com base nos instintos; A pertença a uma multidão dá a sensação de anonimato, ou seja, no grupo perde-se a noção do medo e das consequências dos actos; As pessoas se preocupam menos com as consequências morais; Têm a sensação de serem invencíveis; Nasmultidões, todos actos são contagiosos de forma irracional e instintiva; O contágio é dogmático; Nas multidões, as pessoas se sacrificam pelos interesses da maioria; A demagogia faz parte das multidões, ou seja, existe uma fígura demagoga inquestionável com poder de hipnotizar os demais; As ideias superficiais são usadas como “cavalos de batalha” nas revoluções; Quando se está no grupo coloca se de lado a identidade e age-se como membro do grupo (desindivilualização); Nos grupos os ‘homens não agem de forma racional e não usam suas ideias’, os líderes são tidos como os grandes “cérebros”; As multidões são vistas como uma religião.
É importante perceber a lógica do mito das multidões como madness, pois é assim que ainda funcioam certas lógicas políticas e governamentais na sua relação com as multidões, ou seja, ‘vigiar e punir’. Porém, existem teorias contemporâneas que podem estar a fazer falta a lógica política na sua governamentabilidade.
Os indivíduos nas multidões deixam de ser passivos e irracionais, e passam a racionais e conscientes. O comportamento das multidões é resultado dos comportamentos intra e inter-grupal, com as seguintes nuances:As identidades individuais são reforçadas nos grupos; As minorias activas podem com o tempo se transformar em maiorias impactantes; O poder reside no contacto entre as identidades grupais nas multidões; O anonimato desaparece, surge uma identidade assumida e reconhecida; Multidão como bem, como racional e sobretudo como um acto consciente de CIDADANIA; O mito da loucura dá lugar a narrativa de participacao activa societal; Quando persiste a lógica do mito da loucura como sinónimo de multidão, o problema não reside na multidão, mas sim na pessoa e no sistema que não percebe o significado das identidades intra e inter-grupais. Para tanto deve se procurar melhor entendimento, evitanto assim o mal-estar desnecessário e as narrativas da pós-verdade.
Se não for tratado, o medo pelas multidões pode gerar violências e mal-estar. Pois o povo, as massas, os grupos, não devem ser vistos ou pensados como o ‘outro’. É importante evitar ao máximo ser intolerante e os nossismos contra estes grupos. No lugar de nossismo deve surgir uma razoabilidade racional pautada na tolerância e na cultura de diálogo. Como? Racionalidade cultural na capacidade de saber ouvir a lingaguem das multidões; No lugar de olhar as multidões como inimigas, procurar evitar bias e preconceitos, e pautar pela diálogo; Procurar encontrar a bondade e o belo no outro, no lugar da desconfiança; Procurar perceber que as sociedades são dinâmicas e não perder a caravana do entendimento actual; As demandas actuais evocam respostas actuais; Evitar provocar as multidões das mulheres, pois de forma quantitativa, elas são qualitativamente a diferença, ou seja, elas podem fazer toda a diferença ‘racional’;” No lugar de concebê-las como “inimigas”, a estratégia seria colocá-las como parceiras na marcha da desenvoltura de Moçambique.”
DHABUNO MUTHABWA, ou seja, vocês ‘homens’ agora estão a piorar’.
Para toda MULHER moçambicana, em especial a mulher zambeziana, votos de uma marcha consciente em prol de uma sociedade tacitamente justa.