Em tempos infantojuvenil era normal que no regresso à casa, vindo das instalações do Grupo Desportivo de Maputo (GDM), e já o dia anoitecera, a malta da minha zona (Bombeiros) entrava sempre em confronto com a malta do Prédio Isolado (PI), paredes-meias com o GDM, e que hoje, face as construções vizinhas, seria certamente a malta do Prédio no Interior. Era um confronto preparado minuciosamente pelas partes, assinalando que nós (Zona dos Bombeiros - ZB) aprofundávamos as tácticas defensivas e eles (PI), grosso modo, as de emboscada. As escaramuças tinham lugar na parte frontal do PI, nas imediações do “prédio 33 andares”, que era, na altura, um pequeno mato de girassol.
Um certo dia, e mais um de confronto, nós, a malta da ZB, conseguimos fazer um prisioneiro - por coincidência frequentava a mesma escola que a minha – encontrado bem escondido, e todo aterrorizado por ter sido descoberto entre a mata de girassol. Lembrar que nesse tempo (anos 80), na Pérola do Índico, os direitos humanos não eram tidos e nem achados. Por algum instinto, talvez pela ligação escolar, intercedi, e com sucesso, junto aos mais velhos para que o perdoassem e o libertassem sem um aranhão. Não fora um exercício fácil, pois entre a malta havia alguns com desejo de vingança face a sevícias sofridas em situações análogas.
Uns anos depois, cruzo com o liberto em companhia de seus pais e este fez questão de apresentar-me aos seus pais, destacando que era o tal que participara na sua detenção e intercedera para a sua libertação. Foi um (outro) momento mágico quão o da libertação. Até hoje, eu e “ex-prisioneiro de guerra”, e sempre que nos cruzamos, a par dos cumprimentos, paira no ar a presença indelével desse dia, o da libertação, e creio que tenha sido igualmente o da cessação definitiva das hostilidades, avaliando que as confrontações deixaram de acontecer desde então.
Este episódio veio-me à memória neste final de semana com a tomada de Mocímboa de Praia. Aliás, amiúde tem sido assim quando acompanho as comunicações dos sucessos das forças ruandesas e as moçambicanas (nas palavras de Kigali) - ou os sucessos das forças armadas moçambicanas e as ruandesas (nas palavras de Maputo) - quanto ao avanço contra os terroristas em Cabo Delgado, pois noto apenas o registo de mortes e a completa ausência de prisioneiros (de guerra) do inimigo nas estatísticas/comunicações das duas partes da força conjunta. O mesmo com as comunicações dos terroristas. Aliás, e já agora, fazendo jus a crítica sobre a comunicação oficial da evolução dos acontecimentos no teatro de operações, esta (a comunicação) não deveria estar, em primeira mão, sob a alçada das autoridades de defesa de Moçambique? Ou no mínimo que ela fosse de forma conjunta quer presencial, em conferência de imprensa, quer por outros meios, nomeadamente tecnológicos.
Mas é de prisioneiros de guerra de que falava. Do pouco que saiba, o facto de fazer, manter e libertar/trocar prisioneiros de guerra é um sinal de abertura/proximidade (e também, e sobretudo, de humanidade) que, por experiência própria, acredito que seja uma forma de alimentar condições que também possam concorrer para a cessação das hostilidades. Por enquanto, do conflito em Cabo Delgado, o único prisioneiro de guerra que se conheça é o próprio Estado moçambicano, restando apenas que se saiba quem o prendeu, o retém e o libertará? Oxalá um dia, e tal como eu fora, o Estado moçambicano apresente-o aos seus pais, o povo moçambicano.
A 25 de Junho de 1975, o Estado Moçambicano era fundado, após uma longa luta de libertação movida pela brava juventude daquela década de incertezas, massacres e desumanização. E foi concretamente em Cabo Delgado, hoje em chamas, onde a corrida pela liberdade ganhou uma dimensão revolucionária do tipo Marxista, uma luta entre opressor e oprimido, operário e senhorio – o feiticeiro daquele tempo, vencido e expulso do jovem País, Moçambique. Deste modo, vencia-se o feiticeiro que perdurou por vários anos – o Colonialismo!
De 1975 a 86, o País esteve sob a liderança do então Presidente Samora Machel, um homem multifacetado e preparado para os desafios do seu tempo, apesar dos pesares. O País tinha um líder que sabia aparecer para o seu povo. Contudo, durante aquele período, começava uma nova feitiçaria no País, a Guerra Civil, que levou 16 anos de sofrimento, mortes e deslocações massivas da população para os países vizinhos, como Malawi, Zimbábue, entre outros. Exigia-se, por conseguinte, uma mudança de paradigma, pelo menos, é o que os historiadores nos dizem. Queria-se a Democracia, a Parlamentar ou Representativa porque, segundo os teóricos do sistema, a Popular ou Guiada já estava em funcionamento.
Durante aqueles anos, muita coisa foi destruída, que embora viesse da feitiçaria anterior, os feiticeiros da década 70, 80 e 90 queimavam a casa para matar a cobra. Foi assim que fábricas renomadas foram sabotadas e utopistas do tempo foram exterminados em campos de reeducação, típico de um sistema totalitário. Nesse contexto, a busca por uma ideia de nação exigiu sacrifícios extremos aos que tinham a vassoura mágica para combater o feitiço que atormentava os moçambicanos – a Guerra Civil!
Embora esse fosse o mais visível, existiam outros tipos de feitiços que reinavam na Pérola do Índico, como fome, miséria, analfabetismo, ignorância, tribalismo extremo, entre outros males. Ademais, a situação ganharia outros contornos com a trágica morte do Presidente Machel, em 1986. Neste ano, o País perdeu um líder.
Em meio à tempestade, entrou um novo dirigente, Joaquim Chissano, com a dura missão de acabar com o feitiço que dia-a-dia destruía famílias e sonhos. Felizmente, seis anos depois, chegou-se a uma solução para colmatar a feitiçaria reinante, encontraram-se em Roma e assinaram o Acordo de Paz, o qual permitiu a realização das primeiras Eleições e a transição de uma fase para outra, de Democracia Popular ou Guiada para Democracia Representativa ou Parlamentar.
Foi neste período que se evidenciaram as “cabeçadas” dos bons filhos, que trabalhavam fora do País – o caso dos “Madjermanes”, que se instalaram, activamente, os novos feitiços da nação – cabritismo/corrupção, nepotismo e assalto agressivo das riquezas do povo, havendo até alguns que abriram hotéis fora do País, enquanto dirigentes máximos da nação, onde os melhores pratos eram os nossos mariscos, que saiam directamente do mar para os frigoríficos da Torre Eiffel – na terra de Napoleão Bonaparte.
E a saga continuou! Falava-se mais do que se fazia. Entretanto, o saque foi intenso – os feiticeiros eram tantos, que chegaram a ganhar as eleições, apesar de terem perdido em quase seis províncias, entre elas, as mais populosas, como Zambézia e Nampula. Contudo, pacificamente, houve uma passagem da vassoura mágica, em 2004. Entrava em cena um novo homem – que usou dos poderes mágicos para intensificar o crescimento e desenvolvimento do País.
Embora já vivesse ciente dos problemas provocados na palhota dos antigos feiticeiros, desde os tempos da luta de libertação, o homem entrou com os pés no chão e começou por mandar aos calabouços alguns feiticeiros que nadavam nos cofres (des)controlados do Estado – numa era da impunidade, eram anunciados casos de Ministros envolvidos em grandes cabeçadas ao povo.
Foi uma era que aparentava que a feitiçaria havia abandonado a Pérola do Índico. O povo corria com Chamas de Unidade Nacional do Rovuma ao Maputo e do Zumbo ao Índico – corpos e línguas diferentes se entendiam. Era bonito ver o xingondo, que tanto era banalizado nas décadas passadas, a ter facilidades e o maxangana, que pelas bandas do Centro e Norte era combatido, a ser acarinhado – até parecia que Deus havia expulsado o Lúcifer das nossas terras!
Entretanto, cinco anos mais tarde, tudo viria a mudar – o velho feitiço voltou – o som das armas regressou a imperar no solo pátrio. As pessoas e os automóveis tinham que ser escoltados para circularem pela EN1. A coisa estava feia, alguém tinha destapado a panela do feitiço. Entretanto, em meio às consultas, aqui e acolá, um tempo depois, encontrou-se uma saída.
O feitiço da guerra foi-se e descobriu-se um outro – as dívidas odiosas, contraídas com um objectivo, mas haviam sido usadas para acomodar outros interesses, entre eles, carnais e de gula. Embora em certos circuitos a abordagem sobre o assunto seja outra, a intensidade deste feitiço afugentou os outros feiticeiros da cooperação internacional. E com isso, descobriu-se um poço de raízes venenosas da feitiçaria moçambicana – a famosa corrupção cabeluda. O caso gelou o País e os bons amigos foram-se embora. As saborosas tâmaras do deserto cultivadas e distribuídas pelo mágico Armando Guebuza foram queimadas.
As boas coisas, outrora realizadas, foram momentaneamente questionadas e estranhamente esquecidas – porque o feitiço verificado era maior – 2.2 mil milhões de dólares norte-americanos. O caso foi parar nos tribunais nacionais e internacionais. A missão do mágico tinha de terminar.
Em meio à tempestade agressiva, que a fragata enfrentava, tinha que se encontrar um novo mágico – e, em 2015, chegava ao poder Filipe Nyusi, com um discurso mobilizador no dia da tomada de posse. As pessoas já acreditavam que seria, desta vez, que chegariam à Canaã e as cebolas do Egipto seriam esquecidas. Contudo, não foi o que se viu, dias depois – mexeu-se no “mágico de Sofala” – a mamba verde, segundo o jurista André Thomaussen. Atacou-se à base do “mágico de Sofala” acordando, assim, o feitiço das armas.
Dias depois, uma nova feitiçaria ressurgia nas cidades, o baleamento de figuras incómodas ao regime, sequestros e espancamentos aos políticos, académicos, activistas, jornalistas, enfim – chegava o novo feitiço – o medo de ser morto, por pensar e ser diferente. Associada a estes problemas, o País viveu situações complicadas com fenómenos naturais de magnitudes proféticas, como o Idai e o Kenneth, a destruírem cidades e províncias.
Porém, enquanto isso, os males como a corrupção, a criminalidade organizada, a pobreza, os fenómenos naturais, a desnutrição crónica, entre outros, intensificaram-se. Um grupo de homens estranhos e desconhecidos, pelo menos publicamente, começava com uma etapa de horror e destruição na Província de Cabo Delgado, terra natal do “mágico no poder”.
Neste interlúdio, a Pérola do Índico passou a viver diante de uma nova feitiçaria – o terrorismo e a violência extremista nos distritos de centro e norte de Cabo Delgado. Por três anos, o caso era tratado como mais um assunto de roubo de galinhas, mas logo se percebeu que o problema era cabeludo e complexo – tinha que se aumentar as vassouras mágicas para debelar aquele mal.
Correlacionada à nova realidade, ressurgiram, intensamente, novos feitiços, como narcotráfico de heroína, metanfetamina, cocaína, ópio, entre outras, lavagem de dinheiro, tráfico de órgãos humanos, escândalos sexuais, neocabritismo, pobreza aguda, detenções arbitrárias, execuções sumárias, julgamentos falseados, falsas seitas religiosas, assassinatos públicos, sequestros em tudo que é canto, conflitos políticos no Centro do País, entre outros problemas, que verificados, demonstram que as vassouras mágicas da nação precisam de ser exorcizadas ou actualizadas, porque as mesmas aparentam ter perdido suas propriedades reais.
Estranhamente, certos filhos que demonstravam ou demonstram estar com os novos poderes mágicos ou morrem/adoecem e alguns, simplesmente, desistem de lutar pelos seus ideais. A situação é mesmo essa, é que o vitalismo africano defendido por Placides Tempels vem demonstrando outras nuances na Pérola do Índico, onde a força mágica carece de uma actualização urgente e eficaz, porque a arte do improviso mal feito assumiu o controlo da poltrona do juiz, que parece estar a confundir o Direito com Curandeirismo.
Portanto, os moçambicanos precisam de estar unidos para vencer este velho feitiço que acompanha a pátria – a guerra, pois, ela alimenta os feiticeiros da nação, que são os senhores da guerra que se alimentam do sangue de inocentes e ficam satisfeitos com a dor de uma mãe que vê o seu filho degolado; morrer na fila do hospital por não ter dinheiro para pagar uma sopa ou comprar comprimidos; comer capim porque há stress alimentar; morrer na fila burocrata do tribunal, em busca da justiça, que o diga o velho Chandracant que tanto lutou por um bem conquistado e morreu lutando por ele contra malandros vestidos de fato e gravata; crianças que crescem num País rico, mas vivem minguando por um pão e uma carteira para se sentar e estudar condignamente, enquanto o chinês fotografa, com máquinas rebarbadoras e camiões com atrelados, às nossas florestas, como escreve o Janato Janato, e muito mais.
Enfim, a pátria precisa de evitar novos feiticeiros que festejam com a morte ou queda de um adversário político ou um homem de bem!
O presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, saiu a público esta quinta-feira, 5 de Agosto de 2021, e anunciou aos sul-africanos que ia proceder a remodelações governamentais e explicou as razões por que as ia fazer.
Disse ele, alto e bom tom, que o país, África do Sul, portanto, está a enfrentar grandes desafios, destacando-se a pandemia da COVID-19 e as recentes ondas de vandalizações e assaltos a bens públicos e privados nas províncias de Kwazulu-Natal e Johanesburgo e as suas consequências, e que o Estado não tinha dado as respostas adequadas que devia ter dado. E as mudanças visavam fortalecer o Estado para dar as respostas adequadas para o bem estar do cidadão e da África do Sul.
Outrossim, explicou que ia separar portfólios aglutinados num determinado ministério, o Ministério dos Assentamentos Humanos, Água e Saneamento do Meio. As ‘águas’ passariam a estar separadas do ‘assentamento humano’. Conforme explicou, a provisão de água no país é um assunto extremamente importante, complexo e bastante amplo que não se esgota no fornecimento de água aos domicílios, aos assentamentos humanos, mas que é um assunto crítico para as indústrias, agricultura, mineração e meio ambiente… ou seja, para a economia no seu todo. “A água é o mais crítico recurso natural do país. Segurança na água é fundamental para as vidas do nosso povo, para a estabilidade da nossa sociedade e para o crescimento e sustentabilidade da nossa economia”, argumentou Ramaphosa.
A rematar, anunciou que como parte das medidas críticas que estava a tomar para reforçar os serviços de segurança e prever a ocorrência de situações como as que acabavam de ter lugar em Kwazulu Natal e Joanesburgo, criava uma comissão para avaliar o grau de preparação e a deficiente resposta dada. O tal painel de experts vai examinar todos os aspectos e apresentar recomendacoes.
Eu aplaudo vivamente este procedimento: informar os concidadãos, ou o seu grupo de trabalho, colegas, subordinados, etc. que vai fazer algo; que vai proceder a alterações no xadrez por causa disto e daquilo. Partilhar com os cidadãos as inquietações e ou aflições que levaram à conclusão da necessidade de alterações na equipa. Comunicar aos concidadãos as expectativas em mente, no caso, fortificar o grupo, a instituição, ou o nosso Estado para fazer face a tudo que seja ameaça ao bem estar e estabilidade nacional e do cidadão.
Por fim, como gesto de grande humanidade, agradecer publicamente, sem rodeios, sem desprezo, nem desvalorização, aos titulares cessantes pelo contributo que deram para a consecução dos objectivos da instituição, do Estado ou dos compatriotas.
Gostaria que isto acontecesse no meu país! Que esta fosse a prática no nosso solo pátrio.
Gostaria que houvesse respeito, consideração, humanidade, sentido de gratidão e de ética para com os que são desnomeados, os que cessam funções! Para com as suas pessoas individuais, humanamente falando, mas também para com as suas famílias e amigos.
Mas também ainda, para com a sociedade em geral, para com os compatriotas na globalidade. Não somos mais chefes quando humilhamos o semelhante, sobretudo alguém a quem convidamos, de nossa livre e espontânea vontade, para dar o seu contributo numa determinada posição ou empreitada e procurou dar o seu melhor em resposta ao convite que lhe foi formulado! Agradecer é um dever humano, não é um favor.
Cá entre nós, o que temos assistido é bastante triste, roçando mesmo o desumano! Em todos os níveis da nossa gestão. Não é só ao mais alto apenas, mas a todos os níveis!
No ciclo governativo anterior, houve uma caricatura que circulou bastante nas redes e meios sociais. Retratava um dirigente, em casa, sentado na cadeira, que não queria ir para a cama deitar-se e a esposa, agastada, perguntava-lhe porquê não se queria deitar e ele respondia: não quero acordar não ministro!...
Ao longo destes tempos todos da nossa vida, vimos e ouvimos de tudo… ministros que são demitidos em comunicados de imprensa lidos na rádio, directores exonerados através de SMS’s, outros tantos responsáveis e dirigentes que ouvem que já não o são através dos seus próprios subordinados, muitas vezes da secretaria. Dirigentes que se pedem que entreguem as chaves dos gabinetes na tarde a seguir à sua exoneração… tanta desumanidade! Why?
Não podemos respeitar o outro ser humano? Pode já não servir para aquela posição ou interesses, mas não deixa de ser humano!
ME Mabunda
Num desses dias, fui convidado, como habitualmente, a ir fazer comentários numa estação televisiva da nossa praça. Nesse dia, um dos muitos friorentos que Maputo tem tido este ano, trajava eu uma camisa executiva e um blusão preto de cabedal, egípcio, para me defender do frio. Estava eu semiformal e, digamos, com ar jovial. Lá me apresentei aos estúdios e, durante cerca de quinze minutos, fiz os comentários que fiz fundamentalmente sobre a situação da COVID-19 e as medidas de prevenção da sua disseminação que o Chefe do Estado ia anunciar instantes depois.
Terminada a sessão e a caminho de casa, lá vieram as reacções. Uma, dum amigo, bem estudado, docente universitário. Do que eu disse ou não disse no pequeno ecrã, falamos pouco, en passant. A maior observação dele foi que devia ter ido de casaco e gravata!... fiquei whititiii, sem uma única palavra na boca, e ele a perorar por aí. Com efeito, esta não era a primeira observação que me era feita neste sentido; numa outra ocasião, uma outra pessoa amiga também ela muito bem estudada e docente numa instituição de prestígio. Dessa vez, porque apenas não trazia gravata, estava de blazer, mas não tinha gravata… Djizes Crest!
Esta parece ser, de certa forma, o tipo de sociedade que somos: focados no acessório, no superficial ou supérfluo. Estamos bastante preocupados não com a essência, com o conteúdo, a mecânica das coisas; mas com a superfície, com o contentor, com o que se nos aparece na vista, a parecença! Não que a indumentária não seja importante, até é; mas daí a ter-se como o mais importante do que as ideias numa pessoa…
E isto explica perfeitamente a razão de ser de muitas das nossas atitudes, percepções, decisões, opções, debates e discussões. Valoramos muito a aparência, a superfície, o nome, o que aparece à vista. Melhor: o que se deixa ver. Infelizmente, os factos ou fenómenos, sejam naturais ou sociais, vão muitíssimo além!
Numa outra crônica passada, escrevia que o nosso modus operandi era: “Alguma coisa, instituição, empresa, ministério, selecção de futebol, não funciona, não está bem, não tem os resultados esperados? O remédio santo é mudar de nome! Simplesmente isso. Mudamos de nome!” Quase, quase, os Mambas ficavam Rinocerontes! A nossa atitude vem justamente nesta linha de valoração da aparência. Pensamos que com apenas um nome que nos soe bem a coisa vai funcionar e trazer os resultados que esperamos. Tadinho de nós!...
Ante os colossais problemas da nossa justiça, cobertura territorial nacional incipiente, poucos magistrados, justiça muitíssimo morosa, ineficiente e… mais alguma coisa; a grande discussão, o grande debate entre os nossos prestimosos magistrados é se os advogados devem ou não levantar-se quando o juiz entra na sessão de julgamento!...
Não menos delirante é a discussão entre o comandante geral da nossa PRM e os artistas… até os artistas, sobre se se pode ou não usar o fardamento policial nas representações artísticas… Came on! É esta uma questão essencial em ambas as instituições? Dos tantos e colossais problemas que a nossa Polícia tem, o seu comando ainda encontra espaço para se insurgir contra o facto de o artista usar farda policial no palco… os artistas, por seu turno, distraem-se, apartam-se da criação artística para disputarem fardamento policial… a arte só é arte quando se usa fardamento da Polícia? Desfoque absoluto! Absurdo...
E que dizer da grande discussão que estamos a assistir entre o governo e as universidades, sobre se o professor licenciado deve ou não dar aulas nas universidades. Para muitos, ante a grande questão da fraca qualidade do nosso ensino superior em debate, o remédio santo, a varinha mágica é a proibição de o licenciado exercer a docência nas universidades e daí vamos passar a ter ensino superior de qualidade. Mais uma vez, olvidamos o essencial e ficamos na aparência! Para nós, o licenciado é a causa, ou uma das causas da fraca qualidade do nosso ensino superior. E o doutorado é o remédio santo, a varinha mágica! Que abordagem rústica, tosca!
Da forma como alguns olham para a questão (para o licenciado), não se dão tempo de pensar sobre de que licenciado estamos a falar, não lhes interessa se é um licenciado extraordinário, que fez o curso com altíssima classificação, se investiga e publica, se participa em seminários, colóquios, etc., etc. Não, tudo isso não é relevante. Mais importante é que ele é licenciado e ponto final e, assim sendo, não pode pôr o pé numa sala de aulas de uma universidade.
Nem temos em conta que, inversamente, há doutorados e doutorados; nem todos são qualidade e excelência que pensamos ser. Muitos, o trabalho que se lhes conhece é a sua desconhecida tese de doutoramento, não se lhes conhece nenhum outro escrito, vivem anónimos; não investigam, são maus comunicadores, menos profissionais… e esses é que devem ser, na nossa definição, os docentes nas nossas instituições de ensino superior! Que abordagem ruim, a nossa! Mas é reveladora, por excelência, da sociedade superficial que nós somos.
José Soares Martins, já falecido, Deus o tenha, é um dos maiores historiadores de Moçambique; escreveu que se farte sobre a nossa história; e mesmo assim, na nossa abordagem, não podia dar aulas a um candidato a licenciado!... Fátima Mendonça… uma das grandes estudiosas da literatura moçambicana, tinha, na nossa visão superficial, que não dar aulas na universidade! Na Faculdade de Direito, foram formados grandes juristas (juízes, procuradores, advogados, etc.) no país por docentes… licenciados; não havia ali doutorados aos magotes, como se preconiza e apregoa! Idem aspas na Faculdade de Engenharia! Temos, neste país, muito grandes engenheiros que fazem milagres, formados por docentes… licenciados!, que não deviam dar aulas na universidade!...
Tem razão, pois, o Prof. Lourenço do Rosário, ao defender que as IES são autônomas para convidar quem quiser para dar aulas nas suas salas! A qualidade não está no nome, nem na aparência (casaco e gravata): está na essência!
Concentremo-nos mais na estrutura profunda das coisas e não na de superfície, se queremos uma sociedade de qualidade!
Enquanto o Jota cogitava na situação do Chinês, que não descontinuava de fotografar a nossa vasta floresta, que há tempos reclama de violação e desflorestamento, ao longo das margens da extensa e abandonada Ene Um, ao mesmo tempo que em sua mente circulavam memórias de ocasiões que, em vida, havia partilhado com a sua amada tia Marciana, Manuelinho interpelou:
— Sobrinho, sabes que podes escrever sobre este assunto? — Referindo-se às fotografias do Chinês, com olhos arregalados espalhando-se entre os cantos daquele autocarro desprovido de modernidade. De imediato, os seus ouvidos hospedaram uma resposta vinda do Jota:
— Tio, escrever é um bom exercício para a nossa memória. Aliás, a escrita permite que nós preservemos não somente as nossas memórias, factos do dia-a-dia, mas também a própria história e os factos marcantes e não marcantes que se despejam nas páginas da vida.
— Falando nisso, sobrinho, já ouviu falar da obra “A Arte de Escrever”? — Inquiriu Manuelinho.
— Sim, tio. É “Arte de Escrever Bem”, nem? Eu até tenho este livro publicado em uma das minhas redes, a academia.edu.[i] É um manual meramente jornalístico que ensina a escrever bem. — Respondeu o jovem Jornalista-Estagiário e devolveu a sua voz ao abrigo do silêncio.
— Não é “Arte de Escrever Bem”, de autoria de Dad Squarisi e Aríete Salvador. Refiro-me à obra “A Arte de Escrever”, simplesmente, sem incluir o “BEM”, substantivo que evidencia um conjunto de qualidades positivas. É de autoria de Arthur Schopenhauer. Conheces, meu bom sobrinho?
— Se não é a mesma, então, não me lembro, tio. Podes falar-me um pouco sobre essa obra? Afinal, nunca devemos parar de aprender nesta vida. Os que param de aprender, igualmente, param de crescer. Isso funciona em todas as áreas da nossa vida. Quem não aprende, permanece estagnado e estático no tempo. — Afirmou o Jota, para depois acrescentar:
— É verdade, escrever é mesmo uma arte. E há quem realmente é um bom artista nesta área, como Mia Couto. Saber pegar nas 26 solteiras do nosso abecedário e, a partir delas, montar um bom guisado de frases, períodos e parágrafos, como Jacó, filho de Isaque e neto de Abraão, que se traduz em textos, relatórios, monografias ou mesmo livros, é, de facto, uma admirável arte. No entanto, como acontece em qualquer área de actuação, há quem escreve artisticamente mal.
— Confirmo, sobrinho. Mesmo na música, isso acontece. Às vezes, como Produtor Musical, eu sofro com Cantores e Músicos que vem gravar as suas músicas, mas a melodia não se encaixa na letra e vice-versa. Noutras ocasiões, sou obrigado a reescrever as músicas! Enfim, nem quero me lembrar disso! — Referiu Manuelinho. Em seguida, acrescentou:
— Voltando ao nosso assunto, Arthur fala muito bem deste assunto, aos mínimos detalhes. Eu penso que seria uma boa opção de leitura para ti ou qualquer amante das letras. — Declarou Manuelinho, numa tentativa de se esquecer das lágrimas que acabara de entornar e dos choros das suas irmãs, primas, tias e demais familiares que, num futuro bem próximo, teria de acomodar. Na sua cultura, os homens não choram para fora, molhando camisas e casacos. Pelo contrário, eles fazem escorregar as suas lágrimas para dentro. Naquele contexto, ele seria um dos casos notáveis, similares às quebra-cabeças da Multiplicação do Ensino Secundário.
— Então, tio, qual é a tónica desta lendária obra do renomado Arthur?
— Arthur Schopenhauer é um Filósofo e Professor Universitário Alemão, que nasceu no oitavo ano da nona década do século dezoito, depois de Cristo, e morreu no último ano da sexta década do século seguinte. Parte dos seus pensamentos tem base nas ideias de Immanuel Kant, renovável Pensador e Filósofo da era moderna. Arthur passou quase toda a sua vida a ensinar!
— Sério? Ele era seguidor do autor das Críticas, ou seja, a “Crítica da Razão Pura”, “Crítica da Razão Prática” e “Crítica do Juízo” ou, numa tradução mais próxima à obra original alemã, “Crítica da Faculdade do Juízo”? Então, vejo que a obra dele deve ser muito rica e possui ideias que podem ajudar a qualquer um que pretende escrever ou mesmo que escreva. Pois, não, tio? — Indagou o Jota, tentando puxar a conversa, a fim de ressuscitar a “” de Arthur.
— Ahaannn… Acertaste em cheio, meu filho! Por isso, Schopenhauer era um grande crítico dos Escritores da sua época. Nesta obra, A Arte de Escrever, ele critica o estilo dos Escritores, as preferências dos leitores, as recomendações dos críticos, bem como o pensamento dos Filósofos, e propõe uma nova dinâmica de fazer Literatura e Filosofia. Ele, identicamente, rebatia a forma como os seus contemporâneos reflectiam, liam, escreviam e usavam a língua para descrever as variadas realidades daquela época. — Assegurou Manuelinho, esbanjando ciência.
— Wooow… É muita coisa, tio. Se vivesse nos nossos dias e tivesse uma conta no Facebook, certamente, Arthur teria muito que dizer, principalmente, sobre os nossos estudantes universitários e afamados analistas televisivos, que trasbordam nas nossas telinhas mágicas e nas redes sociais. — Afirmou Jota, requerendo, informalmente, mais comentários da parte do tio.
— Hummmm… Sendo sincero, sobrinho, com base no que ele descreve em “A Arte de Escrever”, não estaria conformado com a nossa realidade. Arthur espantar-se-ia com a quantidade de estudantes e analistas, de todos os tipos e todas as idades, que se orgulham em ter apenas a informação, mas não a instrução, cuja honra se baseia no facto de terem informações sobre tudo, todas as pedras, ou plantas, ou batalhas, ou experiências, sobre o resumo e conjunto de todos livros. Não lhes ocorre que a informação é um mero meio para a instrução, tendo pouco ou nenhum valor por si mesma, se não for bem utilizada. — Sublinhou o jovem que perdeu o volumoso jackpot contractual para se tornar Presidente do Município de Quelimane.
— Isso é muito profundo, tio. Este pensamento é mesmo actual. Dá para ver que Arthur era um grande homem. — Disse Jota — Estendendo a sua mão direita sobre a cabeça e acrescentou:
— E sobre a escrita, o que ele diz em “A Arte de Escrever”? Eu creio que Arthur disse algo digno de registar em nossas memórias. Vou até abrir as páginas do meu cérebro e com a caneta dos meus neurónios caligrafar estas informações para a minha melhor instrução como Jornalista.
— O mais belo pensamento corre o perigo de ser irremediavelmente esquecido, quando não é escrito. — Disse uma voz saudavelmente feminina, bem afinada e decorada de leite e mel frescos, que atravessou os nossos ouvidos. — “Assim como a amada pode nos abandonar, se não nos casamos com ela.” — Acrescentou Manuelinho, ao mesmo tempo que, influenciado pela frase que acabara de libertar, contornava a sua quase debilitada visão em direcção aos olhos castanhos, pintados de entusiasmo, daquela jovem e passageira de visíveis qualidades.
— O saber é o princípio e a fonte para se escrever bem. — Adicionou aquela jovem.
— Olá, moça. Tudo bem? Chamo-me Manuel. — Disse Manuelinho, tentando mostrar que não era uma criancinha sem noção das coisas. — E acrescentou: — Também já leste o livro de que nos referimos? — Questionou, enquanto movimentava a língua sobre os seus lábios.
— Olá, Manuel. O meu nome é Shantel. — Referiu a jovem passageira e manteve-se em silêncio.
— Opha… Até que os nossos nomes rimam. Ambos terminam em “el”. Será isso uma mera coincidência ou um plano sobrenatural? — Assumiu, todo esperançoso, o Manuelinho.
— Tio, ainda em “A Arte de Escrever”, o que disse Arthur sobre os Escritores? — Interpelou Jota.
— Jota, meu filho… — Soltando alguns sorrisos, como quem quisera enviar uma mensagem encriptada. — Para Arthur, há dois tipos de Escritores: aqueles que escrevem em função do assunto e os que escrevem por escrever. Os primeiros tiveram pensamentos, ou fizeram experiências, que lhes parecem dignos de ser comunicados; os outros precisam de dinheiro e, por isso, escrevem. Escrevem somente por causa do dinheiro. Infelizmente, esses são bastantes!
— Tio, eu penso que muitos se enquadram na segunda categoria, da qual eu não quero integrar. — Desatou o Jornalista-Estagiário. Ele já reviu muitos textos, monografias e livros, por isso, sabia muito bem do que estava a falar. Além disso, ele era um Escritor em formação, que sonhava em ser autor de vários livros!
— Também se pode dizer que há três tipos de Autores: em primeiro lugar, aqueles que escrevem sem pensar. Essa classe é a mais numerosa. Em segundo lugar, há os que pensam enquanto escrevem. Eles pensam justamente para escrever. São bastante numerosos. Em terceiro lugar, há os que pensaram antes de se pôr a escrever. Escrevem apenas porque pensaram. São raros! — Acrescentou a Shantel, visivelmente confiante, e soltou olhares macios e chamativos ao Jota.
— E qual é a base fundamental para escrever? — Perguntou o Jota, procurando colher mais conhecimentos sobre “A Arte de Escrever”. Ele não queria nada além disso.
— Escrever como se estivesse a preparar a construção de uma casa. Deve ter a planta do que pretende escrever. Esse é o começo! Não se difere da Arquitectura. É necessário ter o projecto do que você precisa de construir e não apenas começar a cavar, colocar blocos, pedras, areia, cimento, água, varrões, ou qualquer material de construção. É por isso que temos muitas casas malnutridas, e livros também, que desabam diante que qualquer ventinho. — Argumentou Manuelinho, como se estivesse a desabafar.
— É verdade, Manuel. Como disse Arthur, poucos escrevem como um arquiteto constrói: primeiro, esboçando o projecto e considerando-o detalhadamente. A maioria escreve da mesma forma como se estivessem a jogar cartas. Nesse jogo, às vezes, segundo uma intuição, ganhamos; às vezes, por mero acaso ou batotice, encontramos cartas certas para ganhar o jogo sem que o nosso adversário ganhe uma rodada sequer, e o mesmo se dá com o encadeamento e a conexão das frases desses Escritores. Mas não deveria ser assim. — Salientou a Shantel.
— Só uma mente de destaque é capaz de nos oferecer algo digno de ser lido. — Mencionou Manuelinho, e acrescentou: — No fundo, o autor engana o leitor sempre que escreve para encher o papel, uma vez que o seu pretexto para escrever é ter algo a comunicar.
— São tantas coisas que, quando bem entendidas e aprimoradas, podem ajudar muitos jovens a desenvolver a Arte de Escrever, claro, com a devida qualidade e reverência necessária. — Sublinhou o Jota que, em seguida, demandou: — Segundo Schopenhauer, é possível aprender a escrever a partir dos escritos de outro Escritor, isto é, através da leitura de livros?
— É possível, sim, sobrinho. No entanto, ele adverte que nenhuma qualidade literária – como, por exemplo, a capacidade de persuasão, a riqueza de imagens, o dom da comparação, a ousadia, ou a amargura, ou a concisão, ou a graça, ou a leveza da expressão, ou mesmo a sagacidade, os contrastes surpreendentes, a ingenuidade, entre outras – pode ser adquirida pelo simples facto de lermos Escritores que possuem tal qualidade. — E acrescentou:
— Entretanto, se a pessoa que deseja escrever, o futuro Escritor, possui estas qualidades in potentia, pode evocá-las, trazê-las à consciência, ver que uso é possível fazer delas, fortalecer a sua inclinação, na disposição para usá-las, julgar o efeito da sua aplicação em exemplos e, assim, aprender a maneira correcta de usá-las; e só, então, é possível ter estas e demais qualidades de escrita desejáveis in actu, ou seja, na prática ou em acção, escrevendo.
— Essa é a única maneira de a leitura ensinar a escrever, na medida em que ela nos mostra o uso que podemos fazer de nossos próprios dons naturais; portanto, pressupondo sempre a existência destes. Sem eles, não aprendemos coisa alguma pela leitura, a não ser uma forma fria e morta, de modo que não nos tornamos nada mais do que imitadores banais. — Sentenciou a Shantel. E, virando-se para o Jornalista-Estagiário, perguntou: — É isso que queres ser, Jota?
— Claro que não! Mas muitos escrevem apenas por escrever! Aliás, antes de escrever, deve-se, também, pensar no leitor. Ninguém deve escrever, simplesmente, para queimar o tempo do leitor. Afinal, é o leitor que não apenas actualiza, mas também, dá vida ao conteúdo do texto. Sem o leitor, o texto morre e não alcança o objectivo pelo qual foi escrito. Eu penso assim, querida Shantel! — Argumentou o sobrinho do Manuelinho.
— Até parece que leste “A Arte de Escrever”, Jota. É preciso ser económico com o tempo, a dedicação e a paciência do leitor, de modo a receber dele o crédito de considerar o que foi escrito digno de uma leitura atenta e capaz de recompensar o esforço empregado nela. — Sublinhou Manuelinho, enquanto afastava a cortina e empurrava o vidro do autocarro, onde ele estava sentado, para se escapar dos fortes raios solares que tentavam interromper a fluidez da nossa conversa.
— Vejo que este livro, A Arte de Escrever, é mesmo interessante, tio. — Comprovou Jota.
— Além de interessante, é uma obra importante e actual. E, como disse Arthur, cada livro importante deve ser lido, de imediato, duas vezes. Em parte, porque as coisas são melhor compreendidas na segunda vez, em seu contexto, e o início é entendido correctamente quando se conhece o final; em parte porque, na segunda vez, cada passagem é acompanhada com outra disposição e com outro humor, diferentes dos da primeira, de modo que a impressão se altera, como quando um objecto é observado sob uma luz diversa. — Concluiu Manuelinho e aquietou-se no seu assento, cuja almoçada, de tanto trilhar a estrada sem manutenção, estava quase descascada.
— Mais do que isso, Arthur fala de aspectos críticos sobre a leitura que, também, são dignos de destaque. Até parece contradição face ao que ele escreve, mas são meras verdades. — Afirmou Shantel — Para depois acrescentar: — Ler significa pensar com uma cabeça alheia, em vez de pensar com a própria. E nada é mais prejudicial ao pensamento próprio do que uma influência muito forte de pensamentos alheios, provenientes da leitura contínua.
— Quando lemos, outra pessoa pensa por nós: apenas repetimos o seu processo mental, do mesmo modo que um estudante, ao aprender a escrever, refaz com a pena os traços que seu Professor fizera a lápis. — Adicionou Manuelinho.
Neste intervalo, ouviu-se o barulho do empurrar de um dos vidros do autocarro, no lado de trás. Conseguia-se escutar, igualmente, os sons do volume de um Smartphone que recolhia fotos para a sua quase entulhada galeria. Do lado de fora daquela janela, havia uma enorme quantidade de árvores. Um verde escuro banhado de clorofila! E ali estava, novamente, como se nada estivesse a acontecer, o Chinês, planificadamente mansinho, com o seu Huawei preto, capturando imagens da nossa vasta floresta.
Surpreso, após ouvir aquelas declarações, o Jota questionou:
— Então, que saída temos neste processo?
— Não te preocupes, Jota. Não significa que devamos parar de ler. Simplesmente, quer dizer que devemos ler e pensar ou meditar no que lemos. Se alguém lê continuamente, sem parar para pensar, o que foi lido, não cria raízes e se perde em grande parte. — Cimentou a Shantel.
— Além disso, quando lemos, somos dispensados em grande parte do trabalho de pensar. É por isso que sentimos um alívio ao passarmos da ocupação com nossos próprios pensamentos para a leitura. — Arremessou Manuelinho.
— Ahaaannn… Agora entendo a colocação de Arthur sobre a situação dos estudantes e estudiosos ou analistas da sua época que, de igual modo, se estende à nossa, ao distinguir a posse de informação da instrução de quem a possui. É por isso que não podemos confundir a compra dos livros com a assimilação do seu conteúdo. — Argumentou o Jornalista-Estagiário!
— Exactamente, Jota! — Exclamaram, em uníssono, Manuelinho e Shantel! Enquanto isso, o motorista aumentava a velocidade do autocarro e, assim, seguiam a viagem rumo ao Chiveve, terra de sonhos confiscados, na qual, dois anos mais tarde, IDAI semeou luto generalizado.
Naquele intervalo, momentâneo, banhados de fadiga e sono, uma voz masculina interrogou:
— Jovens, vejo que vocês guardaram, em vossas memórias, tudo sobre “A Arte de Escrever”. Não apenas ressuscitaram Arthur Schopenhauer, mas também a própria obra.
— Não, companheiro! Nós guardamos apenas o essencial para alimentar esta simples conversa. — Declarou Manuelinho e, conclusivamente, acrescentou:
— Exigir que alguém tivesse guardado tudo aquilo que já leu é o mesmo que exigir que ele ainda carregasse tudo aquilo que já comeu! Entretanto, do mesmo modo que o corpo guarda apenas aquilo que lhe é útil, assim também acontece com a leitura, o cérebro guarda o que nos interessa e é necessário para o nosso bem-estar total, da mesma forma que expulsa o que não precisamos ou não nos é útil guardar ou reservar em nossa memória.
Na Av. Eduardo Mondlane havia um bar baptizado “Goa”, conhecido em todo o grande Maputo pela essência dos petiscos ali servidos, em particular os mariscos que levavam os irresistíveis temperos asiáticos. Bebia-se cerveja a rodos desde o amanhecer, e todos aqueles que lá iam pela primeira vez, queriam voltar outra vez e nunca mais abandonavam o lugar que se tornou histórico, resistindo aos ventos infaustos do tempo, até ao momento em que tudo aquilo colapsou.
É aqui onde João Paulo, o arrebatante blues man e soul music man, inspirava-se para a loucura dos clubes noturnos reservados aos grandes, e ele reverberava, tornando-se assim, aquele cometa que jamais voltará. Era ele, o João, a principal referência quando o “Goa” entrou em derrocada até se tornar uma espelunca. João Paulo também estava em derrocada, até que a morte, cansada de esperar por um indivíduo que ia devagar em direcção à guilhotina, em cada duplo de Jack Daniels, trespassou-o.
Nos Últimos anos, - meados de 2000 - “Goa”, apesar de se ter tornado um lugar desprezível, era uma importante lagoa, onde mais do que ir refrescar-se com as suas águas turvas, as pessoas que lá se materializavam , muitas delas, faziam-no com o propósito de debater ideias. Havia massa pensante que transformava esta gruta em fonte de sabedoria, não se falava de putas. Quer dizer, em todas as mesas a conversa era desenvolvida em torno do saber, e o que se notava é que quanto mais embriagados, mais lúcidos ficavam os intervenientes.
João Paulo apelidou o “Goa” de “Bar dos Crâneos”, querendo dizer com isso que o “Goa” é bar dos pensantes. O que se falava lá dentro e na esplanada cá fora, não eram balelas. Havia oradores esclarecidos, que se destacavam e eram promovidos, pelo seu conhecimento, a mais do que simples pivots. Outros ainda, aqueles cuja capacidade de oratória e de cultura geral era limitada, ficavam empolgados em escutar os arautos, e pediam mais cerveja. Para eles próprios e para aqueles que falavam.
No “Goa” não havia interlúdio. Em todas as mesas destacava-se um maestro, ou vários, mesmo assim não se perdia a consonância. Era como você estar num estádio com vários palcos, onde em cada um deles a música que se toca, é tocada por grandes músicos, e você quer ouvir todas as músicas ao mesmo tempo. Com a diferença de que chega um momento em que o maestro dilui-se. Cada executante quer tocar a sua música e quer que os outros a escutem. Mas esse é o ressurgimento dos “crâneos”, todos querem brilhar. Aliás, eles vão ali para brilhar. E mostrar que brilham.
Pois é! Lembrei-me destes momentos indeléveis na memória, quando há uma semana estive em Maputo e passei por este lugar onde ainda fui tempo de sentir o cheiro do João Paulo, sem precisar de entrar. Já não se chama “Goa”, mudou de nome e de história, como todos nós. Já não somos os mesmos!