Edgar Barroso
Li um texto muito problemático, publicado no jornal Carta de Moçambique da ultima sexta-feira (12 de Abril de 2019) e da autoria do intelectual (?) Egídio Vaz. Em praticamente 2/3 (dois terços) do referido texto, intitulado “Reflexão em torno do actual pânico moral”, o articulista faz citações não textuais do que ele percebeu de um livro de um dado autor (Stanley Cohen, “Folk Devils and Moral Panics”, 2011). Nos restantes 1/3 (um terço) do texto, o articulista tenta fazer uma transposição do que cita no texto com a realidade moçambicana actual. Dentre outras coisas, Egídio Vaz chama de “pânico moral” aos esforços conjugados de alguns indivíduos, de algumas organizações da sociedade civil e da imprensa independente na identificação, denúncia e pressão para a devida responsabilização dos grandes dossiers de corrupção em Moçambique.
Bateram à porta com violência. Foram três pancadas de rajada que pareciam o matraquear de uma AK-47 disparada para aviso. O homem assustou-se. Levantou ligeiramente a cabeça do travesseiro e perguntou-se a si mesmo, mas o que é isto!? Bateram outra vez, na mesma cadência. Com a mesma intensidade bruta. E agora percebeu que na verdade estava alguém lá fora. Olhou para o relógio, eram duas horas da madrugada e lembrou-se, uma pessoa que te procura à esta hora é para te matar.
Aos africanos nossos irmãos, agredidos pela xenofobia na África do Sul"
"A história é uma ficção controlada" – Agustina Bessa Luís
Nasceu nos meados da década de oitenta quando a utopia da juventude parecia inabalável. Acabava de morrer o paradigma do povo, Samora Machel, seguido por quase todos, não propriamente - se calhar - por aquilo que ele fazia, mas pela capacidade de contagiar através dos seus discursos caudalosos. Samora era, por assim dizer, um grande actor projectado em palanques imensos que estravasavam para as ruas e mercados e todos os cantos, por isso não havia como não lhe seguir as peugadas. Ele vibrava de tal forma que parecia imortal, por debaixo da risada, porém, daqueles que o fariam sucumbir sem piedade.
Layitha foi dado à luz quando Samora estava no auge, mas pouco tempo depois a aurora de todos nós foi encoberta. Apagou-se o engajamento. O entusiasmo. Aquele que nos dava motivos para acordar sucumbiu aos algozes. E até hoje, depois dessa tragédia nacional, a impressão que subjaz é a de que ninguém tem a certeza do destino que nos espera. O pior ainda é que, mesmo sabendo das dúvidas que mais parecem a certeza de que vamos para lado nenhum, mostramo-nos incapazes de inventar um novo futuro.
-- País onde mulher é objecto decorativo é Nação condenada --
Quando foi dito "Por detrás de um grande homem está uma grande mulher", a moçambicana, acredito eu, auto-excluíu-se. Quando alguém aferiu que "o futuro de Moçambique está nas mãos dos jovens" deve ter sabido antes que a rapariga não quis essa responsabilidade que, no entender delas, é só dos rapazes. Conheço outros ditos e teorias importantes como o da ONU, através das suas agências, que acredita estar mais garantido o futuro da população (porque toda ela inicia na criança) quando se educa e privilegia. Mas a ONU deve ter auscultado as meninas moçambicanas, e elas pediram para não se preocuparem com elas. Não querem ser educadas.
João Lourenço, Presidente de Angola, exemplo invejável de toda a África, inesperado pela atitude de colocar o seu país acima de quaisquer interesses pessoais ou de grupos, vai ser com certeza o meu orgulho como africana. Estou a pensar nisso agora que me encontro confinada neste acampamento no Búzi, erguido para nos acolher depois de sermos varridos pelo dilúvio. O problema não é estarmos aqui arrebanhados. Não é esse o problema. Mas sim a dor de perceber que estamos a ser usados para alimentar os apetites dos abutres, sem podermos fazer nada, senão derramar as lágrimas para dentro do nosso coração. Formando a albufeira da tristeza.
João Lourenço fala do pote, para o qual desciam os marimbondos (vespas) com o intuíto de chupar o mel do povo. E eu falo da manjedoura que a nossa desgraça construíu para ser usufruída pelos abutres. Eles pairam sobre as nossas cabeças, descem com as horríveis garras abertas, e tiram a comida trazida pelos amigos e pessoas de boa fé para nos alimentar e disfarçar a dor de estarmos aqui.
Enquanto choramos a morte dos nossos filhos e dos nossos maridos e dos nossos irmãos e avôs, eles choram lágrimas de crocodilo. Aviam-se uns na clareza do dia, outros à calada da noite, com o que foi trazido para nós, mas estamos a ver tudo. E eu, que cheguei aqui apenas com as minhas mamas cheias de leite, sem a criança que gerei com dor e amor, essa criança arrancada dos meus braços e levada pela enxurrada sem eu poder fazer fosse o que fosse, pergunto-me: afinal porquê que fazem isto?
Eles não ouvem. Os abutres são surdos. Continuam a descer e a tirarem da manjedoura o que trouxeram para nós. Mas não tem problema. Eu sou uma mulher nascida da terra. A terra é o meu maná. Todo o meu corpo cheira à terra que trabalho com o lombo vergado, danificando a minha espinha dorsal. Voltarei para lá quando tudo isto passar. Tudo isto vai passar. Menos a minha dignidade.
Abutres! O que me dói não é vocês tirarem a comida que trouxeram para nós. Não é isso que me dói. Isso podem continuar a fazer para encher os vossos reservatórios já fartos. Não me importo. O que me dói é vocês desprezarem o sofrimento das crianças, a nossa morte. Isso é que me castiga. Repugna-me o vosso sorriso de hienas vestidas de pele de cordeiro.
Mas eu sei que o coração está com aqueles que sofrem de facto com o nosso drama. É diante desses que me inclino e agradeço. À eles entrego meu rosto para me limparem as lágrimas, já que as minhas mãos tremem de dor e desepero. Enconsto minha cabeça do peito deles enquanto vos observo, abutres abominados, disfarçados entre estas pessoas de boa fé. Que nos abraçam com afecto.
Saiam daí, saiam!