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Ricardo Santos

Ricardo Santos

quarta-feira, 18 outubro 2023 10:52

Palestina

Por vezes  é necessário recorrer a linguagem de miúdos para explicar as enormes confusões em que os adultos se metem e nunca mais conseguem resolver.

 

Imagine que você fosse dono de um enorme terreno, bem delimitado, herdado dos seus antepassados. Séculos depois surge-lhe a porta um casal de andrajosos, numa carroça puxada por uma mula magricela de aspecto doentio e um monte de petizes pendurados, que nunca calçou sapatos na vida, mal-cheirosos e ainda mais magros que o estoico animal.

 

Para a sua surpresa, o patriarca da turba faz-lhe um pedido:

 

- Senhor, venda-me uma pequena parcela das suas terras, por favor, pois não tenho onde ir. Pago-lhe com o meu trabalho. Vou-lhe limpar e cuidar de todo o seu terreno, quando não estiver cá….

 

Você venderia? Certamente que o faria. Em nome do Profeta. Por descargo de consciência. Ou por racionalidade económica, no mínimo.

 

Em pouco tempo, cumprindo com a palavra, os seus novos paupérrimos vizinhos, limpam o terreno e transformam as pequenas parcelas vendidas por si em belos pomares e jardins. Mas há um problema! Mais gente, vinda sabe-se lá de onde, se arregimenta para habitá-las. E o seu vizinho, que nunca se esqueceu da sua própria desgraça, bate-lhe novamente a porta, para lhe pedir outra mini-parcela do seu – ainda – vasto e hereditário património fundiário.

 

Você hesita. Palavra, puxa palavra… mas a lábia do vizinho e o poder do vil metal, que ele já acumulou, prevalecem. E você, armado em chico-esperto, pensa que conseguiu uma promessa de gratidão eterna e ter dado uma pernada aqueles pacóvios forasteiros. Afinal você também tem família. E aspirações em ser rico. E nada mais fácil do que lucrar sem esforço com o seu pecúlio.

 

Mas a veia empreendedora faz com que a família alargada da sua vizinhança junte aos pomares e jardins, um condomínio privado, escola, clínica e até um casino. Você cai para o lado quando começa a ver também bólides de alta cilindrada a estacionarem por debaixo das suas barbas. Mal tem tempo para se recompor e já os seus vizinhos batem-lhe novamente a porta com uma proposta irrecusável. Ficar com metade do seu terreno – que nunca foi usado por si – hereditário. Por uma pipa de massa. Afinal, com um casino no quintal, dinheiro é coisa que já não falta na vizinhança. Ai você, pela primeira vez assustado, dá um salto e diz:

 

- Nem pensar vizinho! Eu também quero construir aqui um condomínio igual ao seu! Com jardim e tudo…

 

E ele responde calmamente:

 

- Tudo bem, mas você tem dinheiro para isso? Eu posso emprestar, em nome dos velhos tempos, mas em troca…fico com metade do terreno como garantia, até me reembolsar o dinheiro, como o seu trabalho naturalmente, tal como um dia eu lhe paguei…

 

Encurralado e indignado, você fecha-se em copas e corta as relações com o vizinho. Mas ele insiste, por telefone. E até por carta. Você ignora-o e faz saber por portas e travessas, que aquela terra é inegociável. Desde o tempo dos seus antepassados. Os primeiros habitantes das redondezas.

 

Seu vizinho, homem prático e de muitas artes, não faz mais nada. Vai ao Município e apresenta uma denúncia contra si por estar em posse de um imenso terreno. Não fazer nada com ele. Não contribuir para o bem-estar das comunidades. Por ter atitudes feudais com a vizinhança. Enfim, um anacronismo rendeiro em plena era da globalização. E junta à reclamação,  o parecer de um conhecido escritório de advogados com badaladas conexões ambientais. Em pouco tempo, o seu terreno passou a ser reserva do Estado. Do Estado! Pois já nem o Município tem a estaleca para perceber a importância e a dimensão daquele assunto. E vai disto, em extraordinária sessão parlamentar, o Estado expropria-lhe a metade do terreno já requerida pelo belicoso vizinho, cuja família não pára de engrossar o efectivo em progressão geométrica. E é então que chega o momento fatal.

 

O seu vizinho decide que tem de ficar com o terreno todo. Mas desta feita, não lhe pede licença. Invade-o simplesmente com recurso a buldózeres e cachicos armados até aos dentes e mandado judicial. Dá-lhe 24 horas para se pôr a mexer dali. Enraivecido, você grita. Esbraceja. E apedreja os cachicos. Mas apanha com uma valente castanhada dos fiéis plutocratas da vizinhança:

 

- Ai. Ai. Que já morri!  Maldita hora em que aceitei acolher este ingrato como vizinho. Vejam a minha desgraça agora. Debaixo da ponte. Pobre. E mal tendo o que comer… 

 

Enquanto isso, o seu vizinho é agora o seu dono. Você vota quando ele quiser. Você trabalha quando ele quiser. Você dança quando ele quiser. Você até f… quando ele quiser com a mais belas strippers do casino, quando elas despegam pela alta madrugada. Na desgraça colectiva que vos une todos e faz a opulência crescente do todo poderoso vizinho - Sr. Israel! - os servos do sistema são como gatos pardos. A noite todos se reconhecem como iguais, quando o assunto é não ser um Estado soberano e independente. O resto é conversa para encher chouriços kosher em Nova Iorque, Londres ou Bruxelas. Disse.

Ricardo Santos

Especialista em Segurança da Informação

Maputo - Moçambique 

segunda-feira, 28 novembro 2022 09:49

Tortuosos Caminhos da Paz na Ucrânia

No décimo mês de confrontação no Podzol ucraniano, com a União Europeia totalmente de rastos para manter a Ucrânia em pé de igualdade no campo de batalha e a Rússia encurralada politica e economicamente, os credores da guerra já têm assegurado o retorno da sua ajuda financeira. Seja com contratos de lend-leasing, ou pacotes de sanções feitos à medida da inutilidade do papel da ONU e suas agências especializadas, agora é tempo de se discutir a gestão dos proventos da guerra, no break-even criado pelos recursos financeiros congelados da Federação Russa.

 

Cai por terra o argumentum ad nauseam Europeu da ameaça do totalitarismo ao seu estilo de vida impoluto, para se livrar do espartilho energético russo e do colete de forças de mão-de-obra chinesa, quando se assiste ao ocidente em corrupio pelo mundo afora, assinando tratados com estados não menos totalitários e corruptos, em condições financeiras pouco favoráveis e risco sistémico, encarecendo os custos das suas cadeias de produção.

 

Joe Biden tem contudo muitos motivos para sorrir e acreditar na reviravolta económica dos EUA face ao ameaçador papão chinês que lhe ameaçava tirar o almoço. Conseguiu numa assentada tudo o que queria. Derrotou os adversários políticos internos e externos. Arrumou com a rebeldia económica da Alemanha e da França por muitos anos. Transformou a Grã-Bretanha num novo Estado Associado dos EUA. Vergou o bicentenário falso moralismo nórdico com a teoria do Medo. E – o mais importante - convenceu o seu eleitorado das intercalares que a velha fórmula da política da canhoeira está viva e recomenda-se, quando se sabe esperar e se tem como aliado idiotas úteis endinheirados, instantaneamente paridos pela Quarta Revolução Industrial.

 

Sem surpresas, produziu-se uma imediata inflexão no habitual tom exaltado do comediante de Kiev. Fala-se agora de paz. Mas pouco se sabe ainda o preço que todos estaremos dispostos a pagar por ela. Porque os termos actuais dos credores da guerra, não encontram ainda o eco do lado de Moscovo. E com isso, as hipóteses de descarrilamento das boas intenções podem se confirmar depois do Inverno, com outros actores e consequências imprevisíveis.

 

O ponto de partida é saber se os EUA estarão dispostos agora a abdicar da doutrina Wolfowitz, que faz da  Rússia um inimigo eterno que deve ser esmagado económica e politicamente pelo ocidente, no limbo de uma confrontação nuclear. A questão ucraniana mostra que a corda já esticou até ao limite aceitável pelas partes, logo os tortuosos caminhos para paz devem ser pensados com a cabeça fria.

 

Em primeiro lugar, há que discutir os termos de um Tratado de Paz com garantias geopolíticas suficientes para acalmar os receios da Rússia. Parece óbvio que a aproximação geográfica da NATO ao perímetro de defesa russo se adensou com o conflito ucraniano, tanto no Báltico, como no Mar Negro, não ajudando a resolução do conflito por meios pacíficos. Sendo assim, nada mais resta a Moscovo do que se preparar para uma longa confrontação militar na Ucrânia, que a maioria dos países da NATO não deseja prolongar.

 

Por isso, o estatuto neutral da Ucrânia, similar ao que alguns países nórdicos então abraçaram é o ponto de partida para qualquer negociação, nem que isso tenha de ser equilibrado com a devolução dos territórios ocupados por Moscovo ao arrepio dos tratados internacionais que, apesar tudo, ainda são a única bússola orientadora que nos resta no meio da tormenta. Esta necessária cedência russa daria vazão a posição ucraniana em ver preservada sua integridade territorial nos limites herdados da ex-URSS em 1991.

 

No entanto, a resolução do problema tem de ser encontrada com paciência e de maneira construtiva. Existem casos precedentes no Direito Internacional que podem servir de base para um putativo acordo conducente a paz, por exemplo,  atribuir a Crimeia um estatuto que resvale entre Guantánamo e Hong-Kong.

 

O caso Guantánamo é aqui trazido à colação para relembrar como a Emenda Platt levou um estado soberano latino-americano enfraquecido pela ajuda internacional, hipotecar a sua independência politica em favor de interesses geopolíticos dos EUA para se libertar do jugo da potência colonizadora europeia, com um contrato de arrendamento vitalício de uma base militar. E a resolução do problema de Hong-Kong parece ser útil para se entender como uma futura superpotência, então derrotada militarmente por uma potência colonizadora global, concorda em adiar por século e meio a discussão da sua integridade territorial até ao momento em que a geopolítica estivesse alinhada com a sua economia.

 

Por outras palavras, a devolução da Crimeia pela Rússia antecedida de um tratado de aluguer das instalações militares estratégicas que Moscovo actualmente mantém naquele território por 50 anos, tal como hoje se verifica no cosmódromo de Baikonur no Cazaquistão, é uma boa hipótese de trabalho que as partes poderiam explorar, pois daria tempo suficiente para Moscovo refazer sua politica de defesa militar em relação a NATO e a maturidade politica para a Ucrânia se movimentar no concerto das nações.

 

Em segundo lugar, temos a questão do Donbass e outros territórios recentemente incorporados na Federação Russa, onde também é legitima a pretensão ucraniana em reavê-los sem restrições, mas não menos é o anseio dos seus habitantes nativos em preservar tradições religiosas, culturais e linguísticas seculares. E aqui a ONU deveria ter tido um papel mais actuante e não servir de mera caixa de ressonância dos interesses geopolíticos do ocidente. Sem querer falar de possível genocídio pelo volume de morte e destruição que se assiste desde 2014, é incompreensível que às autoridades de Kiev seja dada carta branca para expurgar tudo que seja russo dentro e fora das suas fronteiras, abrindo a caixa de Pandora no desporto, cultura e até na ciência. Os fait-divers da qualificação europeia e a tentativa de substituição do Irão pela Ucrânia no Mundial de Futebol no Qatar, são exemplos refinados desta hipocrisia politica.

 

Esta postura xenófoba de Kiev não tem paralelo senão nos anais do Holocausto Judeu ou nas famigeradas bulas papais do tempo da Inquisição. Quando as pessoas comuns são multadas por falar russo. Ler livros em russo. Ou simplesmente escrever a Letra Z para soletrar Zubaida. Então perde-se a essência da causa.

 

E isto está evidenciado no Diário Oficial daquele país a quem a União Europeia promete acolher de braços abertos no metafórico Jardim de Josep Borrell. Esta mesma Europa, que tanto se indigna nos fóruns internacionais com as atrocidades no Afeganistão, no Myanmar ou no Irão. Imagine-se o que não faria se estes países multassem os seus cidadãos por falar Inglês em público.

 

Com tanto extremismo exacerbado no leste Europeu, o precedente da Bósnia-Herzegovina ganha corpo na futura organização politica do estado Ucraniano, que se deveria transformar num Estado federal, com as liberdades religiosas, linguísticas e culturais fosse preservadas por leis aprovadas por seus próprios concidadãos. Nada obsta que o ucraniano se torne naturalmente numa língua franca disseminada pelo Donbass pela ordem natural das coisas. Sobretudo quando este país se unir cada vez mais a União Europeia, pela imensidão de recursos humanos e materiais relativamente baratos que possui, que certamente estarão na linha da frente para contrapor o expansionismo económico chinês.

 

Com as vantagens socio-económicas daí advindas, grandes investimentos da União Europeia e dos EUA vão ser guiados por factores sociológicos e antropológicos, onde o ucraniano terá precedente em relação ao russo como língua de trabalho. O mais provável é que os ucranianos do Donbass se tornem bilingues ou trilingues. O caso dos EUA – que não tem nenhuma língua oficial federal - e de Hong-Kong também, mostra como a adopção de um idioma oficial pelos habitantes nativos se faz mais pela necessidade financeira e integração social, do que por meras disposições judiciais e incitação do ódio travestidos de patriotismo.

 

Em terceiro lugar e como consequência directa das questões anteriores, há o aspecto económico que está na génese do presente conflito. Sendo irreversível a integração da Ucrânia na União Europeia, será necessário revisitar as causas que estão na base da crise económica que debilitou o então regime pró-russo de Yanukovich e culminou com a revolução da praça Maidan. Que é o efeito plano inclinado que a chamada Zona Franca da UE criou no primeiro momento em que a Ucrânia teve de alterar o seu quadro legislativo para se aproximar economicamente de Bruxelas. Criou-se uma situação em que o fluxo de bens e serviços europeus transitavam livremente para o mercado russo isentos de taxas, mas o percurso contrário oriundo da Rússia era bloqueado pelas imposições europeias.

 

Ninguém acredita que com a paz novamente instaurada naquelas paragens,  as fronteiras e os negócios com a Rússia permaneçam fechados. Pois se houver alguma legitimidade da ONU em apelar ao pagamento de indeminizações pela Rússia por causa do presente conflito, então que se faça também com investimento russo igualmente na Ucrânia, em termos aceitáveis nos tratados da OMC e não guiado por proteccionismo económico da União Europeia ou da OCDE.

 

Porque não interessa ao ocidente que este imenso país da Eurásia se vire definitivamente para a Ásia. E nem que espere que Moscovo se conforme com a adesão ucraniana a Europa sem entendimentos prévios sobre o levantamento progressivo das sanções económicas e futuras alterações aos estatutos da ONU, particularmente, na quadro de actuação do FMI, Banco Mundial e OMC, face ao papel das emergentes potências regionais do BRICS na arquitectura de segurança mundial. Nada será como antes.

 

Sem estas medidas cautelares, serão letra morta quaisquer “linhas vermelhas” que as partes contendoras vierem a estabelecer para a preservação da paz na Ucrânia, incluindo a não proliferação nuclear, cibersegurança, preservação do meio ambiente e outros tópicos não menos importantes.  

 

Ricardo Santos

quarta-feira, 06 julho 2022 07:09

A Leste, Algo Novo

Volvidos quatro meses do início das hostilidades na Ucrânia, o denominado exército medieval do Kremlin, que fora escorraçado das cercanias de Kiev, ocupa agora um quinto do seu território. No entanto, na praça Maidan ouvem-se ainda promessas de uma vitória retumbante na Primavera.

 

Acto engendrado por ex-consultores de Wall Street,  colocados no leme das nações mais poderosas da Europa para reviver uma nova idade das trevas,  o conflito ucraniano foi propiciado por mudanças profundas e fracturantes em todos os sectores da sociedade ocidental, como consequência directa da expansão do Paradigma 4.0, que já estava a eliminar, de forma massiva e desproporcional, empregos de baixa qualificação ou rotineiros nos países da OCDE, susceptíveis de serem substituídos por baratíssimas soluções de inteligência artificial.

 

E neste grande desafio, a República Popular da China era quem melhor se posicionava face aos seus concorrentes americanos e europeus. Não tardou por isso que as agendas políticas do chamado mundo civilizado judaico-cristão começassem a impor uma regulação do ciberespaço, blindando as oportunidades de mercado e soluções inovadoras aos perigosos competidores vindos de Leste. Estava assim lançado o pretexto para uma nova confrontação este-oeste.

 

Que teve como ponto de partida a cruzada mediática anti-Huawei, durante a qual, celebraram-se memorandos de entendimento entre a NATO e a União Europeia no domínio da segurança cibernética, enfiando no caixote de lixo da história as tenebrosas revelações feitas por Edward Snowden anos antes. E por iniciativa norte-americana, instituiu-se o Quinto Domínio da guerra na cimeira da NATO de Londres em 2019, para conter a ascensão do 5G chinês quando, providencialmente, um misterioso COVID-19 surgiu para retirar da opinião pública mundial a atenção para o que já estava planificado para acontecer.

 

A tragédia ucraniana era, portanto, há muito anunciada. Com os avisos que não faltaram de Moscovo, que foram ostensivamente ridicularizados nos fóruns internacionais, onde se evidenciou o papel hipócrita e subalterno da intelligentsia europeia na resolução da quezília.

 

Como se provou com os malogrados Acordos de Minsk e confirmado recentemente por declarações de Petro Poroshenko ou de Jens Stoltenberg, era preciso dar tempo à Ucrânia para que, com o apoio da NATO, expulsasse qualquer vestígio russo do seu território. O que nos induz hoje a estranha sensação de que a presença do errático Trump na Casa Branca foi o único factor que travou uma guerra aberta no Donbass.

 

Pelos vistos, será preciso esperar que os republicanos voltem aos comandos Washington em Novembro, para que o mundo volte a respirar com um pouco mais de alívio por algum tempo.

 

Tarefa que não se afigura fácil considerando que o eleitorado norte-americano vota essencialmente com o seu bolso ou ao sabor da doutrina do falso moralismo constitucional.

 

Por isso, a iminente recessão económica causada pelas políticas dos democratas pode-se transformar numa espada de dois gumes para os republicanos com a provável desqualificação de Trump por causa dos fait-divers do Capitólio e do Aborto, ou o retorno positivo do maior endividamento europeu de longo-prazo desde o Plano Marshall de 1948-51.

 

Eis porque o comediante de Kiev insiste energicamente numa vitória de Primavera. Quão importante seria para o seu principal credor e associados europeus um acordo de Paz em condições favoráveis, antes das eleições intercalares dos EUA ou do pior inverno europeu do sec. XXI. O que torna as ondas de choque do conflito mais perigosas e imprevisíveis para o resto do mundo, pois a sua escalada obriga ao emprego de armamento mais sofisticado em mãos de governos politicamente irresponsáveis. É que a Leste, há algo novo. Uma nova frente foi aberta em Kaliningrado.

 

Isolado desde meados de Junho por terra e ar, a este altamente militarizado enclave russo somente resta a via marítima para manter a sua economia em funcionamento. Este singular acto hostil da pequena Lituânia contra a poderosa Rússia teve a solidariedade imediata da Polónia, país que há muito contesta a hegemonia de Moscovo e de Berlim na região.

 

Simultaneamente, a NATO anunciou que a força de reacção rápida no flanco leste europeu seria elevada de 40 para 300 mil homens. E a resposta já é de se esperar. Mais mísseis estratégicos e equipamento militar sofisticado russo vai ser fornecido à Bielorrússia, levando a uma provável nuclearização da região do Báltico, algo que os então pacifistas Finlândia e Suécia nunca imaginariam ver a acontecer no seu quintal.

 

Mas o ponto fundamental do conflito no Leste europeu é o que sucederá no pós-guerra. Porque a perspectiva inicial do mundo ocidental de reviver o cenário bipolar da Guerra Fria falhou rotundamente. O mundo actual mostra o seu carácter cada vez mais multipolar, com a Europa cada vez atrelada ao objectivo primário de Washington de resolver o problema chinês enfraquecendo a Rússia. O que não obviará o desejo britânico de recriar uma nova EFTA na Europa do Leste, para servir de muleta a um Brexit feito por cima do joelho.

 

E o aclamado estado social europeu, do pleno emprego e dos direitos adquiridos se extinguirá em breve sem as matérias-primas e a mão-de-obra baratas da Rússia e da China.

 

Mais ainda, por se ter revelado uma extensão de um bloco militar expansionista como a NATO, a União Europeia colhe agora consequências nefastas nas suas relações bilaterais com aliados tradicionais como a Índia, Arábia Saudita, Turquia e Israel.

 

A Índia serve-se do momento actual para refinar o crude russo a preço de banana, para depois repassá-lo à sedenta Europa ao valor de mercado. A Turquia faz o mesmo em relação ao gás natural e aos cereais. E a Arábia Saudita mostra que a vingança é um prato que se serve frio. Algo que o sr. Biden jamais esquecerá, quando tiver de negociar novamente o preço do crude com a OPEP.

 

E Israel vive mergulhado num dilema existencial, ao sonhar com os proventos do gás natural de alto mar que espera fornecer a Bruxelas saqueado aos palestinos e libaneses.

 

Preso por uma neutralidade forçada, o Estado Judeu tem de apartar simultaneamente os interesses dos EUA e da Rússia. Telavive sabe que uma aproximação à posição pró-russa lhe retira do clube dos meninos mimados do ocidente. Mas uma posição deliberadamente pró-ocidental pode culminar com Moscovo a armar Teerão com um arsenal similar ao Bielorrusso.

 

Mas é sobretudo a credibilidade do euro, que viu as suas reservas a diminuírem drasticamente no sistema financeiro dos BRICS, que foi posta em causa. Desde o início da bateria de sanções draconianas contra Moscovo, muitas das economias emergentes passaram a apostar no ouro e nas transacções financeiras bilaterais em moeda nacional. Esquema que agrada a Argentina e o Irão que já submeteram o pedido de adesão aquele bloco.

 

Em suma, nas chamadas economias emergentes, o rationale dois pesos, duas medidas do chamado mundo civilizado para congelar bens russos e bielorrussos foi suficientemente claro para alertá-los para os cuidados que devem passar a ter com as suas economias no relacionamento com os países da OCDE.

 

A confiança nas grandes instituições financeiras criada pela globalização foi quebrada, abrindo a porta ao revivalismo do Movimento dos Não-Alinhados, onde agora reside uma neutralidade diplomática, aspecto muito discutível, sobretudo em países cujo orçamento do estado depende de programas do FMI e do Banco Mundial.

 

Com o H.R.7311 – Countering Malign Russian Activities in Africa Act do Congresso dos EUA na forja é uma questão de tempo para ver se as boas vontades de África em relação à paz na Ucrânia não se alinham com quem servir mais almoços grátis.

 

Mas tudo se coaduna para que a cimeira do G-20 a realizar em Novembro, na Indonésia, possa ser o primeiro acto simbólico da comunidade internacional para encerrar a orgia dos loucos que tomou conta do Leste Europeu. Até lá, a pobre Ucrânia continuará a ser carne para canhão, para o gáudio dos fabricantes mundiais de armamento e dos amigos da onça com quem se tem enfiado na cama.

Ricardo Santos