“O melhor presente que uma sociedade pode dar a si mesma é a boa educação dos seus filhos.” (Cícero, 106–43 a.C., Estadista, Orador e Escritor Romano)
Era uma Sexta-feira, manhã alegre e cálida de 03 de Fevereiro de 2017, um dia banhado de enorme desfile dos raios solares. Os Moçambicanos preparavam-se para celebrar o Dia dos Heróis, alusivo à heroicidade prematura de Eduardo Chivambo Mondlane, consequência de um assassinato encomendado, que até hoje se reveste de ocultismo, ao Primeiro Presidente da Frente de Libertação de Moçambique, a então FRELIMO de todos.
O Jota, que naquele dia afogueado completava mais um ano de vida, estava ansioso para realizar as suas actividades costumeiras. Todavia, para a surpresa dos amantes das celebrações festivas, as árvores eram vigorosamente sacudidas por ventos moderados, que sopravam de todas as direcções e latitudes. Era o auspício de um dia que banharia a terra de chuva.
A dona Adélia, a mãe do Jota, estava toda preocupada com os seus negócios domésticos. Por isso, como sempre, agitava-se de um lado para o outro, procurando encontrar alternativas para resolver as responsabilidades familiares que pesavam sobre os seus já cansados ombros de mãe moçambicana exemplar, culturalmente ensinada a cuidar de casa e dos filhos.
Por sua vez, o tio Manuelinho havia chegado de uma viagem. Vinha da cidade das bicicletas, que guarda os bons sinais da entrada triunfal dos colonialistas portugueses, o pequeno Brasil de Moçambique, a cidade natal do jovem Contratado para ser Presidente do Município.
O tio Manuelinho havia decidido passar o feriado dos Heróis Moçambicanos e o final de semana prolongado em casa da sua irmã de coração. No pátio daquela casa típica dos Maputenses, ele conversava sobre diversos assuntos com o sobrinho, o Jota, ora Jornalista-Estagiário do único Laboratório de Multimídia instalado na Cidade das Acácias – Mídia Lab[1] – o qual produziu jovens brilhantes dedicados à comunicação.
Tratava-se de uma conversa cheia de alegrias e tristezas, de boas e más notícias, um verdadeiro arco-íris comunicacional. A conversação de tio e sobrinho fluía como o escorregar turbulento das correntes de água num dia de chuvas torrenciais.
Entretanto, na noite anterior, o Jota teve um sonho, que ficou gravado em sua memória, em forma de um diálogo que, em seguida, rabiscou, enquanto dialogava com o seu tio em relação à situação da nossa Pérola do Índico, Moçambique.
Diz respeito a uma conversa que tivera com a sua mãe em relação ao que estava a acontecer em sua casa nacional. Era um sonho repleto de realidades, cimentadas na vida dos cidadãos, as quais contrariavam as celebrações do jubilante Dia dos Heróis.
― Mãe, eu tenho uma pergunta. Posso fazer? ― Interrogou o Jota, preventivo.
A mãe, desassossegada, e com um olhar desatento transparecendo cansaço, cautelosamente, interpelou a voz do filho, a qual lhe cortava o sossego.
― Fala, meu herdeiro de qualidade. Afinal, o que se passa contigo? Vejo que, ultimamente, andas muito inquieto.
― Mamã, será que o nosso Pai nos ama de verdade? Será que ele pensa em nós, nas nossas irmãs, que choram pelos castigos dos guardas prisionais deformadores, que pranteiam pelas chamas e agressões de todos os lados, que lamentam pelas dificuldades que enfrentamos para construir o nosso humilde lar e por tantas outras coisas que acontecem aqui em nossa casa? ― Questionou, profundamente, o Jornalista-Estagiário.
A mãe, entusiasta, como de costume, suspirou bem fundo e retornou ao filho da sua alma atormentada. Soltando palavras escoltadas de bastante atenção e cautela, interrogou:
― Porquê, meu filho? O que se passa contigo, Jota? O que está a acontecer de verdade, meu filho? ― Triquestionou a mãe do Jornalista-Estagiário.
E o filho, acumulando uma média de audácia nos seus apavorados pulmões, que produziam um conjunto de ar ofegante, fez atravessar, passando pela laringe e faringe, dos seus largos pulmões livres do fumo das drogas, numa mistura das cordas vocais, palavras e expressões frásicas compostas de sons altamente vozeados e silábicos, fonética e fonologicamente bem organizados, e asseverou:
― Mamã, mamã… Porque o Pai é Bombeiro e a nossa casa está em chamas, a arder de todos os lados, porém, parece que ele nem sequer nos quer socorrer… Isso é normal, mamã? É normal, isso? ― Questionou o sobrinho do tio Manuelinho.
― Eish, mwananga, mathala iwe[2]. Sempre que falas, só abalas! Não faças isso, meu filho! Antes de falar, preste muita atenção, meu filho. Preste atenção! ― Aconselhou, com amor misturado de temor, a dona Adélia.
No entanto, ela, como que tivesse entendido a plenitude da mensagem escondida nas entrelinhas da pergunta do filho, continuou, toda efusiva:
― Mwanawe, una passiwa xikonde iwe[3]! O teu Pai está sempre atento a este tipo de comentário e conversa. Ele tem muitos ouvidos… Até parece um Superman[4]! ― Disse a dona Adélia, e, em seguida, acrescentou:
― Ele sempre ouve comentários de todos sobre o funcionamento da nossa casa, principalmente quando não são a favor da sua liderança. Ele ainda não quer aceitar que isso é para o bem de todos nós. Pelo contrário, ele pensa que lhes queremos mal. ― Sublinhou, cautelosamente, a irmã do tio Manuelinho. Após suspirar por alguns segundos, tentando ruminar os pensamentos que escorregavam em sua mente, adicionou mais conteúdos à sua fala:
― Talvez sejam os seus muitos ouvidos que transmitem mal estas mensagens… Talvez sejam eles que distorcem os nossos comentários para ganhar mais confiança e credibilidade, bem como para mostrar que, realmente, estão a trabalhar. Isso já se normalizou na nossa casa, filho…. Infelizmente! É o pão de cada dia produzido pelos lambe-botas da Pérola do Índico!
O filho, imediatamente, alinhou as suas palavras com o discurso que a sua já cansada mãe acabara de produzir. Quase desesperado, sem saber onde buscar ajuda, como que apanhado de surpresa, expôs abertamente:
― Ahhh, yá! Só posso sair desta casa… Não quero morrer afogado, muito menos ter o meu corpo totalmente incinerado, mamã. Se eu continuar aqui, com estes meus comentários, todos os meus sonhos serão arquitectamente carbonizados e tornar-se-ão em cinzas. Vão incendiá-los ― como daqui a três anos, na noite de Domingo do dia 23 de Agosto de 2020, farão ao Semanário Canal de Moçambique[5]. Há muitas coisas que não posso divulgar, nem suportar, mamã. ― Revelou, profeticamente, o Jornalista-Estagiário, que se mostrava visivelmente emocionado, e aditou:
― Não posso ver, em silêncio, as minhas irmãs a serem vendidas na cadeia, a nossa casa a queimar no telhado, lá no Cabo do Norte, onde lutámos pela nossa libertação, e a família toda impedida de construir, porque alguns senhores decidiram e não querem que nós, os mais desfavorecidos, tenhamos onde reclinar a cabeça. ― Referiu o jovem apaixonado pela comunicação multimídia e pelas almas dispersas que precisam de um salvador e apascentador. E aproveitou para, de forma profética, fazer algumas revelações.
― Mamã, sabes que, daqui a três anos, alguns madalas[6] do mercado de cimento tentarão denunciar um animal em vias de extinção representado em forma de uma empresa produtora e vendedora de cimento, a Dugongo? Espere e verá!
Vendo que o filho se assustara e até lhe tremiam as bochechas quando falava, transparecendo o temor que ecoava do fundo das suas entranhas, e o medo de ver o seu futuro prematuramente abortado, como acontece com as meninas que são entregues ao casamento antes de o astro solar completar os seus 18 movimentos giratórios, a mãe do Jota atravessou a comunicação do filho e, despejando pânico, afirmou:
― Filho, fique comigo. Vamos suportar as chamas até que um dos nossos vizinhos nos venha ajudar… Paciência, Mwananga[7]! Não te precipites tanto. Vamos aguardar até que surja alguém tão corajoso para nos ajudar! Tu não és herói, filho!
Após esse intercalar da sua mãe, uma medida de poucas palavras, carregadas de conteúdo semântico exibido pela sensibilidade da sua voz, associadas às gotas salgadas que espreitavam pela janela do seu rosto cheios de experiências tristes, colocando a mão sobre a cabeça, procurando vocábulos para melhor se expressar, o Jornalista-Estagiário, como um Activista lúcido, contestou com todas as suas forças:
― Shiii, mamã… Já não te reconheço mais. É tudo o que me tens a dizer? Queres mesmo que vendamos o nosso raro carácter a preço de banana, por temer quem nos deveria proteger e lutar pelo nosso bem-estar? É isso mesmo, mamã? Sério?!
― Tens alguma ideia melhor, meu filho? Não vês que não temos saída? ― Controverteu a mãe, toda preocupada.
Ela tremia tanto que abanava a única capulana que lhe concedia a dignidade de uma mulher emancipada. A penúria, todavia, ao de longe, sem recurso a qualquer tipo de microscópio, denunciava-se na sua aparência esbofeteadamente sofrida.
― Um momento, mamã. Deixa-me consultar os meus irmãos, amigos, colegas e vizinhos. Talvez alguém tenha alguma solução ou alternativa que seja melhor para nós. Talvez, mamã! Talvez! ― Interveio o Jota, com esperança brotando adentro.
Após ter pronunciado aquelas palavras, o filho da dona Adélia deu algumas voltas no pátio da casa, que há tempo solicitava por Primeiros Socorros. Os Bombeiros viram o incêndio, mas, quando chegaram, não tinham água para apagar as chamas. Até tentaram! Os Instrutores de Matalane e guardas de Ndlavela sabiam das suas responsabilidades, porém, a sua ganância exercia mais autoridade sobre as suas consciências.
Além disso, os políticos tinham e têm a noção da nossa pobreza, contudo, preferiam defender as suas próprias causas a lutar pelo bem comum e por aqueles que os elegeram. Outros líderes, por sua vez, sabem o que é necessário fazer para resolver os vários problemas que sufocam o povo. No entanto, confiaram esta responsabilidade aos renomados Parceiros de Cooperação e às organizações externas, quer privadas quer nacionais.
A Sociedade Civil, por seu turno, grande parte desta, mostrava-se e continua a mostrar-se apática ao que realmente acontecia. Uma parte dela, geralmente, luta, com vigor e todas as suas garras e forças, por sonhos e necessidades particulares, e é, infelizmente, especialista nisso. Enfim, era muito ingrediente para uma única e simples refeição de conversa de mãe e filho!
E os ponteiros do relógio não paravam de girar. Passados alguns minutos, o filho, o Jornalista-Estagiário, bradou altíssimo:
― Por favor, alguém para nos ajudar… Alguém aí nos pode ajudar, please[8]? Está a ser difícil continuar a viver e, inclusive, respirar nesta ilha. Os nossos sonhos estão a ser, aos poucos, gradual e malandramente, sem travões, confiscados!
De repente, um par de silêncio e interrogações invadiu o cenário e pátio onde ambos conversavam. Era visível aquela presença friorenta e intimidatória que alcançou toda a vizinhança, incluindo aqueles que moravam em lugares mais distantes e recônditos em relação àquela velha casa negligenciada de alvenaria amarfanhada num pátio de Maputo.
Surpreendentemente, ninguém ousou responder ao pedido de ajuda que ecoava dos quintais de quase todos os bairros suburbanos, apesar de, literalmente, todos conseguirem ouvir. No entanto, algum tempo depois, as chamas invadiram outros pátios vizinhos, os danos alastraram-se e afectaram muitos bolsos, muitas famílias e escorregavam rumo ao futuro.
De seguida, algo incrível aconteceu. Agora, quase TODOS julgavam ter respostas aos vários pedidos de socorro. Ou melhor, quase todos tinham algo a dizer sobre o assunto, pelo que vozes emanavam de todos os pontos cardeais da crosta terreste moçambicana, de latitudes, altitudes e longitudes diversas. Quase todos tinham a solução para os problemas.
Posto isso, o Jota, ao deparar-se com aquela realidade, sem reservas e molhos de hipocrisia, soltou a sua voz, espantado:
― Yá! Rendi… Agora, somos TODOS génios! Só porque as chamas também os afectaram…. Será que precisava mesmo de chegarmos a este ponto? Será?! Haja MUDANÇA!
A mãe, tentando socorrer-se da fala do filho, declarou:
― Mwananga, mwananga[9]. É melhor cooperares com o silêncio. Caluda! Eu já sepultei muitos filhos que tentaram agir como tu. Como mãe, aconselho-te a seres apenas um mero espectador, telespectador ou ouvinte… Não faças perguntas. ― Disse a dona Adélia, que, na sequência, acrescentou:
― Até porque ainda não és Jornalista, meu filho. Aliás, até os Jornalistas formados, renomados e outros mais novos na área, já se cansaram de perguntar e receber cheques em branco como respostas às suas várias e incansáveis reclamações e observações. Outros Jornalistas, até, já levaram sovas por causa de abrirem as suas bocas acima da medida politicamente recomendada. E tu, meu filho, queres mesmo seguir este caminho…. É isso? Eu não te quero perder, antes do romper da lua nova, meu filho!!! ― Exclamou a dona Adélia, enquanto tremia e respirava pavor.
O filho, boquiaberto pela reacção da mãe, com todas as suas forças, borbulhando por dentro, retorquiu:
― Mamã… Se assim for, já me perdeste há muito tempo. Acorda, mamã. Acorda, senão vamos todos perecer aqui… ― Confessou o Jornalista-Estagiário. Após uma pausa de silêncio, matematicamente calculada, ele acrescentou:
― Nesta casa, aliás, nesta ilha, há vendedores de sonhos, mamã! E eu não quero ser mais uma vítima de sonhos confiscados! Não é por isso que os meus irmãos, quando vão estudar no exterior, preferem ficar por lá e usar o conhecimento que adquiriram para robustecer mais ainda aquelas terras estrangeiras? E nós vamos, continuamente, perdendo quadros?
Tendo terminado de proferir aquelas palavras, uma voz desconhecida, que vinha do lado exterior da casa, bradou:
― Você aí, muito cuidado! É melhor calar, está bem?
Assustado, de repente, o Jota abriu os olhos. Afinal, tratava-se de um sonho. E ele despertou, sem saber o que fazer. Até tentou procurar alguém que lhe ajudasse a desvendar os significados daquele sonho, mas não sabia em quem confiar.
Após contar o sonho ao tio Manuelinho, este vociferou para todos os cantos do quintal da casa da sua irmã e perguntou:
― Alguém aí nos pode ajudar? ― Logo depois, devolveu a sua voz ao abrigo do silêncio, aguardando por uma resposta de qualquer cidadão voluntário, nacional ou internacional.
Até hoje, a casa ainda é uma ilha de sonhos confiscados!
Autor: Janato Janato
Extraído do livro “Contratado para ser Presidente
[1] É uma Organização Não-Governamental (ONG) moçambicana que trabalha para boa governação e transparência, através do desenvolvimento e fortalecimento do Sector da Mídia, com capacitação intensiva, aprendizagem situacional e oportunidades práticas para Jornalistas emergentes; orientação, treinamento e educação continuada para Jornalistas experientes; adopção de novas tecnologias digitais, plataformas multimídia e estratégias de engajamento online para negócios de Mídia, e no desenvolvimento de operações sustentáveis e modelos de negócios para proprietários do Sector.
[2] Eish, meu filho, cala-te – Traduzido do Sena, língua falada no Centro de Moçambique (particularmente nas Províncias de Sofala, Zambézia e Tete).
[3] Meu filho, vais receber um golpe na cabeça – Traduzido da língua Sena.
[4] Super-homem – Traduzido do Inglês.
[5] Na noite de Domingo, do dia 23 de Agosto de 2020, indivíduos desconhecidos arrombaram as instalações onde funciona o jornal Canal de Moçambique, na Avenida Maguiguana, n.º 1041, na Cidade de Maputo, e introduziram dois bidões de combustível de 20 litros cada, para depois atearem fogo, antes de abandonarem o local. O fogo destruiu completamente a redacção, o arquivo, mobiliário e todo o equipamento utilizado para a produção do Canal, colocando em causa a produção da Edição do dia 26 de Agosto de 2020 do jornal.
[6] Palavra popular utilizada para se referir a “pessoas mais velhas, avançadas em idade ou idosos”.
[7] Meu filho – Traduzido da língua Sena.
[8] Por favor ou por obséquio – Traduzido do Inglês.
[9] Meu filho, meu filho – Traduzido da língua Sena.