Nunca antes veio a minha casa pedir sal, ainda por cima a uma hora destas. Na tradição respeitada desde os tempos dos meus ascentrais, e seguida por nós também, não se pede sal ao vizinho quando a noite se materializa. Mas Nhathswa está aqui a pedir esse tempero imprescindível, desculpa vizinho, só agora é que me apercebi que o sal acabou, já com a panela ao lume, e não tenho outra alternativa porque as lojas estão fechadas.
Ora, se as lojas estão encerradas, e esta mulher já tem a panela ao lume, não tenho outra escolha que não seja desobedecer aos ditâmes dos antepassados, mesmo sabendo dos riscos que isso representa. Não sei o que poderá acontecer depois, mas também não posso recusar sal a alguém tão respeitado como Nhathswa. Ela sabe que a atitude que toma, de vir a minha casa numa hora proibida para as suas intenções, é desaconselhada. Eu também sei. Nenhum de nós sabe, porém, sobre quem vai cair o raio depois disto. Mas estamos cientes de que isso pode acontecer.
Eu disse para que ela fosse pessoalmente a cozinha tirar a quantidade desejada. No fundo invadia-me algum remorso, ao mesmo tempo sentia-me incapaz de dizer “não”. Também tinha a sensação de que a vinda de Nhathswa a minha casa transmitia outros sinais que eu não podia perceber. Aliás, já houve tempos em que, sempre que nos encontrássemos por aí, desfiavamos conversa entusiasmada. Porém, ultimamente ela distancia-se. A nossa saudação é fria, sobretudo do lado dela, e eu nunca me preocupei com isso porque sempre acreditei que a vida é feita de ciclos. E ela hoje vem pedir-me sal.
Enquanto Nhathswa ia a cozinha, eu mantive-me na varanda, de pé, pensando, sem olhar para ela, que isto é sinal de mau agoiro. Já ouvi histórias trágicas sobre o sal que não se pode pedir a noite, mesmo assim eu ainda prevarico conscientemente. Se calhar pela magnitude da personalidade desta mulher perante a qual ninguém resistiria. Qualquer ordem que ela emanasse, seria cegamente cumprida. Se calhar seja por isso que estou a cometer um erro grave que pode resultar em danos irreversíveis. Estou hipnotizado!
Nhathswa sai com o sal na mão direita feita concha. Passa por mim e não diz nada, como se estivesse a sair da cubata de um curandeiro onde não se despede, e eu não sou curandeiro. Nem sequer fechou o portão do quintal, que ela própria abriu. E tudo isso pode estar a transmitir-me uma mensagem que eu não consigo decifrar. Seja o que for, acho que o leite está derramado.
Durante a noite, dormindo, parecia que eu estava no paraíso. Via Nhathswa correndo na orla marítima, vestida de branco numa praia desconhecida, cheia da luz do luar. Ela acenava-me, e a mão dela brilhava. Parecia um anjo que ia para casa, pisando levemente a areia branca, e eu sentado também na areia ouvindo a música que as ondas tocavam para acompanhar Nhatswa, que agora caminha por sobre as ondas até desaparecer, como Jesus por entre as nuvens, depois de se despedir dos apóstolos em Galileia.
Quando despertei já era madrugada. Ouvi choros de tristeza e de lamentação na casa de Nhathswa, e pensei: já estava escrito!