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segunda-feira, 03 fevereiro 2025 16:31

Os “Naparama” no roteiro de um Estado historicamente frágil

Escrito por

TomasVieiraMario2608 1

Este Domingo, dia dois de Fevereiro, a Vila Municipal de Morrumbala, na província da Zambézia, viveu momentos de pânico e terror.  A vila, próxima da fronteira de Moçambique com o Malawi,  foi sacudida por tiroteios, envolvendo a Polícia e homens armados de origem desconhecida, que têm sido identificados por “Naparama”.

 

Num acto de indiscritível crueldade,  os Naparama decapitaram um oficial reservista do exército, tendo exposto a cabeca em local público, para todos verem, e disseminado  a seguir a horrorosa imagem através das Redes Socias da Internet. O acto chocou profundamente o país e atraiu a atenção da comunicação social, com comentários e análises em torno do fenómeno.

 

Até agora nada se sabe sobre as origens, reais motivações e estrutura organizativa deste grupo, integrado por homens amiúde aparecendo descalços e de tronco nu, e que  tem estado a arrastar-se há já alguns anos, pelas  provincias de Cabo Delgado, Nampula e Zambézia.

 

Já entre os finais da década de 1980 e início da década de 1990, no auge da guerra entre o Governo e a Renamo, fenómeno com nome e características semelhantes emergiu e provocou terror, a partir, igualmente da Provincia da Zambézia, tendo-se alastrado até Nampula e Cabo Delgado.  Nessa altura, o grupo aparecia a combater a Renamo, tornando-se por isso, tacitamente aliado  do Governo.

 

Nos últimos dois anos, a (re) aparição deste tipo de milícias, nomeadamente a partir da Provincia de Cabo Delgado, com intervenções no combate aos grupos terroristas na região,  foi de novo acarinhada pelo Governo, como mais uma forma de “reposta comunitária”à insurgência jihadista. Porém, muitos analistas reprovaram imediatamente esta atitude do Governo, sobretudo a partir do inicidente em que, em Março de 2024, um grupo de Naparama matou três agentes de educação cívica eleitoral, ao serviço do Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE), por os ter confundido com terroristas, no distrito de Chiure.

 

A história repete-se

Há muita semelhança entre as circunstâncias da emergência do fenómeno Naparama, na década de 1980 e na década de 2020, portanto cerca de 40 anos depois.  Os dois periodos são caracterizados por alastramento de violência no meio rural, com origem em diferentes fontes e motivações. Além das fontes do Estado (exercito e diferentes ramos da Polícia), existe violência gerada por grupos terroristas e por forças armadas estrangeiras.

 

Quando os Naparama ganham grande visibilidade na Provincia de Cabo Delgado, havia na região pelo menos cinco fontes de violência armada: o exercito nacional; as forçcas do Rwanda; as forças da SADC; os grupos terroristas e a “força local” integrada por veteranos da luta armada de libertação nacional.  Mais frequentemente do que o contrário, a forma de actuação destes sectores militares  ou paramilitares, incluindo a Polícia, transmitia terror junto das populações, que se viam cercadas de fogo por todos os lados.

 

Fora do contexto de combate ao terrorismo na  Provincia de Cabo Delgado, o ambiente de violência, sobretudo nas provincias da Zambezia e Nampula, tem sido sistematicamente vivido, não só em períodos eleitorais, mas também em torno de inúmeros projectos de extracção de recursois naturais, como areias pesadas, rubi; grafite e outros, cuja implantação tem ocorrido na base de muita violência sobre as comunidades circunvizinhas.

 

 A violência eleitoral nestas provincias, com vastas regiões votando sistematicamente na oposição, tem sido endémica, e as manifestações pós-eleitorais de 2024 sinalizaram apenas o período mais sangrento de todos os tempos, com um saldo nacional de mais de 300 mortos e várias centenas de feridas e de detidos.

 

Aparentemente, a  actuação violenta e associada de todas aqueles sectores armadas e da Polícia, tendo como alvos comuns as populações, cria no seio destas um sentimento, numa primeira fase,de abandono pelo Estado, e numa segunda fase, de vítimas  próprio Estado, impelindo-as assim a criar mecanismos de autodefesa. Foi exactamente no mesmo contexto que emergiram os Naparama da década de 1980.

 

Debatendo “Naparama” em Roma

Um dos momentos políticos intensos em que o fenómeno Naparama foi formalmente debatido, foi em sede das conversações de paz para por cobro à guerra entre o Governo e a Renamo, que como se sabe decorrerem de Junho de 1990 a Outubro de 1992.

 

Na ocasião,  a  Renamo acusou o Governo de ter fomentado a guerra, com o envolvimento de exércitos estrangeiros (do Zimbabwe e da Tanzania); de “exercitos privados” e de milicianos, como os Naparama.

 

Para além das tropas do Zimbabwe, a Renamo tinha em mente “exercitos privados”  que haviam sido instalados para proteger empreendimentos económicos, como os projectos agrícolas da LOMACO, uma sucursal da  multinacional britânica Lonhro (ja extinta) nas províncias de Manica, Zambezia, Gaza e Maputo.  A LOMACO, com a devida autorização do governo, mantinha exércitos exclusivos constituídos por tropas moçambicanas, mas treinados e comandados por mercenários britanicos, da empresa DSL.

 

No seu livro “O Cheiro da Chuva” de 2014, o Administrador da Lonhro em Mocambique nesses anos de guerra, John Hewlett, conta que só no projecto agricola de Metuchira, em Manica – muitas vezes atacado pela Renamo- estavam acampados 400 homens, e as despesas de segurança da empresa em todo o país atingiram, pelos finais da década de 1980, a factura anual de um milhão de dólares.  Mas a Renamo também fazia “negócio” com a Lonhro, da qual recebia “avenças” em dólares, para não atacar os projectos da empresa.

 

Já relativamente aos Naparama, tratava-se de grupos de camponeses que se tinham organizado para a sua autodefesa dos ataques da Renamo, primeiro na provincia da Zambezia e mais tarde alargando-se para Nampula e Cabo Delgado. Liderava-os um individuo de nome Manuel Antonio, que alegava ser dotado de poderes mágicos, tais  que o tornavam invulnerável ao fogo das balas, ele que havia “ressuscitado”  seis anos após a sua morte, vitima de malaria, aos 27anos de idade.

 

Entre os finais da decada de 1980 e inicio de 1990, os Naparama começaram por realizar acções de auto-defesa  no distrito do Alto Molocué,  na Zambezia,  tendo progredido com ofensivas, através das quais logravam desalojar alguns agrupamentos da Renamo.

 

Segundo noticias da época, estes milicianos, armados apenas de lanças e arcos, mas movimentando-se de uma forma ostensiva, com o toque de apitos, conseguiram recapturar à Renamo cerca de duas dúzias de povoações e bases, correspondendo a uma área habitada por cerca de 200.000 pessoas.

 

No auge do seu poder, em meados de 1991, Manuel António contaria com um núcleo combatente rondando os 3.000 guerreiros, além de mais de uma dezena de milhar de milícias que operavam em defesa local desde o norte e leste da província da Zambézia, até à província de Nampula, e estendendo-se mesmo até ao sul da província de Cabo Delgado, todas regiões de Makhuwa.

 

Quarenta anos depois, fruto das mesmsas causas, a  contínua violência,  em particular de violência que tem como principal fonte o próprio Estado, o fenómeno Naparama volta a aterrorizar vastas regiões de Moçambique, tendo crescido com o beneplácido público do Governo. 

 

Entretanto, nas suas investidas mais recentes, nas provincias de Nampula e Zambezia, este antigo aliado do Governo tem tido como seus alvos preferidos, edificios do Estado e membros das forças de defesa e segurança – sinalizando que eles ja encontram no proprio Estado um inimigo, como o ilustra o acto bárbaro de decapitação de um oficial das Forças Armadas reformado , na Vila Municipal de Morrumbala, no passado dia 2 de Fevereiro.

 

A violência, tão profundamente inoculada no ADN da sociedade moçambicana, e que historicamente tem como principal fonte o próprio Estado, resultando dela uma impressionante banalização da vida humana, é indubitavelmente um dos mais pungentes problemas que urge abordar, cavando fundo sobre as suas causas, numa perspectiva mais ampla, a de refundação do Estado Moçambicano.

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