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terça-feira, 24 setembro 2019 05:42

Insurgência em Cabo Delgado: Estudo traça perfil dos primeiros atacantes

Uma pesquisa exploratória, elaborada em conjunto pelo Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE) e pela Fundação Mecanismo de Apoio à Sociedade Civil (Fundação MASC), tornada pública semana finda, traça o perfil do primeiro grupo que, a 05 de Outubro de 2017, atacou instituições de Estado, na vila autárquica de Mocímboa da Praia, na província de Cabo Delgado.

 

O estudo, dirigido pelos pesquisadores Salvador Forquilha (IESE), João Pereira (MASC) e Saide Habibe, foi realizado entre os meses de Novembro de 2017 e Fevereiro de 2018 e tinha o objectivo de analisar a natureza e os factores explicativos da violência com incidência, inicialmente, em Mocímboa da Praia e, mais tarde, noutros distritos circunvizinhos, assim como trazer subsídios para alimentar o futuro plano estratégico da Fundação MASC, com enfoque na prevenção da radicalização da juventude na zona norte de Moçambique.

 

O documento, de 62 páginas, cujo perfil do grupo “insurgente” é relatado em 30 páginas, centrou as atenções nas origens do grupo, sua natureza, mecanismos de financiamento e reprodução e baseou-se em entrevistas realizadas em Novembro de 2017, com líderes religiosos que conheciam não só alguns membros influentes do grupo, como também alguns jovens locais, que se juntaram ao grupo; líderes religiosos que tinham denunciado o grupo junto da administração local, em 2016; pais cujos filhos se juntaram ao grupo; lideranças locais das organizações da sociedade civil; funcionários da administração local e alguns elementos das Forças de Defesa e Segurança (FDS), particularmente, no distrito de Mocímboa da Praia; e vendedores informais.

 

Os pesquisadores dizem também ter visitado, em Dezembro de 2017, os distritos costeiros da província de Nampula, nomeadamente Memba, Nacala-Porto, Nacala-a-Velha e Ilha de Moçambique, com a finalidade de perceber se havia alguma eventual ramificação do fenómeno para fora da província de Cabo Delgado.

 

Sem uma conclusão definitiva acerca do fenómeno, que já causou a morte de mais de 300 pessoas, entre civis, militares e membros do grupo, os pesquisadores referem que o relatório constitui uma primeira tentativa de aproximação deste com o objectivo de compreender a complexidade das dinâmicas não só na origem do grupo dos Al-Shabaab como também na estrutura do próprio conflito e violência em Cabo Delgado. Sublinham que o fenómeno exige uma pesquisa multidisciplinar aprofundada que tome em conta uma multiplicidade de factores de ordem histórica, social, política, económica e religiosa.

 

Características do grupo

 

De acordo com o estudo, o grupo, denominado Al-Shabaab, que atacou instituições do Estado na vila de Mocímboa da Praia, a 05 de Outubro de 2017, surge na zona norte de Cabo Delgado, primeiro, como um grupo religioso e, em finais de 2015, passou a incorporar células militares. Refere ainda que as suas acções correspondem ao fundamentalismo religioso de combate à influência ocidental e de implantação radical da lei islâmica – a sharia e o combate aos inimigos do Islão – e que tem ligações com as redes do Harakat Al-Shabaab al-Mujahedeen, ou somente Al-Shabaab, que é um grupo jihadista de origem somali, que opera na Somália e no Quénia.

 

O documento afirma que, inicialmente, o grupo era conhecido pela designação Ahlu Sunnah Wal-Jamâa (“adeptos da tradição profética e da congregação”, em árabe) e integrava, maioritariamente, jovens de Mocímboa da Praia e os seus líderes tinham ligações com certos círculos religiosos e militares, nomeadamente células de grupos fundamentalistas islâmicos da Tanzânia, Quénia, Somália e região dos Grandes Lagos.

 

“Alguns elementos do grupo tinham ligações indirectas com líderes espirituais da Arábia Saudita, Líbia, Sudão e Argélia, essencialmente através de vídeos ou de pessoas que tinham estudado nesses países graças a bolsas de estudos financiadas por homens de negócios locais e estrangeiros (particularmente madeireiros e garimpeiros ilegais) provenientes da Tanzânia, Somália e da região dos Grandes Lagos. Em Moçambique, uma parte desses jovens está concentrada na zona norte e outra na cidade de Maputo”, revela a pesquisa.

 

Para se diferenciar de outros crentes muçulmanos, explica a fonte, os elementos do grupo dos Al-Shabaab de Mocímboa da Praia procuraram construir uma identidade própria, com algumas características particulares, destacando-se o uso de uma indumentária própria (turbantes brancos, amarrados à volta da cabeça; batas e calças curtas de cor preta, que se estendiam um pouco abaixo dos joelhos); cabelos rapados e barba grande.

 

O estudo refere ainda que os indivíduos não levavam os seus filhos às escolas formais, simplesmente às escolas corânicas (madrassas) por eles construídas; que sempre andavam munidos de armas brancas (como facas e catanas) para simbolizar a jihad; incitavam à violência e desrespeito pelas lideranças comunitárias, particularmente os ÁlIimos, a quem chamavam “káfir”; não aceitavam dialogar com estruturas governamentais nem com outros grupos diferentes do seu; obrigavam as suas famílias a assistir vídeos dos discursos do clérigo queniano Aboud Rogo, que pregava um Islão radical; e as suas mulheres eram obrigadas a cobrir todo o corpo e a tapar a cara com burcas.

 

Os pesquisadores descrevem que os primeiros momentos da presença do grupo, em Mocímboa da Praia (antes de 2015), foram marcados pela confrontação entre os elementos do grupo e as lideranças religiosas locais, que culminaram com a expulsão do grupo das mesquitas locais, tendo passado a reunir-se num edifício inacabado, transformado em mesquita, que recebeu o nome de Masjid Mussa. A transformação deste edifício numa mesquita, explica a pesquisa, contou com a contribuição monetária e mão-de-obra dos membros do grupo. Além disso, o grupo reunia-se também no quintal de um dos seus membros, conhecido por Mussa Sabão.

 

“Em geral, face a muitas queixas das autoridades religiosas locais sobre a existência de um grupo com tendências radicais que agitava as mesquitas, o governo local (nos distritos abrangidos) teve uma abordagem diferenciada. Enquanto em Chiúre e Montepuez, os governos distritais reagiram de uma forma contundente em relação ao grupo, originando a fuga dos seus elementos para distritos vizinhos, em Mocímboa da Praia e Macomia, as autoridades reagiram dizendo que se tratava de um problema interno das mesquitas e, por conseguinte, cabia às lideranças religiosas encontrar a solução para o problema”, revela a fonte, em relação às atitudes dos governos locais.

 

O estudo afirma, aliás, que no início o grupo dos Al-Shabaab era, acima de tudo, uma organização religiosa não militarizada, porém, gradualmente, o grupo foi-se militarizando sem, no entanto, ter uma elaboração teológica sofisticada nem uma ideologia claramente definida, apesar de reclamar a prática de um Islão fundamentalista. Explica ainda que, nas suas interacções com a população local (pelo menos nos primeiros momentos), o grupo dos Al-Shabaab defendia que a solução de problemas como o desemprego, a corrupção generalizada nas esferas oficiais, a exclusão política e as desigualdades sociais residia na adesão à versão puritana do Islão. Também defendia a adesão ao movimento internacional de jihad.

 

De acordo com a pesquisa, um dos actores-chave do grupo é um indivíduo designado O.B., natural de Mocímboa da Praia e que estudou em algumas madrassas locais antes de partir para a Tanzânia, onde esteve em contacto com círculos de seguidores do salafismo (corrente teológica descrita como perigosa). Entre 2013 e 2014, descreve o estudo, O.B. criou um pequeno grupo de jovens que passou a reunir-se na sua casa, visando penetrar nas mesquitas locais, com objectivo de mudar a maneira como as lideranças religiosas dessas mesquitas interpretavam o Alcorão.

 

Quando foi expulso das mesquitas, conta o estudo, citando os entrevistados, o indivíduo e seus fiéis seguidores, maioritariamente jovens de classes sociais desfavorecidas (muitos deles sem uma educação formal), passaram a rezar na casa de um dos seus membros e em círculos muito fechados. Afirma ainda que para o ataque às instituições do Estado em Mocímboa da Praia, a 05 de Outubro de 2017, O.B. contou com o apoio logístico e financeiro de comerciantes locais e outros oriundos da Tanzânia que tinham ligações com o grupo.

 

Recrutamento

 

De acordo com a pesquisa, o grupo dos Al-Shabaab focalizou os seus esforços de recrutamento tanto a nível local, nacional, como também no estrangeiro, nomeadamente na Tanzânia ou ainda na região dos Grandes Lagos. Afirma que, após o ataque de 05 de Outubro de 2017, uma parte importante dos recrutas vinha dos distritos costeiros das províncias de Cabo Delgado e Nampula, nomeadamente Mocímboa da Praia, Macomia, Memba, Nacala-a-Velha e Nacala-Porto. Sublinha ainda que muitos desses recrutas juntaram-se ao grupo sob promessas de pagamento de valores monetários, emprego e, em alguns casos, bolsas de estudo no estrangeiro.

 

O estudo relata que o grupo dos Al-Shabaab de Mocímboa da Praia tinha montado uma rede diversificada de recrutamento, constituída por laços de casamentos, redes informais de amigos, madrassas, mesquitas, negócios nos mercados informais e algumas associações informais de base comunitária de jovens muçulmanos.

 

O desemprego, a pobreza, baixa escolaridade, fantasias pessoais, busca de aventura, camaradagem e criação de uma nova ordem são apontados pelo estudo como as principais razões que levam os jovens a juntarem-se ao grupo. As questões identitárias baseadas em etnia também são apontadas como factores catalisadores da entrega de alguns jovens à insurgência. Neste ponto, o estudo explica que, no caso de Mocímboa da Praia, o grupo étnico mwani sente-se excluído em termos de representação política e benefícios económicos.

 

Proveniência do financiamento

 

De acordo com a pesquisa, o dinheiro usado no financiamento das actividades do grupo dos Al-Shabaab vinha, essencialmente, de duas fontes, nomeadamente economia local ilícita (tráfico de madeira, carvão vegetal, rubis, marfim, entre outros produtos) e doações. As doações, sublinha o estudo, vinham de pessoas com ligações às lideranças do grupo em Mocímboa da Praia e as transferências dos valores monetários eram feitas via electrónica: M-pesa, M-kesh, M-mola (hoje, E-Mola). Sublinha que, das duas fontes mencionadas, a primeira (economia ilícita) era a que movimentava avultadas somas de dinheiro para financiar o grupo dos Al-Shabaab.

 

No que tange à organização hierárquica, o estudo refere que, no princípio, o grupo dos Al-Shabaab, em Mocímboa da Praia, tinha uma estrutura praticamente baseada em líderes religiosos, sem a componente militar. Nesta primeira fase da penetração, os líderes religiosos tinham a função da gestão dos espaços religiosos (mesquitas) e a consciencialização dos seus seguidores, através de células religiosas. Posteriormente, detalha o estudo, estabeleceu a sua estrutura organizacional na base de células relativamente autónomas e com cadeia de comando flexível.

 

Na sua análise à situação, os pesquisadores avançam três hipóteses que podem estar a concorrer para a expansão da insurgência em Cabo Delgado. A primeira é associada à pressão militar, que também se relaciona à destruição de algumas bases e a falta de logística para os militares; a ausência do Estado na maioria dos locais atacados pelos insurgentes; e o facto de o grupo estar a receber jovens de outros países do continente.

 

O IESE sublinha, no seu relatório, que desde o início dos ataques armados, em Outubro de 2017, foram detidos, pelo menos, seis jornalistas: três estrangeiros e um moçambicano, em 2018, e dois moçambicanos. Além disso, foram instaurados seis processos-crimes contra indivíduos suspeitos de estar ligados aos ataques. Dois desses processos, com cerca de 221 arguidos, foram concluídos pelo Tribunal Judicial da Província de Cabo Delgado, tendo resultado em 57 condenados a penas de prisão, que variam de 16 a 40 anos. Os restantes quatro processos, visando 50 arguidos, ainda não foram concluídos. (Abílio Maolela)

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