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quinta-feira, 19 novembro 2020 06:52

Fazilange

O celular vibrou no bolso das calças  e eu achei que podia atender noutra altura, depois de descer do barco. Eram oito horas da manhã de um sábado, e o meu destino era Linga-Linga, onde tenho ido amiúde ver a Fazilange, minha tia. Há dois caminhos para se chegar lá, a partir da Maxixe. O primeiro passa por Móngwè, e o outro por Murrombene. As duas vias têm o seu fascínio próprio, é por isso que me entrego a elas de forma aleatória. Mas existe ainda a esplendorosa estrada do mar, que nos leva ao êxtase da beleza, como se tudo aquilo fosse um paraíso.

 

Somos seis ocupantes da embarcação, incluindo dois tripulantes experientes, capazes de preverem a mudança dos ventos sem recorrerem ao barómetro, o barómetro são eles. Conhecem pelos nomes, cada lugar deste tapete azul que se estende entre os palmares da Maxixe e Murrombene, e outros palmares que ressurgem em Mucucune e Guidwane. Depois temos uma enorme vaga que nos deixa ver o Índico,por onde vão entrar os barcos de cabotagem que nunca mais apareceram por aqui.

 

Na verdade estamos no paraíso, e perante esta sumputuosidade da natureza, qualquer palavra será desnecessária. É como se nos prostrássemos a ouvir boa música, interepretada ao som das harpas. Não se fala quando é assim. Fica-se em silêncio, assim como nós estamos, deixando que as emoções triunfem. Também porque neste lugar quem manda são as gaivotas, que escolatam a nossa barcaça, susceptível dos sopros.

 

Mas eu vou a Linga-Linga ver a Fazilange.  Providenciei um pequeno cabaz, que inclui duas garrafas de vinho, as quais vão proporcionar alegria a minha tia que me espera desde ontem, após uma ligação que fiz a dizer assim, Fazi, amanhã estou aí! É minha amiga. Ela gosta muito de mim na mesma proporção em que eu a admiro. Há uma afinidade entre nós. Falamos a mesma linguagem. De paródia.

 

Fazilange vive numa casa modesta virada eternamente para o mar. É uma mulher muthswa, levada para ali pelo marido, um bitonga pescador atacado e morto por um tubarão em plena faina. Então, a vida da minha tia, mesmo sem perder sentido, ficou profundamente abalada. Pior porque nunca teve filhos, nem ela, nem Khwambe Makwandra, e os dois eram felizes.

 

Agora vou a casa da minha amiga para matar saudade. Para lembrar momentos vibrantes que passamos juntos com Khwambe Makwandra, um homem jovial  que vivia a vida profusamente. Quero ouvir a voz de soprano da Fazilange, tendo como catalizador o vinho que levo. Quero sentir o abraço profundo da minha tia. E já no auge, cantaremos canções dos nossos ídolos, onde não faltará Yimpi ya mafilista (guerra dos filisteus), do hinário da Igreja Metodista Unida.

 

Fazilange agora move-se com dificuldades, ela treme nas pernas, mas por dentro emana energia, testemunhada pela voz equalizada que canta versos antigos. É isso que me leva a visitá-la constantemente, como hoje, que vou passar aqui todo o sábado e todo o domingo, sem atender a nenhuma chamada do telefone que não pára de vibrar. Estou pouco me lixando para os que querem falar comigo, nem que seja para me comunicarem a última tragédia. Deixem-me ao menos desfrutar deste pedaço de paz, depois voltarei às azáfamas!

quarta-feira, 18 novembro 2020 06:03

As maternidades flutuantes

No imaginário infantil, txopelar nunca foi, tão só, uma aventureira e arriscada viagem de alguns segundos ou minutos. Muitas, pelo contrário, simbolizavam a realização de sonhos que exorcizam vontades recalcadas. Noutros tempos, as crianças se penduravam nos taipais dos Land Rovers, dos Bedfords e Ifas, até nas bicicletas, e se boleavam, aproveitando a distracção dos pedalantes, para provarem ao mundo a sua agilidade e destreza.

 

A modernidade transformou os veículos, mas nunca o sentido da aventura. Hoje, txopelamos em chapas feitos transportes públicos. Carroçarias empilhadas e necessidade que perdeu a ingenuidade. As emoções e os prazeres, não se algemaram ao tempo e testemunham, ainda, essa fantasia que se estende pelo infinito. A verdade foi sempre a filha do tempo, e a sabedoria, a filha da experiência. De geração em geração, txopelamos nossas vidas no Centro, no Sul e no Norte deste país que busca esse horizonte de comunhão e prosperidade. Umas vezes por aventura, outras, não raras, por condição. Txopelar dá sentido as carências e vivências.

 

Os veleiros, nacalenses por designação, se transformaram na única salvação para a sitiada população dos distritos costeiros do Norte de Cabo Delgado. Os txopelas da salvação. De noite ou de dia, eles passaram a transportar milhares de vidas e almas ansiosas pelo reencontro com a própria vida, serenidade e razão para terem nascido. Estes moçambicanos não procuram portos-seguros, antes, procuram as razões da discórdia, da falta de irmandade. Buscam, neste percurso, o sentido da serenidade e da racionalidade. 

 

De Quionga a Olumbi, de Panguane a Pundanhar, Quiterajo a Mucujo, a debandada quase não deixou de ter mãos a medir. O último campeonato pela sobrevivência, mas, nunca, a última corrida em busca de conforto e bem-estar. Distâncias nebulosas, permeadas por ventos e monções do Norte ou Sul. Uns a estibordo e outros à bombordo. Como carga levam seus parcos haveres. Os sobreviventes patos e galinhas, também eles deslocados, como se fossem o maior tesouro de um passado sem tantas carências. Estas aves, sequer precisam de explicações para entenderem as razões da fuga. Como qualquer racional, agradecem aos seus deuses e espíritos pela salvação. No desespero e aflição, não importa as condições e muito menos a comodidade dos txopelas. Elas nunca existiram. Por isso, são txopelas. Ser transportado sem segurança e na aventura. Precisam de se apinhar para zarparem.

 

Embarcados, e na precariedade do desconforto, viram todos insulares e sem história e nem nomes, procurando refúgio no continente, um espaço que os deixe olhar para os outros seres na condição humana. Porém, a ondulação e os silêncios, atravessadores pelas ordens dos ventos, se fracturam com os choros de crianças não contabilizadas no horário da partida. O txopela, quando todos mesmos esperam, se reconverte em maternidade. Um parto sem assistência e dignidade, mas com a solidariedade das matronas e assistidos por capulanas salgadas pelas ondas. Os mais inapropriados e inconcebíveis espaços para se chegar ao mundo. O mar de tantos mistérios reserva para si o direito de conservar, em suas profundezas, as placentas que registam a incredulidade da malícia e fúria assassina insurgente.

 

Hawa ou Eva, nessa etimologia bíblica, foi uma de tantos que vieram e chegaram ao mundo flutuando. Embalados pela sinfonia combinada de ondas que testemunham tantos outros nascimentos, no interior de suas profundezas, porém, quase nunca, na superfície de suas águas. Mas, são estas águas que se acalmaram para receber cada uma destas crianças. Receber e transportar para outros mundos inundados de dissabores e imperfeições.

 

No mar florescem para a vida os pequenos guerreiros ávidos de rescrever sua própria história, alterar o curso da humanidade e fazer valor a historicidade de tantas gerações de Manis que souberam viver da pesca e caça ou recolecção, mas, jamais, de fratricida e inexplicadas disputas. Hawas, Faridas e Omares, Anchas e Ibraimos, Naziras e Salimos, tantos que agora parecem ser números, mas que transportam fascinantes histórias de trabalho, vida e amor. O tempo se encarregará de escrever a sua própria história. Estas crianças nascidas em maternidades ambulantes e flutuantes serão candidatas a navegantes fugidos da barbárie e crueldade, em busca da terra prometida, como Moisés procurou Jerusalém, partindo para essa fé que alimenta a religiosidade.

 

Vivemos txopelados para essas esquerdas e direitas, com rajadas de vento nem por isso tão favoráveis. Para tanta desgraça não pode ser apenas a natureza que dita o nosso destino. Somos nós próprios. O bom senso e condução colectiva terão de nos orientar para um porto de calmarias. Assim, a sorte acompanhará os audazes. 

 

De maternidades flutuantes os txopelas podem, lamentavelmente, transformar-se em pequenos calvários, espaços onde a vida deixa de fazer sentido. Neste mesmo mar de tantas alegrias e salvação, os afogamentos sepultam corpos em suas águas cristalinas. Junto da placenta dos recém-nascidos, jazem heróis e famílias com destinos interrompidos. As paradisíacas ilhas assistem com a mesma cumplicidade, o gerar e o desfazer de vidas. São estas águas que retiram o melhor de nossos concidadãos. São os txopelas das múltiplas tragédias de tantos refugiados e fugitivos. Nestas horas, o idílico azul se converte num túmulo sufocante e frio, para deixar nas suas profundezas os sonhos de quem nunca entendeu a génese de tanta conflitualidade, descrença e vandalismo.

 

Entre maternidades e calvários, só tem um nome, esperança de um outro futuro e novos horizontes. Estes txopelas são as imagens do sofrimento, narradas de formas tão cruzadas, incompletas e incoerentes, insensíveis e arrepiantes, que viajam em sentido inverso do aceitável e tatuando as nossas consciências e memórias. Os txopelas revelam a plenitude de uma tragédia e crime humanitário cujas proporções, só mesmo Deus poderá, algum dia, justificar.

 

Na linha do horizonte, os txopelas vão chegando silenciados e com a réstia de esperança restabelecida. Invadem as místicas praias do Paquitequete. Areias brancas transformadas em pequenos hotéis desprovidos de tudo.  Um céu aberto e a última redenção divina para quem alcança terra firme.  Paquitequete abraça a todos com a mesma gentileza que recebe dezenas de pescadores. Para trás, as narrativas de uma longa aventura, os relatos da crueldade e descaso, a matriz de sentimentos, de pequenez da nossa solidariedade e generosidade e de um presente que não quer ser passado, pois, o futuro também parece ter deixado de existir.  

Os terroristas decapitaram o professor Damião Tangassi. O professor Tangassi era sobejamente conhecido em Muatide e Matambalale; nesta última aldeia leccionava numa escola devastada pelas bárbaras acções dos terroristas.

 

Damião Males Tangassi era um autêntico autodidata. De étnia makonde e marido dedicado, foi surpreendido junto com a sua família nas matas de Muatide, em Muidumbe quando em redor de uma lareira procuravam afugentar os ferozes animais e suportar o medo e fazer algo para comerem. No fatídico dia, os terroristas não olharam para aquilo que ele representava para milhares de crianças, jovens e pais de família que durante duas décadas passaram por suas mãos.

 

O professor Tangassi trabalhava abnegadamente na formação de uma geração diferente, mas que a guerra foi interromper este processo. Hoje, com todos seus alunos desperso, ele tinha a esperança de recomeçar, onde haviam parado. Infelizmente, os terroristas se apossaram dele e zombaram da sua dignidade com recursos a baionetas e diferentes tipos de tortura. Ode ao professor Tangassi. Ode a todas vítimas do terrorismo em Cabo Delgado e no mundo.

 

Em vida, o professor Tangassi, sonhava em um dia contar às crianças e seus netos o sofrimento que o seu povo está a ter hoje com os actos bárbaros dos terroristas. Conforme uma publicação sua feita numa canoa em Abril quando fugia a um dos maiores ataques aquele distrito. Tangassi escreveu na sua conta de Facebook "ainda tenho esperança de um dia contar aos mais novos sobre algumas das atrocidades deste ponto do país, na confiança de que tudo tem seu início mas também conhece o seu fim".

 

Infelizmente, depois de no passado dia 23 de Outubro, o governo distrital de Muidumbe, na província de Cabo Delgado, ter emitido uma circular a solicitar apresentação ao sector de trabalho de todos os funcionários e agentes do Estado até o dia 01 de Novembro, eis que os terroristas, que haviam atacado o distrito em Abril, regressaram àquele local onde destruíram propriedades e mataram  civis e militares. Entre as vítimas estava um professor que em vida respondia por Damião Males Tangassi; foi assassinado com sua sobrinha que estava em gestação; a mesma foi feita cesariana a sangue frio pelos terroristas.

 

Os familiares do professor actualmente encontram-se em Pemba. Relata-se que a esposa foi obrigada a assistir ao acto macabro do assassinato do professor, seu marido. A mulher encontra-se em estado de choque e traumatizada. A família do professor Tangassi estava em segurança em Pemba desde Abril, mas o sentido de dever e patriotismo levou com que acatasse as ordens superiores.

 

Damião Males Tangassi, de 44 anos de idade, pai de quatro filhos e que em vida vivia numa união marital, nasceu em Muatide, no distrito de Muidumbe e começou a leccionar em 2001, na altura como contratado. Tangassi estava afecto a Escola Primária Completa de Matambalale, uma das onze atacadas pelos terroristas. 

 

Entretanto, entre os dias 31 de Outubro a 01 de Novembro junto com a família e outras; algumas conseguiram escapulir-se e com a situação da sobrinha que não conseguimos apurar o nome foram encontrados nas matas pelos terroristas.

 

O professor Damião Males Tangassi foi decapitado em frente aos filhos, hoje nas mãos dos terroristas, a mulher e a sobrinha que estava em gestação. A morte do professor Tangassi demonstra uma outra faceta dos terroristas; pelas circunstâncias e para o poder do Estado em defesa dos seus agentes e funcionários...

 

Ode ao professor Tangassi!

 

Ode a todas vítimas do terrorismo em Cabo Delgado..!

terça-feira, 17 novembro 2020 06:24

Então, é hoje que vamos conhecer o Salimo?

Quero desde já convidar o SERNIC a ver a entrevista de Agostinho Vuma, presidente da Cê-Tê-A, que vai passar nesta quarta-feira no programa 'Mais Negócios' do canal 'Mídia-Mais-Tê-Vê' a partir das 20 e meia. O camarada já sabe das coisas. Aos poucos a memória vai voltando. Quem fala como ele não é gago.

 

Pelo menos, pelo que se diz nos jornais e no trecho da entrevista, o Vuma agora já se lembra que o atentado contra a sua pessoa foi orquestrado dentro da Cê-Tê-A. Isto é, o maestro da intentona é um empresário que quer ser presidente da agremiação nas eleições deste Dezembro que vem. Ou seja, o Salimo é um dos empresários que está ali dentro. Para ser mais claro, é seu adversário. Quer dizer, ele já se lembra do Salimo, só não se lembra se terá dito 'Salimo, o que eu te fiz' duas vezes antes deste atirar. Lembra-se também de tudo o que aconteceu durante o tempo que ficou inconsciente (em coma), mas lembrar-se de ter gritado (ou não) o nome 'Salimo' antes de levar tiro, nada. Deve ser muito doloroso.

 

Mas, enfim... só de saber que o Salimo é um empresário já é um grande alívio. O pessoal operativo do SERNIC devia ver a entrevista dentro da sua viatura e com a chave na ignição para, logo depois do programa, sair para a casa do Salimo. A essas alturas a cela do Salimo já devia ter sido reservada e apetrechada. 

 

Neste momento, o bandido do Salimo está na sala onde está a decorrer a Assembleia Geral da Cê-Tê-A e deve estar a tremer. Para não nos deixar na ansiedade, o camarada Vuma podia muito bem acabar com esse suspense ainda hoje em plena reunião magna. É uma oportunidade soberba de se revelar a identidade do enigmático Salimo. Espero que ainda hoje, na Assembleia Geral, o Vuma vá ao Salimo e lhe pegue pelos colarinhos e diga 'eis aqui o Salimo!' para todo o mundo ouvir (e ver).

 

De resto, o deputado Agostinho Vuma assume claramente que a Cê-Tê-A é uma confederação criminosa constituída por gangues rivais. E, depois desta flagrante descoberta, ele ainda quer ser presidente dessa mesma associação de bandoleiros. Assim sendo, não sei se haverá melhor ocasião para o Governo acabar com essa agremiação de cangaceiros de fato e gravata antes que comecem a atirar contra os seus trabalhadores. 

 

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Berlim, 12 de Junho de 1987. Nesta data e em plena Guerra-Fria,  Ronald Reagan (1911-2004), então presidente norte-americano, fez um discurso histórico diante do portão de Brandemburgo, um símbolo na delimitação entre a  Berlim oriental (socialista/comunista)  e a Berlim ocidental (capitalista). Neste discurso, Ronald Reagan, dirigindo-se ao então líder da então União Soviética,  Mikhail Gorbatchev, disse: “Secretário Geral Gorbachev, se você busca a paz, se você busca a prosperidade para a União Soviética e a Europa Oriental, se você busca a liberalização, venha aqui para este portão. Sr. Gorbachev, abra este portão. Sr. Gorbachev, derrube este muro!”

 

Matola, 09 de Novembro de 2020. Trinta e um anos depois da queda do muro de Berlim e na data consta que Ronald Reagan ressuscitara pela terras matolenses.  Quem o viu conta que Reagan, diante da vedação da nova sede municipal, proferiu um discurso dirigido ao actual edil da Matola. No final disse: “Sr. edil da Matola,  se você busca a prosperidade para a Matola, se você busca a democracia participativa e apregoa a presidência sem paredes, a vedação da nova sede municipal é uma oportunidade ímpar para o demonstrar.  Sr. Edil da Matola, esta vedação não faz nenhum sentido.  Sr. edil da Matola, remove esta vedação!”

 

O discurso de Ronald Reagan de Junho de 87 é apontado como um dos principais catalisadores para a queda do muro de Berlim o que veio a ocorrer  dois anos mais tarde. Espero que o discurso de 09 de Novembro não leve tanto tempo a produzir resultados. E pelo o que me consta, para fechar, o edifício da nova sede municipal da Matola é, entre pares, o primeiro vedado a nível nacional. Nem a sede do  Município de Maputo, a capital do país, está vedado. E aqui o munícipe e o turismo agradecem.   

 

PS: O actual  aparato de obras no novo edifício do Município da Matola é um indicador de que está para breve a inauguração. Provavelmente, e pela proximidade da efeméride, será no dia 05 de Fevereiro de 2021, a data de celebração de mais um aniversário da Matola. Até lá é possível remover a vedação e alocá-la para escolas com problemas de segurança e  que certamente existam na Matola. Assim, na data de inauguração, inaugurasse-a também a vedação de escolas abrangidas. Também, e até lá, até que se podia fazer algumas alterações nos acessos e circulação pedonal em benefício de uma mobilidade mais segura. Mas isto é um outro texto. 

segunda-feira, 16 novembro 2020 06:29

O país das panelas

No país das panelas eram as panelas que definiam o 'status' do seu povo. Os que tinham panelas gigantes eram os mais temidos e respeitados. Depois haviam aqueles que tinham as panelas médias, que trabalhavam para os donos das panelas grandes. Haviam também os que tinham panelinhas, que andavam no desenrasque da vida. Por último haviam os sem-panela, esses eram apenas os enfeites demográficos e estatísticos. Na verdade os sem-panela eram o trunfo para os donos das panelas gigantes conseguirem mais panelões em forma de ajudas e donativos da comunidade internacional. 

 

Havia um adágio popular que dizia que 'no país das panelas quem tem panelão é rei'. Os reis, os proprietários das panelas gigantes eram os manda-chuva e não gostavam de críticas. Quem ousasse criticar ou pensar diferente era-lhe arrancada a panela, por mais pequena que fosse. Por isso, haviam milicianos que controlavam os gestos e as falas da população. Esses eram também conhecidos como 'lambe-panelas' ou 'lambe-botas' ou 'lambe-c*s'. Ou seja, esses eram 'lambe-qualquer-coisa'; para eles, o mais importante era lamber. Esses não tinham panelas próprias, não lhes interessava. Preferiam lamber caldeirões alheios a ter que cozinhar e lavar loiça. A preguiça de cozinhar era tanta que preferiram esconder repolho no lugar do cérebro.

 

Dizia eu que um dia o país das panelas viu-se mergulhada numa grande e devastadora confusão. Tudo começou quando um ano antes, Deus enviou um dilúvio sem precedentes à terra das panelas. O Idai, como era chamado, devastou áreas habitacionais e de cultivo destruindo tudo e todos. Fala-se de milhares de mortos e desaparecidos. Foi daí, então, que os reis emprestaram quatro das suas panelas gigantescas aos sem-panela que viviam num centro de acolhimento. Os caldeirões eram geridos pelo Excelentíssimo Senhor Administrador do distrito onde os sem-panela foram acolhidos. Os utensílios foram usados até os sem-panela retomarem a sua vida normal de não ter panela própria.

 

Reza a história que 600 dias depois, no tempo do confinamento compulsivo, dois panelões sumiram. Ou seja, não regressaram aos seus donos. As vasilhas foram procuradas, mas nunca achadas. Os reis enviaram ao administrador uma missiva de resgate das panelas grandes, e nada. O chefe do distrito nunca deu resposta, apenas o silêncio de confissão. Era praticamente uma declaração de guerra.

 

O SERNIC foi acionado para investigar o sumiço das caldeiras. O Parlamento foi forçado a criar uma comissão de inquérito para averiguar o caso. O comandante em chefe das Efe-Dê-Esse ordenou a retirada de todo o contingente militar que se encontrava em Cabo Delgado para fazer buscas na residência do administrador de Maringué, onde se supõe que as super-panelas estejam escondidas. O Chefe do Estado fazia discursos à nação a cada meio-dia. Uma comissão da Ó-Eme-Eme foi enviada para vasculhar as partes íntimas da primeira dama do distrito, ao mesmo tempo que os filhos do administrador estavam a ser interrogados na sede da Ó-Jota-Eme. 

 

Era o caos total. A SADC foi informada e milhares de soldados e especialistas em resgate de utensílios domésticos foram enviados. Uma força conjunta da União Africana já estava na despensa do administrador com ímanes. O Parlamento Europeu foi chamado a fazer o seu posicionamento. Os Capacetes Azuis da ONU já tinham montado as suas tendas no quintal do palácio distrital. A Ó-Eme-Esse falava da necessidade de observância de um intervalo mundial para a Covid-19 porque a preocupação flagrante e imperiosa eram as panelas gigantes do I-Ene-Gê-Cê. O Vaticano já tinha enviado o Bispo de Roma para benzer o quintal do palacete de Maringué.

 

Enquanto isso, os Estados Unidos acusavam a Rússia de ter desviado as caldeiras. A Rússia dizia que não iria mais aceitar essas acusações. O Conselho de Segurança da ONU falava de intromissão da Rússia e seus aliados em assuntos culinários alheios. 

 

Era tudo uma grande confusão. Um turbilhão. Não sei como isso acabou, só sei que o país continuou o mesmo... das panelas. Não era de surpreender: o camarada Administrador queria apenas se sentir rei.

 

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