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terça-feira, 24 agosto 2021 09:19

O bitonga está em decadência

É uma língua que se fala eminentemente na costa da província de Inhambane, desde o distrito de Jangamo, até Murrombene. Os historiadores ainda não vieram nos dizer como é que este idioma aparece nesta zona, tornando-se, deste modo, um enigma. Existem pelo menos duas variantes do bitonga (gitonga), ou seja, notam-se pequenas diferenças entre o que se pode ouvir em praticamente todo o distrito de Jangamo e o que nos é oferecido a partir da cidade de Inhambane, até Murrombene, passando por Maxixe.

 

Há cerca de vinte anos, um historiador brasileiro, disse num simposium que há línguas africanas que se falam no Brasil, e que em África já não se falam mais. Lembro-me sempre dessa afirmação quando vou à Maxixe, onde, em princípio, devia ouvir o bitonga nos mercados e nas praças e nas ruas. É o xithswa (língua do interior da província de Inhambane) que domina a comunicação entre as pessoas. Os preços no Dumba nengue são regateados em xthswa. Isso significa que os bintongas (vatonga), estão a ser profundamente influenciados pelos vathswa.

 

O mais interessante é que, no lugar de o muthswa chegar à terra dos vatonga e aprender a língua destes, não faz isso! São os vatonga que aprendem a língua dos forasteiros. Em todos os cantos da cidade da Maxixe, fala-se xithswa. Maior parte dos adolescentes que pululam nas ruas vendendo bugigangas, são mathswas (vathwa, em gitonga). Na intensidade do tráfego, com autocarros a passarem sem cessar, porém, sempre tentados a uma paragem inevitável neste que é o entreposto do diabo, pelos rios de dinheiro que movimenta, há inevitavelmente uma chusma de vendedores de bolos de sura, esmagadoramente jovens, que correm atrás desses transportes públicos para vender, e esses jovens são quase todos mathswas.

 

Mas a cidade de Inhambane, resistente no seu conservadorismo, ainda consegue manter o  bitonga, mesmo assim com muitas interferências. Aliás, aqui é a língua portuguesa que sobressai.  Os  dealers de recargas da telefonia móvel querem mostrar que sabem falar português. As senhoras vendedeiras do mercado também, e todos, ou quase todos os jovens e velhos que são daqui. O bitonga ouve-se pouco nos chapas, quase nada. A bandeira é a língua portuguesa. Até chega-se ao ridículo de muitos cobradores e motoristas e também alguns vendedores (homens e mulheres), fazerem-se passar por matchanganas (língua falada em Gaza e Maputo). Os mathswas desprezam os bitongas, e estes dizem que o muthswa não sabe nada (muthwa khati).

 

O bitonga “moderno” da cidade de Inhambane, deprecia a sua própria língua. Muitos deles que nasceram aqui, saíram e jamais voltaram, não querem que ninguém os reconheça como bitongas. Você é capaz de cumprimentar o seu amigo em bitonga, em públco, e ele responder-te em português. Considera o seu idioma como sendo de menor valor. Porém, é na Maxixe onde está a síntese de que que o bitonga está em decadência, e isso é normal numa situação em que o próprio mundo em si,  já não é o mesmo.

Quando no dia 5 Abril de 2016 o Wall Street Journal trouxe a público o escândalo que hoje denominamos de “dívidas ocultas”, além da incredulidade geral que teve por parte da sociedade moçambicana, não se acreditava que algum dia este caso iria ser julgado.

 

À medida que se foram conhecendo os contornos do caso e as ligações políticas dos diversos implicados, a descrença foi aumentando de forma generalizada.

 

Não era para menos. Afinal de contas, tratava-se do maior escandalo de corrupção da história de Moçambique, onde um grupo de moçambicanos que exercia o poder ou tinha ligações próximas ao círculo do poder vigente na altura da contratação destas dívidas, aliado a empresários baseados no Médio Oriente e com acesso a banqueiros europeus, conspiraram para endividar fraudulentamente uma nação, deixando o país com uma dívida oculta, corrupta e odiosa de 2 biliões de dólares americanos (nos cálculos do Centro de Integridade Pública (CIP) e do Chr. Michelsen Institute (CMI), já custou à economia moçambicana mais de 11 biliões de dólares americanos).

 

Com todo este cenário negativo, o CIP foi um dos poucos actores da sociedade civil que se recusou a desistir do caso, fazendo pesquisa e advocacia para que este, tal como outros casos de corrupção que o país já experimentou, não morresse.

 

Ao longo dos últimos 5 anos, o CIP pesquisou, documentou e construiu um acervo único sobre o caso nas diferentes jurisdições onde ele está a decorrer judicialmente. Organizou campanhas de advocacia, tal como a famosa campanha EU NÃO PAGO que se tornou viral nas redes sociais, pressionando o poder público a tomar acções enérgicas que visassem a solução do caso. A campanha resultou em ameaças à integridade física dos seus colaboradores e no cerco policial aos seus escritórios. Ainda assim, o CIP não desistiu.

 

Nestes 5 anos, o CIP tornou-se numa das principais fontes de informação sobre o que estava a acontecer com os outros actores deste enredo que não se encontravam em Moçambique. Em tempo real, e de forma simples, inovativa e criativa, o CIP informou sobre o desenrolar das audiências do antigo ministro das Finanças Manuel Chang, no tribunal de Kempton Park em Johanesburg. Com dois telemóveis, um laptop (Borges Nhamire, em Johannesburg, Edson Cortez, na edição nos escritórios do CIP com o apoio de Liliana Mangove no layout e outreach) e uma rede social, no caso concreto o FACEBOOK, mostraram aos moçambicanos que a informação não se recebe somente nos circuitos tradicionais e no horário nobre, mas sim acede-se a qualquer hora e momento e no seu telemóvel. Este caso exigia isso.

 

O CIP foi a Nova Iorque e cobriu o julgamento de Jean Boustani usando a mesma simplicidade de informar e trazer em tempo real as incidências do que acontecia. No julgamento de Boustani, inovamos adquirindo os documentos produzidos em sede do tribunal, de modo a apresentarmos sólidas evidências do que ali era dito. Mais uma vez, essa ousadia teve custos para organizacão e para todos aqueles que estavam directamente envolvidos nesta empreitada.

 

As ameaças, calúnias e campanhas de difamação durante esse processo não foram motivo suficientes para que o CIP se desviasse do seu principal objectivo: pressionar os poderes públicos, e sobretudo o judiciário, para que este caso não fosse esquecido. E, de modo a colaborar com as entidades públicas, mais concretamente com a Procuradoria Geral da República (PGR), o CIP adquiriu todos os documentos apresentados em sede de julgamento de Jean Boustani, partilhando-os com a PGR, como forma de auxiliar nas investigações.

 

As dívidas ocultas tiveram efeitos devastadores sobre a economia nacional. Isso ficou provado num documento que o CIP publicou no dia 27 de Maio do corrente ano, o qual apresenta os custos das “dívidas ocultas”, escândalo que de 2016 a 2019 custou à economia moçambicana mais de 11 biliões de dólares americanos. Parte da defesa dos advogados da República de Moçambique nos processos que correm na Suiça e no Reino Unido, citou este relatório como uma prova clara e inequívoca de que Moçambique e os moçambicanos foram lesados e devem ser compensados.

 

Hoje, 23 de Agosto de 2021, o CIP lembra o seu papel e contribuição para que este caso chegasse a julgamento, tendo a plena noção que não foi o único actor a influenciar para que isso acontecesse, mas evidenciando que teve um papel chave e determinante para que os implicados neste caso respondessem em julgamento.

terça-feira, 24 agosto 2021 06:01

O julgamento da consolação

O julgamento do caso das “dívidas ocultas”, que começou ontem em Maputo, é o segundo de oito capítulos onde se tentará destapar o véu de uma novela trambiqueira que envolveu ganância, enriquecimento ilícito e depauperação de um povo. Uma quadrilha de políticos, governantes, lobistas de meia tijela e funcionários da secreta em conluio com magnatas e vendedores de barcos do eixo Beirute/Paris (apadrinhados por François Holland, que nunca foi tido nem achado), mais a banca suíça (o Credit Suisse com seus banqueiros) e a russa (o VTB), lucrou num processo de endividamento fraudulento, tramando a utopia dos moçambicanos e o sonho de credores que compraram gato por lebre.

 

O Conselho Constitucional da República de Moçambique proferiu o Acórdão n° 5/CC/2019 de 3 de Junho referente ao Processo nº 6/CC/2017, incorporado no Processo nº 8/CC/2017 sobre fiscalização sucessiva abstracta de constitucionalidade, através do qual declarou a nulidade dos actos inerentes ao empréstimo contraído pela EMATUM,SA, e a respectiva garantia soberana conferida pelo Governo, em 2013, com todas as consequências legais. Outrossim, o Conselho Constitucional, através do Acórdão n.º 7/CC/2020, de 8 de Maio de 2020, referente ao Processo n.º 05/CC/2019 declarou a nulidade dos actos relativos aos empréstimos contraídos pelas empresas Proíndicos, SA, e Mozambique Asset Management (MAM, SA) e das garantias conferidas pelo Governo, em 2013 e 2014, respectivamente, com todas as consequências legais.

 

Nos termos conjugados do artigo 247 da Constituição da República de Moçambique (CRM) e do artigo 4 da Lei n.º 6/2006, de 2 de Agosto, com alterações introduzidas pela Lei n.º 5/2008, de 09 de Julho, Lei Orgânica do Conselho Constitucional (LOCC) resulta inequívoco que: “Os acórdãos do Conselho Constitucional são de cumprimento obrigatório para todos os cidadãos, instituições e demais pessoas jurídicas, não são passíveis de recurso e prevalecem sobre outras decisões.” Do n.º 2 dos ambos artigos supra referidos, está consagrado que: “Em caso de incumprimento dos acórdãos (…), o infractor incorre no cometimento de crime de desobediência, se crime mais grave não couber.” Adicionalmente, o artigo 214 da CRM estabelece que: “As decisões dos tribunais são de cumprimento obrigatório para todos os cidadãos e demais pessoas jurídicas e prevalecem sobre as de outras autoridades.” O que significa que a lei é clara sobre o valor, natureza e eficácia jurídica dos acórdãos do Conselho Constitucional.

 

O PROBLEMA

 

Nos dois Acórdãos em referência, os quais foram esperados com muita expectativa pela sociedade civil, o Conselho Constitucional fundamentou a sua decisão esgrimindo que praticados para contrair as dívidas ocultas são actos inválidos, actos administrativos nulos, por força das disposições combinadas do n.º 2, do artigo 35 da lei n.º 7/2014, de 28 de Fevereiro, e da alínea a) do n.º 2, do artigo 129 da Lei n.º 14/2011, de 10 de Agosto, com consequência jurídica nas Resoluções da Assembleia da República que pretenderam “legalizar” as dívidas ocultas em questão.

 

Ora, não obstante a obrigatoriedade e a irrecorribilidade das decisões do Conselho Constitucional, o Governo não se mostra cumpridor dos supra mencionados acórdãos, tanto é que avançou com a reestruturação e/ou renegociação das dívidas ocultas em causa para o seu efectivo pagamento aos seus credores, supostamente porque esses acórdãos não são válidos no plano internacional. Mas o Governo, ao contrair as dívidas ocultas, tinha de seguir procedimentos legais essenciais do ordenamento jurídico moçambicano para que as mesmas fossem válidas não só no plano nacional, mas também no plano internacional. Por isso, a seguinte inquietação: Que valor e eficácia jurídica os acórdãos em referência têm relativamente ao pagamento ou não das dívidas ocultas? O Governo está ou não em situação de violação do artigo 247 CRM e do artigo 4 da LOCC? Este artigo não responde cabalmente a estas questões, porém, procura demonstrar a quem cabe responder e por que razão.

 

Por um lado, o Ministério Público, na qualidade de garante da legalidade e com poderes para o exercício da acção penal devia se pronunciar sobre a problemática da violação dos acórdãos do Conselho Constitucional supra indicados, no sentido de esclarecer a sociedade em que medida esses acórdãos estão ou não a ser violados pelo Governo. A acção pela violação dos acórdãos do Conselho Constitucional cabe, em primeira linha, ao Ministério Público que também não se está a pronunciar devidamente sobre a (i)legalidade da reestruturação da dívida e seu pagamento pelo Governo no contexto dos referidos acórdãos que anulam os actos que deram lugar às dívidas ocultas.

 

Por outro lado, o Conselho Constitucional, entanto que “órgão de soberania, ao qual compete especialmente administrar a justiça, em matéria de natureza jurídico-constitucional,” em conformidade com o nº 1 do artigo 240 da CRM e considerando, sobretudo, a sua função educacional estipulada no artigo 212 da CRM nos seguintes termos: “Os Tribunais educam os cidadãos e a administração pública no cumprimento voluntário e consciente das leis, estabelecendo uma justa e harmoniosa convivência social”; é mister que o Conselho Constitucional venha a público, revestido da sua função pedagógica, não no sentido de dar parecer, mas explicar a sociedade o valor, eficácia jurídica, sentido e alcance das suas decisões, sobretudo quando são muito problemáticas em termos de compreensão da eficácia das mesmas à semelhança dos acórdãos que proferiu sobre as dívidas ocultas, objecto deste artigo.

 

Em bom rigor, não faz sentido estes acórdãos não serem percebidos do ponto de vista do valor jurídico prático quando versam sobre um problema de interesse público de grande dimensão, tendo em conta ainda que declara nulos os actos que permitiram o endividamento dos moçambicanos. Mas a nulidade de tais actos, na prática, é também “nula e de nenhum efeito”, na medida em que o avançar no pagamento das dívidas ocultas pelo Governo esvazia completamente o conteúdo dos acórdãos em questão de tal modo que se torna indiferente a existência dos mesmos.

 

Importa aqui referir que é difícil perceber os acórdãos do Conselho Constitucional em análise de forma isolada sem relacionar com os outros processos judiciais existentes sobre a mesma matéria no que respeita à gestão das expectativas da sociedade relativamente ao comportamento, força e integridade do judiciário como é o caso do famigerado julgamento das dívidas ocultas que se avizinha no quadro do Processo n.º 18/2019-C, com termos na 6ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo.

 

CONCLUSÃO

 

Qual a ratio dos acórdãos do Conselho Constitucional sobre as dívidas ocultas senão decisões políticas com pele jurídica ou decisões jurídicas com conteúdo e valor político? Na verdade trata-se, pois, de uma espécie de norma jurídica “morta” e caso para dizer que “a montanha pariu um rato.” O carácter moribundo dos acórdãos em questão cria um certo cepticismo sobre a eficácia do julgamento das dívidas ocultas que inicia no dia 23 de Agosto corrente e sobre a esperança pela emanação de uma decisão justa e conscienciosa de cunho jurídico e não meramente de interesses políticos.

 

No que à geração vindoura de profissionais da justiça diz respeito, é complicado ensinar o valor e eficácia da jurisprudência do Conselho Constitucional com base nos acórdãos em alusão nas Escolas de Direito, senão numa vertente exclusivamente teórica.

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

Na semana passada, a União Postal Universal (UPU) reuniu-se em Abidjan, Costa do Marfim, para discutir os «Correios do Futuro», uma iniciativa do governo marfinense para apoiar a promoção da inclusão digital e a prestação de serviços postais e financeiros modernos e inovadores. A ideia central era debater “como posicionar a rede postal como um dos principais catalisadores do comércio eletrónico em África, com base num ecossistema integrado, inclusivo e inovador, composto por operadores postais designados”.

 

Os temas abordados para definir a futura Estratégia Postal Mundial em Abidjan incidiram sobre:o comércio eletrónico em todas as suas componentes; a logística global; a melhoria contínua da qualidade do serviço; os benefícios para os cidadãos através da inclusão global (social, financeira e digital).

 

No fundo, ficou claro que os países membros da UPU (não sei se Moçambique é membro) querem aprofundar a transformação dos serviços postais e reafirmar o importante papel que os Correios devem desempenhar na dinâmica da vida social, económica e digital do continente africano.

 

Em Moçambique, o “mindset” vigente não discute a transformação…cultiva o pensamento derrotista como desculpa para a apropriação do vasto e rico património dos Correios de Moçambique. A ideia é matar a empresa para gerar uma acumulação de renda não produtiva para perpetuar o enriquecimento de uma elite com seus bicos de abutre debicando no bem público. Quando outros africanos – e o mundo – debatem os Correios como plataforma para a inclusão digital, Moçambique já decidiu-se pela liquidação da empresa, sem qualquer discussão palpável. Isto é inaceitável. É uma agressão ao bom senso, à nossa inteligência. (M.M.)

quinta-feira, 19 agosto 2021 07:21

Missa a Kandiyane wa Matuva Kandiya

Fez esta semana, justamente a 11 de Agosto, seis meses depois que um dos nossos cronistas, João Candiane Candido, nos deixou. Não sei se para muitos este nome diz alguma coisa; mas posso assegurar que, para ‘uns tantos’, sobretudo os de idade adulta, saberão que se trata, nada mais, nada menos, de… Kandiyane wa Matuva Kandiya! Aquele mesmo que assinava uma coluna, para alguns algo controversa, no “Domingo”! Para esta grande figura da nossa praça pública perecida a 11 de Fevereiro, vai esta “missa pagã”!

 

João Candiane Cândido foi, sim, uma figura de peso no nosso espaço público! As suas opiniões tinhamo-las através das páginas do semanário “Domingo” semana sim, semana sim, até antes do seu silêncio! Primeiro, a sua crônica tinha o título de ‘Assombrações’, depois passou a ‘Leigo, Mas não Burro!’ Opinava sobre todos os assuntos. E não era de rodeios. Naquele seu espaço, ele pegava o “búfalo pelos chifres”, talvez daí ter sido apelidado, por alguns, de controverso. Foi Secretário Permanente no Ministério dos Recursos Minerais e Energia e, depois, membro da Autoridade Nacional da Função Pública (instituto que teve uma vida muito efêmera, foi extinta porque inconstitucional) e, por fim, vice-ministro da Mulher e Acção Social. Portanto, não estamos diante de uma figura qualquer…

 

Mas não decorre disto a “missa” que dedico a João Candiane Cândido, aliás, Kandiyane wa Matuva Kandiya! Decorre da relação de amizade e de empatia que mantive com ele.

 

Finais dos anos 80. Eu era também jornalista cultural no “Domingo”, além de generalista, coordenador da página ‘Ler & Escrever’. Por esta razão, tinha que frequentar eventos culturais. Por razões por explicar, não somente por mim, havia mais aviso e consequente relato de actividades culturais ocorrendo na cidade capital do que nas províncias; um dos menos mencionados e estudados desequilíbrios sociais - os acontecimentos que têm lugar na capital, mesmo não tendo aquela magnitude têm maior cobertura mediática, mas isso é outra história para discutir.

 

A sede da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO) era onde ocorriam muitos “assuntos” culturais: palestras, debates, colóquios, conversas literárias, lançamentos de livros, e outras iniciativas que tais. O Kandiane era presença assídua e ruidosa. Numa dessas ocasiões, o debate era sobre “o que é literatura moçambicana e o que não é, versus, quem é o escritor moçambicano e quem não é…”, temas próprios dos momentos de transições políticas. Não posso reproduzir a posição do malogrado, já não me ocorre, mas interveio com vigor e apresentou as suas posições.

 

Assim íamos nos encontrando nesses eventos culturais. Não muito tempo passou, fiquei também coordenador das ‘Cartas dos Leitores’ e aí tive de entrar em contacto com muitos leitores assíduos do nosso jornal… o nosso João Candiane Cândido, o também falecido Gabriel Simbine e o igualmente perecido Job Mapepeto Mabalane Chambal (Deus os tenha)! Muitas foram as cartas do Kandiane e dos velhos Simbine e Chambal que publicámos nas páginas do semanário “Domingo”. Um desses dias, o Candiane traz consigo dois grandes volumes de textos dactilografados e pede para eu ler. Li até onde pude, eram muitos e, depois, recomendei-lhe para, ele próprio, seleccionar os que considera os melhores textos, agrupá-los por temas e reuni-los em draft de livro e depois trazer para voltar a apreciar. E veio a publicar os seus escritos em livros!

 

Depois do semanário “Domingo”, tive que ir trabalhar no Ministério dos Recursos Minerais e Energia, como assessor de comunicação! Quem encontro lá é, nada mais, nada menos, Joao Candiane Candido! Secretário Permanente do MIREME! Aliás, ele nunca tinha trabalhado em nenhum outro lugar antes da Alta Autoridade para a Função Pública e Ministério da Mulher e Acção Social. Lá diz um velho ditado popular, ‘trate bem as pessoas, independentemente de não estares ligado a elas, pois não sabes onde vais!’ Pois bem, e se tivesse destratado o Kandiyane enquanto dono e senhor das páginas do jornal, e ele interessado em publicar os seus escritos?...

 

Devo confessar que tivemos uma relação de trabalho muito boa, talvez decorrente da relação de amizade que já tínhamos. Quase sempre, estávamos nós a discutir literatura e conhecimentos gerais. O senhor Secretário Permanente era uma pessoa de coração aberto, de muita candura. Sempre de sorriso na boca. Durante os cerca de três anos que trabalhei com ele, nunca ouvi alguém queixar-se de fosse o que fosse do senhor Secretário Permanente! O Kandiyane wa Matuva Kandiya era uma pessoa muito lida, com muita cultura geral, e continuava a ler avidamente. Grande conhecedor da bíblia, afinal, ele fora seminarista; falava dela com toda a facilidade do mundo, como podemos ver nos seus textos. Aquele senhor é um exímio contador de histórias! Muito conversador. Podia contar histórias uma semana inteira! Nos nossos conselhos coordenadores, ele era o contador-mor de histórias, apesar de que não tomava álcool!

 

Como referi, era um homem sem papas na língua! E talvez isto lhe tenha trazido uma grande incompreensão, de tal sorte que, quando foi nomeado vice-ministro da Mulher e Assuntos Sociais, um grupo de mulheres fez um abaixo assinado para a então ministra, Virgília Matabele, a protestar contra a nomeação dele para a posição de vice, acusando-o de agressão verbal e psicológica à mulher, intolerância contra a oposição política e linguagem menos própria. Num dos debates nos jornais com o falecido jornalista  Machado da Graça, ele acabou chamando-o jocosamente de “beula” (o correspondente, em xangana, de machado)... e numa das suas últimas crônicas atacava vigorosamente a actual ministra da Cultura e Turismo por ter feito um concerto de música clássica no fim do ano, insinuando tratar-se de um estilo cultural estranho à cultura moçambicana!

 

Aqui fica uma breve homenagem a um homem, cuja passagem pelo mundo fez questão ele próprio de registar! Incluindo prenunciar a sua própria morte. Na sua última crônica, publicada a 7 de Fevereiro de 2021, sobre as tremendas perdas dos seus amigos devido à COVID-19, ele terminava dizendo: "Não sei se digo até breve ou até sempre” aos amigos falecidos. Certo, certo é que foi a sua última crônica publicada no semanário “Domingo”.

 

Fica aqui a Missa (Pagã), [roubando ao Fernando Manuel], ao João Candiane Cândido, ou Kandiyane wa Matuva Kandiya!

 

Até sempre, mais velho!

 

ME Mabunda