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Dos 21 arguidos do processo das “dívidas ocultas”, 11 já estão em prisão preventiva (a detenção de Osvaldo Catela continua a passar despercebida). Ontem foi ouvida a senhora Carolina Reis mas não se sabe se vai ser detida. A PGR corre agora em velocidade de cruzeiro para lograr deduzir uma acusação provisória até o próximo dia 26 de Março, dia em que termina o prazo de prisão preventiva dos arguidos presos a 14 de Fevereiro, caso os advogados não requeiram a instrução contraditória. 

 

A investigação conta agora com mais elementos: buscas efectuadas em residências e escritórios dalguns arguidos recolheram evidências documentais essenciais para a acusação ter forças para enfrentar uma instrução contraditória que promete ser dura. São cerca de 14 mil folhas de processo. Se a 26 de Março, o Ministério Público não conseguir deduzir essa acusação provisória (o que parece pouco provável), a defesa vai exigir a alteração da medida de coação mais grave, a prisão preventiva, para uma mais leve, nomeadamente, a liberdade provisória sob caução. 

 

Mas até agora fica pouco claro se haverá mais detenções. Os critérios usados pelo Ministério Público impedem qualquer futurologia. Aliás, os critérios não são claros. Em Janeiro foi dada a ideia de que nem todos os arguidos iriam ser detidos – alegadamente porque havia quem se predispusera a colaborar imediatamente na investigação, desde o seu início, embora isso não conferisse a qualquer fulano o estatuto de protegido da justiça e de isento de responsabilização.

 

Mas e depois a PGR passou à fase das detenções propriamente ditas e o que é que vimos? 

 

Quatro perfis de detidos: i) os alegados orquestradores do calote (Nhagumele, Rosário, Ndambi, Leão e Tandane); ii) os receptores directos de subornos da Privinvest (Inês Moiane, Sérgio Namburete e Fabião Mabunda); iii) os receptores indirectos de dinheiro da Privinvest, designadamente pessoas que venderam bens em operações de lavagem de dinheiro (como Sidónio Sitoe); iv) e um último grupo onde cabe uma mistura de arguidos cujo papel se situa entre a gestão de bens comprados alegadamente com dinheiros do calote (como Ângela Leão e Elias Moiane) e o simplesmente desconhecido (Osvaldo Catela).

 

A questão que se levanta nos meandros mais atentos ao caso é se esta arrumação de perfis corresponde mesmo a um critério mensurável e objectivo ou se o Ministério Publico está a prender com base em outro tipo de critérios completamente insondáveis para a opinião pública. Uma explicação cabal sobre isto é necessária, para afastar nossa tendência imediata de enxergar teorias de conspiração onde ela até não existe, nomeadamente a ideia de que as detenções seguem um cunho eminentemente selectivo.

 

O problema é que há na lista de arguidos gente com perfil semelhante ao dos arguidos detidos mas que anda à solta. Um exemplo, para não nos limitarmos a já corriqueira menção do nome do ex-Conselheiro Político do Presidente Armando Guebuza, é a figura identificada na acusação americana por "co-conspirador 1". 

 

Juntamente com Teófilo Nhangumele, esta figura, que encaixa no perfil dos detidos que orquestraram o calote, recebeu de subornos cerca de 8.5 milhões de USD, directamente da Privinvest, designadamente em 2013, poucas semanas após o contrato da ProIndicus estar fechado. À luz da delação premida americana, o fulano pode estar isento de responsabilização criminal nos EUA mas em Moçambique também fica isento? Eis, pois, uma questão que merece clarificação imediata. Se a acusação americana foi essencial para a prisão dalguns arguidos por que é que as evidências de que os "co-conspiradores" receberam subornos não são usadas para a sua responsabilização em Moçambique?

 

Quanto a mim, é fundamental que a PGR divulgue a lista de todos os detidos e explique por que é que uns são presos e outros não. A opinião pública moçambicana está sedenta de transparência também em relação aos procedimentos da justiça. E pergunta-se a si mesma, em todos cantos, com um vozeirão infernal: afinal porquê alguns são detidos e outros se passeiam impunemente?

Se há coisa que não nos podemos queixar é falta de gatunos no governo. Até parece que a cada mandato o governo cessante passa a ser procurado pela Justiça. Parece que a cada cinco anos descobre-se que os antigos governantes eram todos ladrões. É como se neste mandato estivéssemos a colocar na prisão os ministros, governadores, embaixadores, Pê-Cê-As, assessores, directores, secretarias, filhos, etecetera, do antigo governo e no próximo mandato o mesmo vai acontecer com estes que estão a roubar agora. É como se estivéssemos a colher o que plantamos há cinco anos.


Dizia, somos um país de gatunos. Mas atenção: nem todos os gatunos que pululam por aí são de estimação. Os gatunos de estimação não são quaisquer. Nós conhecemo-los. Estão timbrados. Os nossos gatunos de estimação são "Indivíduos" agrupados e codificados em ordem alfabética pela Kroll. Têm selo. 


Não misturem os gatunos. Por exemplo, há dias ouvi num café que esse ex-ministro que disse que pagou coisas sem saber faz parte dos gatunos de estimação. Nããão!!! Esse pode ser gatuno, mas é gatuno doutro tabuleiro, não é desse tabuleiro de gatunos de adoração. Grupo desse daí é daqueles que se venderam e se compraram aviões entre si. Depois temos o tabuleiro das embaixadoras, que também é um outro grupo. Essa remessa de larápios pode-se encontrar por aí, em qualquer esquina. Agora, aquele que está com os nossos cunhados é outro nível. É internacional e tem selo da Kroll. Como ele só na China antiga, na dinastia Chang. 


São muitos tabuleiros de gatunos. São muitas coleções de gatunos. Cada tabuleiro é uma coleção. Mas a coleção de estimação é a dos "Indivíduos", a nossa relíquia nacional. Neste momento, há muitos grupos em julgamento. Estamos perante um festival de audições e de prisões preventivas, mas o mais importante é não misturar. Não confundir a coleção de Chang com a de Zucula. Chang pertence à bandeja daqueles meninos fosfóricos que estão a brincar de estar presos em Maputo. Esses é que são nossos por afecto. Cada gatuno no seu tabuleiro e cada tabuleiro com os seus gatunos. 

- Co'licença!

segunda-feira, 11 março 2019 06:14

Teatro de operações

Os preconceitos de extremos assentam como luva costurada e curtida pela distância entre Cabo Delgado e Maputo, ainda que separados por míseros 2400 km. "Lá onde Judas perdeu as botas" é também lá onde foram inscritas as primeiras pegadas das botas, chinelos e pés descalços que desbravaram o caminho da independência.  

 

Na história política de Moçambique, Cabo Delgado é mui sui generis e ocupa lugar privilegiado em quase todas as páginas, por razões diversas.  Ao mesmo tempo em que estamos ligados à Cabo Delgado por inúmeros e viscerais vínculos de história comum, repleta de glórias e vergonhas, desterros e regressos, partilhas e negações, alianças e traições, por vezes, parecemos esquecer que Cabo Delgado somos nós!  Mais do que assumir que "Cabo Delgado é Moçambique", como bem dizem os que publicamente expressam suas angústias e solidariedade,  importa frisar que este Moçambique de hoje foi possível também por via de Cabo Delgado.

 

A epopeia de libertação dificilmente  se pode narrar sem os marcos e destaques que Cabo Delgado empresta. Se não quisermos recuar demais no tempo e falar dos (in)memoráveis períodos pré-colonial e colonial, podemos ater-nos a alguns eventos que assumiram caracter de marcos da história contemporânea de Moçambique, como o  "Massacre de Mueda" (1960) também retratado como último rasgo de resistência pacífica ao colonialismo português. Na sequência,  o ataque ao Posto Administrativo de Chai, em Macomia (1964), celebrado pela reputação  de ter sido o local onde foi disparado o tiro que teria, oficialmente, aberto o caminho da contestação violenta ao colonialismo que culmina com a independência (1975). Por hora, não importa polemizar e nem disputar a coexistência de versões e representações discursivas sobre estes marcos da "historia heroica'' de Moçambique. Mais ou menos detalhes não tiram a centralidade de Cabo Delgado como um dos principais palcos de actuação e progressão dos guerrilheiros da Frente de Libertação de Moçambique,  que ousaram abraçar a onda libertária dos anos 60 e embarcar na "Luta por Moçambique", independentemente das visões e lugares de enunciação da "razão da luta". Cabo Delgado esteve no olho do furacão da "revolução moçambicana" e destacou pela legião de valentes (e nem tanto) jovens que integraram o movimento de libertação de Moçambique (incluindo os que foram expulsos e os que tombaram na jornada).

 

Apesar de "Teatro de operações" ser parte do jargão corrente na linguagem de corporações militares, cada vez que os porta-vozes da PRM ou FDS  ocupam espaços de antena para falarem das ocorrências no "teatro de operações" que Cabo Delgado representa, o mais angustiante é a desinformação sobre os eventos que, novamente, tornam Cabo Delgado, num espaço de violência e simbolismo que, desta vez,  rema em direção oposta à nova onda de pacificação e tripudia as promessas de redenção económica do país, pela via dos recursos naturais. Nestas circunstâncias,  pela janela que Cabo Delgado representa, Moçambique rende-se ao fatalismo discursivo em que se vaticina a "maldição dos recursos" onde, em tese, se preconiza que a ocorrência de recursos naturais em qualidades e quantidades abundantes e comercializáveis a escala global, e com estruturas políticas relativamente frágeis,  é potencial motivo para atrair toda a sorte de abutres, ávidos por injetar o germe da discórdia, semear o caos e tirar máximo proveito, além de despertar o insaciável apetite de cobras e lagartos que habitam em nós e entre nós mesmos!

 

Após longas batalhas e perfilar de  décadas de "vitórias contra o subdesenvolvimento", que não se materializaram; inúmeros planos de conversão da agricultura em "base do desenvolvimento", sem grandes êxitos; décadas de "reestruturação económica", repletas de fórmulas de sucateamento; década de "exaltação do empreendedorismo", com resultados pouco abonatórios; todas elas permeadas por guerras, tensões militares ou seja lá o que quisermos chamar,  quando Cabo Delgado redefine-se como polo de exploração de recursos naturais, com potencial de impulsionar o errático projecto de industrialização e desenvolvimento económico de Moçambique - que nunca se recuperou dos excessos e euforias da êxtase da "liberdade", celebrada com gozo no "escangalhamento do aparelho colonial" e promoção do centralismo económico de Estado, através do "socialismo científico" e, mais tarde, quase que abruptamente, abocanhado pelos impiedosos tentáculos da economia de mercado neoliberal - parece que a "sina" de desperdício de oportunidades ataca de novo.

 

A aceleração do processo de (de)lapidação dos recursos naturais abundantes em Cabo Delgado,  menos do que reger-se pela frágil estratégia nacional gás natural liquefeito ou qualquer outro plano de exploração de recursos naturais, desnudou um teatro de disputas entre gigantes e anões de quase todas as tribos económicas globais e locais que jogam as suas cartas, de forma limpa e suja, reacendendo rastos de destruição de que o país precisa desenvencilhar-se.

 

No arrefecer de Santunjira e na prossecução dos ensaios de reconciliação pós Dhlakama, o escandaloso reavivar de armas, tendo Cabo Delgado como epicentro de inomináveis atrocidades, obscuras nas ideais e ideais que eventualmente pretendem apregoar e, totalmente prenhes das mais vis manifestações do egoísmo humano e do descaso pela vida.

 

A densa cortina de fumo envolta e atiçada em torno dos acontecimentos de Cabo Delegado, dificultam o descortinar das eventuais razões do terrorismo e do ciclo de extermínio e banimento de comunidades no cinturão dos recursos naturais. O encarceramento e silenciamento de jornalistas, o desestimulo e descrédito à iniciativas de investigação que visam compreender os múltiplos ângulos da quizila, a restrição de acesso e o cancelamento do trabalho de organizações activas no terreno, além de medidas cautelares que incluem a restrição de movimentos, expressam o investimento na supressão de conhecimento das circunstâncias de ocorrência de tão trágicos eventos que só contribuem para a redução da nossa dignidade colectiva como sociedade.  

 

A desinformação oficial (intencional ou não) desde a ocorrência dos episódios que selaram a progressão da saga de destruição, onde as autoridades de tutela se revezam na reprodução de "discos riscados", "está tudo controlado"; "são grupelhos enfraquecidos e quase extintos";  imediatamente seguidos pela multiplicação de ocorrência de relatos de ataques e destruição anarquicamente dispersos por diferentes pontos da província de Cabo Delgado,  reforçam a ideia de intencionalidade manipulativa de sonegação de informação, ampliação da cegueira e desligamento da opinião pública sobre a progressão  da tragédia.  A ignorância que se vende  sobre o perfil e eventuais motivos dos insurgentes, instigam-nos a repensar sobre as capacidades instaladas de gerar inteligência de Estado, os métodos e opções de articulação da comunicação Estado sobre problemas e ameaças com potencial de alterar a ordem e segurança pública. 

 

Assim como dificilmente se retém água nas mãos, porosamente, o sangue de mais de duas centenas de cidadãos mortos, entre decapitados, calcinados e esquartejados, escorre dentre o véu da minimização, sulcando novos roteiros, novos distritos, novas localidades e aldeias, feitas presas fáceis que vão alimentado e encorpando o tamanho desse instrumento de destruição  que nos faz observar, como quem contempla, impotentemente,  num gigante placar eletrónico a progressão do número de vítimas sem que esteja claro um posicionamento de Estado, senão por vagas indicações de que já foram despachados para o "Teatro de Operações" novos contingentes de militares, mais ou menos especializados para conter a progressão do que, por enquanto chamamos "insurgência". Não se demanda que o Estado seja omnisciente, mas que seja capaz de, com alguma celeridade, demostrar capacidade de recompor-se de eventuais surpresas e articular estratégias de entendimento, explicação, actuação e comunicação relativamente consistente e sustentável e não apenas exibir bravatas que se desfazem em menos de uma semana.   

 

Desde Outubro de 2017, mais de duzentas pessoas foram mortas com a mesma crueldade e consistência no modus operandi.   Às dezenas, por semanas, atingiu-se a escandalosa cifra de mais de 200 mortos contabilizados, se não forem muitos mais, especialmente se tomarmos em consideração que a subnotificação do número de mortos, independentemente das razões, não é rara em cenários como estes. A Comissão Nacional de Direitos Humanos guarda relatos das atrocidades e registos de violações de códigos de conduta na forma de actuação das Forças de Defesa e Segurança.  A Human Rigths Watch regista actos de intimidação de jornalistas pelas FDS. A detenção dos jornalistas  Amade Abubacar e Germano Adriano, por alegada "violação de segredo de Estado", evidencia o clima de deterioração dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.

 

Inequidades sociais e históricas, exclusão económica estrutural,  extremismo religioso, expansionismo do terrorismo regional e global, brigas e ressentimentos "interétnicos", atavismos inter-tribais, disputas entre grandes interesses económicos e de controle territorial,   sublevações camponesas espontâneas, migrações económicas desusadas,   rebelião da juventude frustrada, conspirações dos senhores da guerra, armadilha lançadas por mercenários, prolongamento de disputas de interesses intrapartidário e muito mais, fazem parte do arcabouço de caracterização estereotipada não conclusiva do que se passa no "Teatro de Operações" em que Cado Delgado se tornou.   As ofertas e predisposições de "príncipes" para exterminar os insurgentes em três meses,  soam a achas à fogueira e pedidos de credenciais para a legitimação da actuação de grupelhos económicos e militares em cenários fartos, quais abutres circundando agonizantes presas.

 

O obscurantismo que cerca o entendimento da tragédia que se desenrola em Cabo Delgado, na era da informação, é tão despropositado que sequer se presta a função de abrir mentes e "ganhar corações".   Quando o PR diz que é tempo de os nossos serviços de inteligência virem dizer-nos o que se passa e, ainda assim, não ter reposta plausível (pelo menos publicamente) talvez seja tempo de rearticular os esforços, ampliar as plataformas de visibilização do tamanho da tragédia, abrir corredores de protecção e assistência às populações deslocadas, potenciar o aproveitamento dos trabalhos das pessoas que vem produzindo reflexões sobre Cabo Delgado e assuntos afins, e reiterar que CD não é terra de ninguém, propriedade privada, cujos dramas e dilemas possam ser tratados somente por debaixo de tapes.  

 

O cerceamento de liberdades de profissionais de comunicação, na era de abertura tecnológica, dificilmente vai prestar-se aos objectivos das táticas adoptadas no passado recente, quando a estratégia de descaracterização dos rebeldes resumia-se em tratá-los como simples "bandidos armados", sem bases sociais e até materiais de apoio e que poderiam ser desmantelados num abrir e fechar de olhos. Não preconizo nenhum repetir-se da história, mas a necessidade de capitalizar do conhecimento histórico sobre as nossas guerras e guerrinhas, ampliar o espectro para novos aprendizados, desviar-nos de chavões ufanistas e triunfalistas do tipo grupelhos já fragilizados e quase acabados e investir na busca e partilha de inteligência para assegurar maior efectividade das escolhas do Estado nas suas formas de actuação nesse trágico "teatro de operações" que se faz de Cabo Delgado. Em tal “teatro de operações”, salvo por melhor elucidação, a única coisa claramente não teatral é o rasto de destruição, de vidas ceifadas, famílias e comunidades destituídas. O resto, urge interrogar, compreender e engajar-nos como sociedade coesa e solidária na preservação da vida, nos esforços de normalização das rotinas das pessoas mais sacrificadas, qual capim em brigas de elefantes.

 

É tempo de inventarmos qualquer coisa como "década da vitória contra a barbárie"  que, a ser bem sucedida, possa abrir espaço para décadas de vitórias pelo que de melhor alguma vez, como país, aspiramos.

segunda-feira, 11 março 2019 06:01

Para quê ficar grávida?

Mulher barriguda que vai ter menino

 

qual o destino que ele vai ter?

 

Que será ele quando crescer?

 

Haverá guerra ainda?

 

Tomara que não!

 

                                    (“Secos e molhados”, grupo musical brasileiro)

 

É uma mulher madura, que apesar disso já não acredita na vida. É céptica. Talvez realista. Houve tempos em que no seu horizonte tudo o que acontecia igualava-se à aurora. As próprias palavras que lhe saíam da boca eram o cacimbo em si, que molhava o capim dando-lhe frescura. Renovação. Levava tempo para responder às perguntas, como os sábios. Acima de tudo deixava-se orientar pela fé de que todos nós fomos feitos para viver em paz e em liberdade. Nascemos para a felicidade. Mas hoje ela é a antítese de todas as suas crenças de outrora. Já não tem esperança. Pior, não tem dúvida de que caminhamos em direcção à Hades.

 

Estamos sentados frente a frente na esplanada do Hotel Inhambane, lugar onde tenho frequentado com alguma relutância, e ela não se cansa de tamborilar com os dedos no tampo da mesa para dar ênfase às concisas frases compostas com pausa. Aliás o tamborilar é mesmo para isso: dar pausa às palavras. Deus já disse, meu caro, tudo o que vier do ventre da mulher será amaldiçoado, mas ao que parece, até hoje ainda não percebemos essa parábola. Continuamos a inocular catervas e catervas de filhos para depois serem assados na fornalha que nós próprios activamos.

 

Raci traça um futuro sombrio, e diz mesmo que o que nos espera não pode ser outra coisa senão o bréu. Se eu fosse essas jovens que andam por aí, sonhando com a nascente, recusar-me-ia a engravidar. Engravidar para quê se os filhos já saem doentes dos nossos ventres? Alguma vez já tinhas ouvido dizer que as crinças vêm cancerígenas do útero da mãe? Aonde é que ouviste isso? Não assusta? Não mete medo? Come on, meu!

 

Estamos sentados frente a frente, eu e a Raci. Ela bebe Whisky em doses excessivas, e eu sinto-me confortável com a água que vou consumindo enquanto escuto os discursos de alguém que, quanto mais vai bebendo, mais lúcido vai ficando. Escuta bem, meu caro: Jesus disse assim à Nicodemus, tu e esses para quem estás a falar, não entrareis no Reino dos Céus enquanto não aceitares nascer de novo. Nicodemus não percebeu logo à primeira, procurou Jesus de noite, o Qual voltou a dizer-lhe a mesma coisa.

 

A mulher que está à minha frente bebendo whisky sem parar perguntou-me se tinha entendido o que ela havia me dito. Eu não lhe respondi. Pois é: o problema é que ninguém está preocupado com o badalo que anuncia incansavelmente a descida da Espada, nem as mulheres como eu, que engravidam e desejam fazer filhos mesmo sabendo que são seropositivas. O quê isso!? O pior é que alguém ao mais alto nível da governação encoraja esse pecado de saber que pode sair uma criança infectada para sempre. Uma criança que virá à terra para padecer, por culpa da nossa insanidade.

 

Estamos na esplanada do Hotel Inhambane há mais de duas horas e eu devo ter dito apenas duas ou três palavras. Ela é que fala. Com clareza, como agora depois de entornar mais um duplo: até os homens, muitos deles, acreditam que por terem sido circuncisados, estão protegidos contra o virus do HIV. Eu não se essa percepção constitui a verdade. Mas alguém quer lhes incutir isso. Ou seja, quando vêm nos dizer que os riscos de um homem circuncisado são menores, querem nos dizer o quê?

 

DHABUNO MUTHABWA, que significa ‘vocês agora estão a piorar’; é uma nobre expressão que se tornou popular (particularmente) nos homens no contexto das eleições autárquicas de 2013 e presidenciais de 2014, perante um cenário em que as mulheres apareciam como candidatas a ‘cabeçaa de lista’, na linguagem actual, à presidência ao Concelho Autárquico de Mocuba.

 

Uma vez que no contexto moçambicano as ‘capulanas’ ainda continuam a representar e simbolizar as mulheres, e as ‘calças’ os homens nas dinâmicas dos espaços privados, públicos e políticos, perante este cenário ‘estranho’ de surgimento de candidatas a ‘lógica’ das calças criou uma representação política para descrever este fenómeno que os assustará (reacção ao medo), ou seja, a expressão DHABUNO MUTHABWA, naquele caso, ‘vocês ‘mulheres’ agora estão a piorar’.

 

Sob o lema “Queremos Viver Sem Medo: Por um Moçambique Livre de Violência Sexual”, no âmbito da marcha alusiva ao Dia Internacional da Mulher, 08 de Março, uma data que internacionalmente é vivida e sentida com muita emoção e consciência, na qual mulheres e ‘homens’ “exaltam”, a partir de marchas simbólicas, as suas agendas em prol de um Moçambique cada vez mais justo e inclusivo para TODAS e todos, por um lado, e por outro lado repudiam todas as formas de MANHAZOS ‘vergonhas’ que afectam o bem-ser e o bem-estar das MULHERES.

 

 Porém, o cérebro nem sempre reage como o previsto, ou seja, por vezes quando dizemos ‘sim’, o cérebro subentende ‘não’, e vice-versa. Pode ter sido com base nesta lógica natural de inversão e de entrelinhas que surgiu o ‘medo’ por parte das “calças”, pelo ‘medo’ que surge através do/a  partir do lema proposto pelas “capulanas”, criando assim cogumelos de medo e mal-estar. Mas aqui, este fenómeno de ‘medo do medo’ terá dupla ‘polarização’, ou seja, por representar uma forma de MANHAZO ‘vergonha’ pelo medo das multidões e, sobretudo, porque desta vez o DHABUNO MUTHABWA tem um sentudo inverso, não surge a partir das “calças” para as “capalunas”, mas sim das “capulanas” para as “calças”, isto significa: vocês ‘homens’ agora estão a piorar’. Porquê a polarização dos movimentos sociais e cívicos, das multidões, das marchas, das manifestações?   O porquê do medo do poder das multidões? Têm medo das mulheres? Pode o Estado controlar as multidões? Os políticos gostam das multidões? Temos medo das multidões? Estaremos perante a ‘repressão’ e os ‘silêncios’ como escola, como instrução ou como status quo?   Por que perdemos tempo com os mensageiros e não com a mensagem?Acreditamos na racionalidade individual e na irracionalidade colectiva? Acreditamos na consciência individual e na inconsciência colectiva? Como Moçambique percebe as multidões: políticas, sociais, culturais, económicas ou emancipatórias?

 

Cronologicamente, as narrativas sobre as multidões estão associadas ao mito de loucura (Mackay, 1841), da irracionalidade (Le Bon, 1895), dos acríticos, da negatividade, das acções impulsivas, da libertação do inconsciente , da percepção de que os indivíduos nos grupos são  hipnotizados pelos líderes. Nos grupos, o racional seria o líder, e os demais meros seguidores. Consequentente, são vistos como sendo os inimigos do poder e da política e, quiçá, da economia, ou seja, teorias que visavam combater e negativar o eu social (grupal) como algo positivo, defendendo o indivíduo racional na condição de individualidade, e o indivíduo irracional na condição societal, ou seja, o processo de desendividualização.  

 

Estas teorias dos finais do século XIX sobre as multidões foram e ainda são impactantes nos mudus operandi dos séculos XX e XXI. Influenciam os políticos, os governos, e legitimam certas formas de ‘silenciamento’ com recurso às forças estatais. Pois, para os seguidores desta teoria as pessoas são manipuladas nas e pelas multidões, a saber: Quando estão nas multidões, os indivíduos tornam-se menos civilizados, comportam se com base nos instintos;  A pertença a uma multidão dá a sensação de anonimato, ou seja, no grupo perde-se a noção do medo e das  consequências dos actos; As pessoas se preocupam menos com as consequências morais;  Têm a sensação de serem  invencíveis; Nasmultidões, todos actos são contagiosos de forma irracional e instintiva; O contágio é dogmático; Nas multidões, as pessoas se sacrificam pelos interesses da maioria; A demagogia faz parte das multidões, ou seja, existe uma fígura demagoga inquestionável com poder de hipnotizar os demais; As ideias superficiais são usadas como “cavalos de batalha” nas revoluções;  Quando se está no grupo coloca se de lado a identidade e age-se como membro do grupo (desindivilualização);  Nos grupos os ‘homens não agem de forma racional e não usam suas ideias’, os líderes são tidos como os grandes “cérebros”; As multidões são vistas como uma religião.

 

É importante perceber a lógica do mito das multidões como madness, pois é assim que ainda funcioam certas lógicas políticas e governamentais na sua relação com as multidões, ou seja, ‘vigiar e punir’. Porém, existem teorias contemporâneas que podem estar a fazer falta a lógica política na sua governamentabilidade.

 

Os indivíduos nas multidões deixam de ser passivos e irracionais, e passam a racionais e conscientes. O comportamento das multidões é resultado dos comportamentos intra e inter-grupal, com as seguintes nuances:As identidades individuais são reforçadas nos grupos; As minorias activas podem com o tempo se transformar em maiorias impactantes; O poder reside no contacto entre as identidades grupais nas multidões; O anonimato desaparece, surge uma identidade assumida e reconhecida; Multidão como bem, como racional e sobretudo como um acto consciente de CIDADANIA; O mito da loucura dá lugar a narrativa de participacao activa societal; Quando persiste a lógica do mito da loucura como sinónimo de multidão, o problema não reside na multidão, mas sim na pessoa e no sistema que não percebe o significado das identidades intra e inter-grupais. Para tanto deve se procurar melhor entendimento, evitanto assim o mal-estar desnecessário e as narrativas da pós-verdade.

 

Se não for tratado, o medo pelas multidões pode gerar violências e mal-estar. Pois o povo, as massas, os grupos, não devem ser vistos ou pensados como o ‘outro’. É importante evitar ao máximo ser intolerante e os nossismos contra estes grupos. No lugar de nossismo deve surgir uma razoabilidade racional pautada na tolerância e na cultura de diálogo. Como?  Racionalidade cultural na capacidade de saber ouvir a lingaguem das multidões; No lugar de olhar as multidões como inimigas, procurar evitar bias e preconceitos, e pautar pela diálogo; Procurar encontrar a bondade e o belo no outro, no lugar da desconfiança;  Procurar perceber que as sociedades são dinâmicas e não perder a caravana do entendimento actual; As demandas actuais evocam respostas actuais; Evitar provocar as multidões das mulheres, pois de forma quantitativa, elas são qualitativamente a diferença, ou seja, elas podem fazer toda a diferença ‘racional’;” No lugar de concebê-las como “inimigas”, a estratégia seria colocá-las como parceiras na marcha da desenvoltura de Moçambique.”

 

DHABUNO MUTHABWA, ou seja, vocês ‘homens’ agora estão a piorar’.

 

Para toda MULHER moçambicana, em especial a mulher zambeziana, votos de uma marcha consciente em prol de uma sociedade tacitamente justa.  

sexta-feira, 08 março 2019 06:43

Os mal-criados que nós parimos

 

 

-- CREDELEC não devia ser mais cara que rancho de pobre ---

 

["Afinal, meu senhor, quanto é para você não me cortar a energia e não me multar, uma vez que flagrou-me roubando energia? Estou a pedir, senhor! Vou dar refresco mesmo"]

 

A relação Povo-Estado, na qual a esse "Estado" é emprestado o Poder pelo mesmo povo, compara-se à situação Filho-Pais. A distinção, disciplina e carácter (ou não) de uma criança denuncia a qualidade de educação que o Pai tem ou deixa a criança reter. Por isso, clichês similares a "esta criança não presta", ou "criança, tu és mal-criada", são severamente combatidos em contextos de sociedades mais conscientes sobre a dicotomia Pai-Educação vs Filho-Educação. Nenhuma criança no mundo nasce indisciplinada, burra, agressiva, conflituosa, etc. Ela será tudo aquilo que os meios onde estiver inserida a moldarem, e nisso os Pais é que são os principais e, às vezes, únicos responsáveis. Claro que há algumas predisposições genéticas. Se, por exemplo, numa mesma família há criança mais clara, menos alta, muito cabeluda, etc., é então natural que algumas predisposições psico-genéticas ocorram também, como é o caso de se ser mais falador, menos enérgico, mais simpático, muito disponível, etc., mas nada disso castra a influência, quiçá positiva, de uma boa educação dos seus Pais. 

 

É consensual que o maior simbolismo de educação que os Pais devem aos seus dependentes fosse o Exemplo. Descascando, não adianta berrar p'ra criança procurando oprimir as tendências, actos de violência ou antissociais para com outras crianças, se a relação entre os Pais dentro de casa e em toda a sua interacção é de constante conflito, discussões, violência doméstica, etc. - Filho de Peixe, Peixinho É -... Portanto, Pais responsáveis primem pelo exemplo: Poucas palavras, muitos actos. É como, religiosamente, se enuncia: P'ra Deus, não adianta estar-se lá todos os dias no Culto se as obras são iguais às dos "mundanos"... Voltando aos Pais, não adianta tentar convencer aos filhos dizendo que não podem comprar uma pasta ou caderno, melhorar a ementa nutricional em casa para ele estudar e viver melhor, alegando exiguidade financeira, se sempre a Mãe está com extensões novas, unhas de gel reabilitadas, sapatos novos e "muitos programas com grandes amigas". Um filho aceita estar roto na rua, na escola, com amigos, se o seu Pai estiver igualmente roto. É isto que dá consistência à educação. É de EXEMPLOS como esses que famílias extremamente pobres conseguem criar GRANDES HOMENS E MULHERES, pois os filhos, com todos os desafios a eles adstritos, submetem-se à educação, liderança e autoridade dos seus Pais "engordados" pelo exemplo desses pais... 

 

Este "EXEMPLO" de que falo é um dos actos concretos mais notáveis de uma "transparência" na gestão familiar. Filhos que crescem dando-se bem, no fim enchem a boca e falam bem dos seus Pais, pois durante todo o seu crescimento "sentiram" uma autoridade executada desse jeito, com Transparência, Humildade e Supra-Dedicação de seus Pais para com eles. 

 

Com uma sociedade não acontece diferente. Um povo facilmente se submete aos projectos do executivo que o lidera, se o exemplo for a nota sonante. A relação Povo-Estado devia, numa sociedade normal, basear-se na confiança, comprometimento, respeito, que o "Estado", na pessoa de quem foi confiando essa honra de governar, sempre pré-existir a TRANSPARÊNCIA, produzida pelo EXEMPLO, pela dedicação à causa e respeito por aqueles que esperaram do governante os "comandos" justos para a sua vida.

 

Quem hoje pode "confiar" que esta subida do preço da energia eléctrica é justa, e que todos devem contribuir sacrificando tudo, pois os ganhos serão para a totalidade dos moçambicanos, se nunca houve TRANSPARÊNCIA na articulação de preços de energia eléctrica; se não há coerência em actos de governação (com enfoque na preservação da integridade do povo)? Já me explico sobre coerência, e a seguir volto à questão da transparência. É indescritível que o mesmo sujeito que se senta todos os anos nas reuniões da Consertação Social, assumindo-se como guardião dos Povo, ou então o visionário do equilíbrio entre as facções, esteja "hoje" sistematicamente a escamotear o poder de compra do seu cidadão, do Povo que o confiou. É incoerência, sendo representante do Estado, dizer ao agente económico privado: "não suba os preços", mas "cresça os salários mínimos", e por trás subir os preços dos produtos ou itens estratégicos para a economia das pessoas, como é o caso da energia eléctrica. 

 

A energia eléctrica é um bem necessário e transversal. Subir a energia promoverá a subida de outros preços, pois a sua produção está relacionada com a electricidade. E energia eléctrica, dentro da família, representa um elemento central de subsistência: crianças precisam de energia eléctrica para fazer TPC, para engomar a roupa. Os pais precisam para ligar o congelador e conservar a lâmina de carapau que é a única "comida de prestígio" que podem garantir aos seus filhos. Portanto, a energia eléctrica não é um produto de luxo, passível de ser preterido na economia familiar. Então, não se compreende que o mesmo Estado (na pessoa do Governo) que sabe que o salário mínimo é de 6.250,00Mt esteja a aprovar subidas de preços da energia eléctrica ao ponto de significar mais de 70% do orçamento familiar. Quais são as opções que se deixam para essas pessoas? Resposta: "talvez roubar a energia que já é delas, porque Cahora Bassa é delas, e ir gerindo (com jogatanas de subornos) as inspecções dos agentes da EDM ou sucumbir, e tornar-se pessoas mais pobres do que já eram"...

 

A questão da TRANSPARÊNCIA na articulação de preços da energia elétrica devia traduzir-se pela apresentação do projecto que "existe", mostrando como "pagar mais pela energia vai beneficiar mais e melhor", facto que nunca ocorreu. A inexistência de um propósito claro nestas subidas só se agudiza pelo facto de as mesmas terem sido feitas num período muito curto, e nos momentos em que devia ter ido exactamente no sentido contrário. É que de 2015 à 2019 houve um agravamento de cerca de 80% no preço da energia eléctrica (em 2015 uma família poderia gastar 400Mt ao mês pela sua energia e hoje, com os mesmos 400 só fica cerca de 7 dias), deixando claro que a EDM não tem estratégia consolidada, de facto, que integre por exemplo: investimento no alargamento da base dos clientes, segmentação e diversificação de serviços, a não ser pura e simplesmente equilibrar seus balanços aravés do aumento das receitas obtidas com o pagamento feito estritamente por aqueles clientes que eles já têm.

 

Este é o meio caminho para a destruição de uma sociedade, com enfraquecimento da sua sustentabilidade familiar. Energia eléctrica, num mês, não devia ser mais cara que fazer rancho de pobre. As consequências serão devastadoras. A rebelião não será por violência, mas por sabotagem. Moçambicanos tornar-se-ão mal criados por isto. Ninguém os segurará, pois o espelho deles, que é o Estado, não demonstra "preocupação, carinho, dedicação, exemplo e transparência" nas suas acções. Por outro lado, existem os passivos. Com estes, será por cedência (há quem não luta mais), e assim a falência ou morte de várias famílias moçambicanas.

 

Um Estado responsável, jamais faria isso a quem o confiou... Jamais...