Escrevi recentemente um artigo intitulado “A promoção da mediocridade – relações de poder e dependência na nossa sociedade”, onde abordara o escândalo das formandas de Matalane que foram abusadas sexualmente pelos instrutores, tendo algumas delas ficado grávidas. Um episódio que causou uma onda de indignação e consternação a vários níveis da sociedade e que envergonhara uma das instituições estatais de maior relevo e utilidade pública, que deve transpirar credibilidade e verticalidade.
Eis que mais um vergonhoso episodio abala e mancha toda uma instituição que se pretende ser de reeducação e preparação para a reinserção social de pessoas privadas da liberdade – falo do estabelecimento prisional de Ndlavela. Fruto de uma pesquisa aturada realizada pelo Centro de Integridade Pública (CIP), o vergonhoso escândalo do esquema de prostituição envolvendo presidiárias foi tornado público chocando toda uma sociedade. Na verdade estamos perante manifestações diferentes para uma mesma enfermidade – caracterizada a decadente moralidade que grassa a nossa sociedade, o sexismo exacerbado, as relações de super poder, e o sentido de impunidade.
Um negócio de exploração de mulheres para fins de prostituição, que choca com todos princípios atinentes a ética social e institucional e esfaqueia as entranhas da dignidade da pessoa humana em todas suas dimensões. Um acto praticado de forma sistemática, envolvendo altas patentes do estabelecimento prisional de Ndlavela e uma elite abastada que paga grandes somas em troca de serviços sexuais.
Aquando do escândalo de Matalane, vozes existiram que de forma peremptória acusaram as formandas de falta de postura deontológica, oferecimento e de assédio aos instrutores. Por outras palavras, as instruendas passaram de vítimas a prevaricadoras e, entre críticas, vilipêndios e pedido de punição exemplar, a sociedade não se esqueceu mas arquivou o caso.
E para Ndlavela, o que diremos? O que faremos e o que poderemos esperar? O que a sociedade fará para não deixar que este e mais casos se esfumem ao sabor da indiferença e das contra narrativas existentes?
É de todo inegável que estamos diante de um crime público. Ou melhor, de vários crimes públicos que se alimentam em cadeia. Legalmente esta estabelecido e previsto no número 3 do Artigo 61 da CRM, que nenhuma pena na República de Moçambique implica a cessação dos direitos fundamentais. Obviamente, haverá algumas restrições advindas da tipologia da própria pena, não sendo o caso nem de um nem de outro fenómeno aqui reflectido.
Uma breve leitura de estudos sobre género como ferramenta metodológica, política e social para problematizar e reflectir os processos que instituem e sustentam desigualdades sociais entre homens e mulheres, e autorizam formas de subordinação feminina, facilmente poderíamos somar vários indícios que sinalizam uma trajectória de reconhecimento, incorporação e legitimação crescentes dessa teorização. Quero com isto dizer que há indícios bastantes para afirmar a existência de uma legitimação silenciosa a nível doméstico, institucional e social de várias práticas atinentes a desvalorização, subordinação e inferiorização da mulher.
A história moderna e contemporânea testemunhou a partir da primeira metade do século XX a emergência de vários movimentos de mulheres e tipos de Feminismos que chamaram atenção à necessidade de se investir mais em produção de conhecimento e estudos com vista uma maior capacidade de denunciar e sobretudo compreender e explicar a subordinação social e a quase inexistência nos processos de participação política a que as mulheres estavam sujeitas até pelo menos o final do século transacto.
De entre várias acepções existentes, ressaltam duas diferentes e conflituantes: Por um lado, o género vem sendo usado como um conceito que se opõe ou se complementa a noção de sexo biológico e se refere aos comportamentos, atitudes ou traços de personalidade que a(s) cultura (s) inscreve (m) sobre corpos sexuados. Por outro lado, género tem sido usado, sobretudo pelas feministas para enfatizar que “a sociedade forma não só a personalidade e o comportamento, mas também as maneiras como o corpo {e portanto, também o sexo} aparece”. E nestas acepções, podemos ir buscar algumas explicações elementares para tentar pelo menos perceber a génese deste tipo de pensamento que conduz a uma acção negativa que é legal e socialmente inaceitável.
Quando me refiro a capacidade de denunciar, sobretudo compreender e explicar a subordinação social, quero me insurgir quanto a normalização do anormal, a estabilização do absurdo e a perpetuação de dogmas e medos que não nos edificam enquanto sociedade. Esta sucessão de fenómenos aparentemente dispersos, pode ser ainda mais comum e mais viva em muitas instituições e em vários quadrantes do nosso vasto país. É uma sucessão perigosa de um fenómeno indicativo daquilo a que muitas instituições se foram tornando ao longo do tempo e hoje encontram-se manchadas com nodoas de imoralidade.
Na verdade não se trata de um fenómeno de Matalane ou de Ndlavela apenas. É um fenómeno que tem raízes muito mais profundas e estes são apenas alguns dos resultados, e por sinal resultados da vergonha e da falta de pudor. Denominador comum nisto é que são as mulheres quem mais sofrem com isto – daí o nosso foco analítico nas relações de género e seus desdobramentos com o poder instituído. São as mulheres as maiores vítimas destas atrocidades e são elas que mais são vitimizadas em vez de protegidas (processo de normalização do anormal).
Numa análise profunda a estes e mais fenómenos vividos e sobejamente conhecidos por nós, facilmente se chega a conclusão que estes casos são na verdade o reflexo daquilo que somos como sociedade e da forma como olhamos e tratamos a mulher. É um sintoma grave que veemente e copiosamente vamos ignorando, pois nas relações de género nos foi ensinado que o homem é o mais poderoso e tem mais direitos que a mulher.
É premente fazer uma introspeção e iniciar uma reforma nas nossas casas, locais de trabalho e na sociedade. As instituições tanto estatais como privadas devem recuperar o normal funcionamento e a restauração do seu modus operandi e dos modelos de moralidade pública e privada, do respeito que outrora existiram. É preciso coragem para abordar, firmeza para desconstruir, integridade para actuar de forma imparcial, mão dura para punir os infractores, e valores éticos no seu mais alto nível para elevar a paz e harmonia social. Talvez assim poderemos resgatar o estado e suas instituições desta tremenda imundice e promiscuidade que envergonha a todos. Deste modo poderemos sonhar em edificar uma sociedade alicerçada em valores fundados no humanismo, na verticalidade e acima de tudo no respeito pelos direitos humanos.
Por Hélio Guiliche (Filósofo)