A história que vou-te contar vem de dentro de mim. Das minhas memórias tristes. Da vida rastejante que não me larga, e das derrotas acumuladas perante a minha incapacidade de correr ao encontro da luz, como fazia, nos seus tempos de glória, O.J. Simpson, um dos mais importantes jogadores de râguebi norte-americano do seu tempo. Sempre pensei que a culpa de todo este sofrimento imparável fosse do meu pai, mas graças a Deus ainda fui a tempo de perceber que não. Quer dizer, ele vai ser absolvido de todas as minhas acusações.
Meu pai era um bêbado e fumador inveterado. Isso é verdade. Cresci partilhando com ele o mesmo tecto, inalando desde criança os odores da cachaça e do fumo e do próprio cheiro do seu corpo negligenciado. Desmazelado. Aprendi dele a beber e a fumar. A ser negligenciado e desmazelado. Também. Mas há uma coisa muito importante que deixou comigo: a lealidade. E a fé de que amanhã o sol vai nascer outra vez. Isso é que me orienta.
Hoje sou ajudante de camião de longo-curso. Nunca aprendi a fazer nada na vida, senão beber e fumar. E o preço que pago é este: vou sucumbindo em cada viagem. Pendurado por de cima da mercadoria em viagens de não acabar. Mas o que me dói mais é que sigo para frente de costas. Vejo as coisas depois de passar. Nas noites pareço um pássaro de mau agoiro cheio de medo perante os holofotes dos carros que nos ultrapassam. O frio arrasa-me. A chuva festeja por sobre o meu lombo. E não posso fazer nada, senão encolher o corpo para dentro de mim, temendo interminavelmente o pior.
Apesar de tudo isto que passo cá fora, lá dentro, na cabina confortável deste Frethline, o condutor está sozinho. Gozando. Sabe que nesta zona de Catandica, onde se ergue aquela linda cordilheira como linha de fronteira entre Moçambique e Zimbabwe, faz muito frio. Para além disso está a chover. Mesmo assim está pouco se lixando. Ele dança com a alma a música dos limpa-pára-brisas, enquanto cá em cima eu é que sou o pára-brisas de mim mesmo. As minhas costas é que são a muralha de um esqueleto que está a vacilar.
Nestas viagens passamos frequentemente pelos controis da Polícia, sem que no entanto os agentes da autoridade obriguem o condutor a levar-me lá dentro. E essa dor toda faz-me lembrar o meu pai que morreu na sargeta. Bolas! Eu também vou morrer na sargeta, como o meu pai. Não tenho nada. Nem mulher. Nem filhos. A casa onde vivo é um buraco imundo. É pior que este cadafalso onde sobrevivo. Onde vou sendo executado devagar. O que castiga a minha alma é que estamos no mesmo carro, eu e o condutor, mas ele é um menino privilegiado. E eu um sabujo qualquer. Sem direito à entrar na cabine, mesmo quando está a chover. Mesmo quando o frio é de enregelar.
Apetece-me chamar sacana a este indivíduo que vai ao volante do “nosso” Frethline, mas na verdade eu é que sou inútil. Sou obrigado a suportar a ignomínia de dormir debaixo do camião, enquanto ele festeja com putas e bebida na cabine, num lugar qualquer onde lhe apetece estacionar. E depois de tudo, de madrugada, cara sem vergonha, ainda me pergunta se está tudo bem. Pior, manda-me procurar água para ele se lavar. E eu faço tudo isso curvado como uma besta.
Porventura haverá algum camionista que não seja sacana? Todos eles o são, excepto pouquíssimas excepções. Repare bem: quase todos eles são baixinhos. E homem baixinho só tem duas alternativas: ou é um bom bailarino, ou um sacana.
A procissão ainda vai no adro, ou, se preferirem, é prematuro tirar quaisquer ilações da operação iniciada esta quinta-feira (14) pela Procuradoria-Geral da República no âmbito do processo judicial relacionado com as ‘dívidas ocultas’.
Mesmo admitindo que seja uma farsa, a iniciativa da PGR de colocar preventivamente atrás das grades alguns dos tubarões das ‘dívidas ocultas’ que puseram Moçambique de tangas está a ser aplaudida nos círculos de opinião pública do país e além-fronteiras. O primeiro alvo foi Teófilo Nhangumele, a tal figura que já se tornara motivo de chacota nas redes sociais pela forma ridícula e ostensiva como exibia os bens supostamente conquistados à custa de trafulhices que protagonizou como intermediário no golpe que mergulhou o nosso país numa das maiores desgraças de que há memória. Além da detenção, Nhangumele viu os “seus” bens, incluindo carros de luxo, serem confiscados durante uma operação policial pública que pela sua espectacularidade em plena luz do dia atraíu vários mirones! Na rede em que Teófilo Nhangumele caíu na quinta-feira foram também arrastados António do Rosário, Gregório Leão Inês Moiane e Bruno Tandane, outros supostos protagonistas da mesma falcatrua.
Os principais actores da trafulhice
Enquanto Nhangumele saltou para a ribalta devido ao seu ‘brilhante’ papel na negociação do pagamento, pela Privinvest, da primeira fatia de subornos e comissões ao grupo de caloteiros do nosso país- ele próprio incluído- que esteve envolvido no caso das ‘dívidas ocultas’, António do Rosário e Gregório Leão são antigos chefões da secreta de Moçambique, o Serviço de Informação e Segurança do Estado (SISE), que desempenharam uma missão preponderante para o sucesso da roubalheira. Do Rosário e Leão eram tidos como figuras da proa junto dos responsáveis do armador Construções Mecânicas da Normandia. Esta companhia, propriedade da Abu Dhabi Mar LLC, foi a fabricante dos 24 desajustados atuneiros destinados à EMATUM que foram impingidos ao nosso país em troca de escandalosas sobrefacturações para pagamento de subornos e comissões que levaram o Estado moçambicano a contrair uma sufocante dívida de USD 850 milhões. A este valor adicionaram-se outros tantos USD milhões dos empréstimos contraídos pelas empresas Proindicus e Mozambique Assets Management (MAM), com garantia do Estado Moçambicano.
Logo que vieram a lume as primeiras notícias sobre a detenção de Teófilo Nhangumele, nas redes sociais choveram comentários e especulações em torno do assunto. Também não faltaram linchamentos verbais aos visados pela operação da PGR, que conforme se tem reiteradamente afirmado abarcará os restantes membros da lista em poder daquela instituição, na qual constam os nomes de 18 indivíduos acusados de envolvimento no caso das ‘dívidas ocultas’.
O mau tempo não tenciona para tão já deixar de beijar este pedaço da costa do Índico, condenado ao abandono e destinado ao esquecimento. A notícia sobre o naufrágio de um Bénéteau francês corre o mundo através de rádios que mereciam espaço nas competições da fórmula-1. E porque em Mitemane os homens também cantam Worroko[i], os rumores acerca do modo de aquisição do barco correm três vezes mais que a velocidade com que Lurdes Mutola amealhou ouro em Sidney.
Uns dizem que o Bénéteau francês foi adquirido com dinheiro da capitania de Memba, outros ainda aventam a hipótese do mesmo ter sido resultado de um empréstimo a um daqueles bancos de Nacala-a-Velha. Correm ainda rumores da incapacidade da capitania em pagar tal dívida, alguns sheiks influentes desdobraram-se em campanhas de não pagamento num acto visto por outros sheiks como uma ofensa as regras do Corão que recomenda a tudo fazer para que haja paz e harmonia entre os homens.
O agrupamento musical Worroko de Mivicone, compôs uma música que na óptica das autoras denuncia a forma fraudulenta como a dívida de aquisição do Bénéteau foi contraída. Para a sua apresentação foi marcado em Naminambo, um espectáculo. Os mais jovens reagiram positivamente e se fizeram ao local para onde se vão encontrar com agentes da polícia que os impedem de se fazer ao quintal de Mwe Habibo, a casa do espectáculo.
O barco ainda flutua por cima das águas da baia de Memba. Enquanto os agentes da polícia costeira, lacustre e fluvial querem que o mesmo atraque ao porto de areia de Mitemane, a população local desdobra-se em rezas, evocando ao altíssimo para que usando da sua omnipotente força, faça aquele barco atravessar o mar e fugir dos seus olhos. Apesar de crenças diferentes, as orações são dirigidas ao mesmo Deus, que terá de ser justo para com uns e injusto para com os outros. Alguns sheiks acreditam que Deus está com a maioria enquanto outros acreditam que os homens do poder são enviados de Deus para governar aos pecadores e tudo que fazem é em função da qualidade do povo que servem, pois quando se trata de um povo de pecados maiores, os homens do poder tratam de condená-lo ao sofrimento e quando se trata de um povo de pecadores menores com tendência para benevolente, proporciona-lhes boa vida com cheiro a fartura.
- Continuemos a operação rapazes. Vamos, façam força. Lembrem-se que juramos a bandeira para manter a segurança, ordem e tranquilidade públicas - um comando sem voz se escuta entre os homens fardados.
- Às ordens, inspector – quase todo batalhão repete a frase como se de uma oração se tratasse.
A confiança em Deus começa a roçar a alma dos agentes da polícia costeira, lacustre e fluvial da baia encarregues de gerir o resgate, mas as vezes com pausas para gerir os naworrokos[ii] que comportam-se como se aos ritos de iniciação não tivessem ido. Os ritos de iniciação ensinam a ser comedido e a guardar segredos tidos como vitais para a sociedade e numa altura em que se evoca perda de valores morais, os mais velhos lamentam que tal facto não esteja a acontecer. “As pessoas agora têm boca grande, falam de tudo um pouco, inclusive do que não sabem” – alertam.
No meio de tantas, uma ideia vinca: iniciar uma operação em terra envolvendo funcionário da capitania, do sinédrio da guarda e pessoas próximas a estes que terão tido conhecimento da contração da dívida para aquisição do Bététeau, como forma de apelar aos bons ofícios dos anjos para que o resgate finalmente aconteça.
O corpo da Dra Alimina Mussagy, uma cobradora de taxas da capitania que foi reconhecido antes mesmo de chegar ao laboratório do SERNIC[iii] cujo corpo foi encontrado a flutuar entre as águas de Mitemane constituiu mesmo um alerta sobre a possibilidade de outras mortes estarem a caminho, pelo que, a operação deve continuar.
- Sargento!
- Aqui meu inspector.
- Liga o Motorola, pretendo comunicar ao nosso superintendente que está na hora de começar as operações em terra.
[i] Worroko – dança tradicional do distrito de Memba praticada exclusivamente por mulheres, cujos instrumentos são dois paus raspados que as bailarinas tocam com recurso as mãos enquanto cantam. As suas letras são geralmente informações ou rumores que correm nos povoados ou na vila. O grupo mais famoso de Memba é o Worroko de Mivicone, localizado num povoado também chamado Mivicone, posto administrativo de Memba-sede. Por causa da natureza das letras, surgiu o neologismo naworroko que significa fofoqueiro.
[ii] Naworroko é um neologismo macua-nahara que significa fofoqueiro.
[iii] SERNIC – Serviço Nacional de Investigação Criminal
Olha, o que aconteceu ontem é normal. Dia dos namorados é assim mesmo. Uns preferem oferecer a lua; outros, embrulhar o mundo; há quem ache mais romântico catar as estrelas; há quem goste de oferecer rosas ou bebidas e há quem se contente com "eu te amo". Não há nada de estranho nisso. É o dia do amor. As pessoas querem expressar os seus sentimentos à pessoa que amam e neste São Valentim não podia ser diferente.
Há indivíduos que gostam de oferecer ou receber presentes estranhos e impossíveis como esses que têm a coragem de oferecer a lua mesmo sabendo que ela [a lua] é de todos. Pode ser estranho para uns, mas há quem goste desse tipo de presentes. Neste São Valentim, uma madame entendeu que devia surpreender o namorado oferecendo quase meia dúzia dos nossos gatunos. Aqueles daquela coleção. Aquela nossa relíquia.
Assim, o amor está no ar lá em casa. Exaltaram o cupido. É normal. É assim mesmo quando chega esse dia, mas já passou. O dia dos namorados foi ontem. Ontem qualquer loucura era válida: paixão é assim mesmo.
Hoje é outro dia e estamos "bizis" com o Chang. Queremos saber se Chang sai ou se fica na "djela-house". Queremos saber se Chang será extraditado ou resgatado. Estamos impacientes. Esses gatuninhos que vocês embrulharam ontem que guardem lá mesmo onde estão. Continuem a colecionar, podem servir para o dia da mentira.
O presente que queremos está na África do Sul, e o nosso desejo é guardá-lo no cofre do primo Trump, com a ajuda da dona Elivera. Por isso, não atrapalhem a doutora. Nada de palhaçadas! Brincadeira tem hora. Hoje é dia 15.
- Co'licença!
Quelimane, Zambézia e Moçambique é uma terra de especial e abençoada, com filhas e filhos especiais pela sua multiculturalidade, diversidade e diferenças relativas que não se querem universalizantes. Hoje, a saber, 13 de Fevereiro de 2019, é um dia especial para a cidade de Quelimane, para a Universidade Pedagógica e porque não, para a terra das mucinkas, da mucapata, do frango reconhecido internacionalmente como sendo o mais saboroso dos frangos: o frango à zambeziana. Pois, a Universidade Pedagógica homenageia hoje o Prof. Doutor Manuel José- fundador e director da delegação da UP em Quelimane, ou simplesmente, UPQ.
A tarefa da escolha da capulana da homenagem não foi fácil pela responsabilidade da mesma, foram várias e sobretudo ricas e belas as propostas, no final, o patrono desta iniciativa, o Prof. Doutor José Paulino Castiano, como um bom filósofo, soube exportar a sua inspiração no título fabulástico do prefácio do livro da homenagem da autoria do Prof. Doutor Jorge Ferrão, Reitor da Universidade Pedagógica, a saber, “Pedalando Utopias Por Entre os Palmares” ficando o título do livro de homenagem “ Pedalando Utopias entre Acácias e Palmares”. Porque esta iniciativa acontece dentro dos ethos académicos, muitas e muitos ou poucas e poucos se questionarão: o porquê da homenagem? Homenageá-lo por fazer ‘bem’ o seu trabalho? Ainda bem, existe a possibilidade desta hipótese surgir, pois, academia é mesmo isso, ou seja, confronto de ideias (não de pessoas), questionamentos e consensos desconcertados.
Esta iniciativa é uma pequena forma de reconhecimento e legitimação de um homem de várias causas e nuances, particularmente no espaço académico. Prof. Doutor Manuel José de Morais como académico e gestor é detentor de uma alma, de um espírito, de uma atitude e prática de extra mile. Extra mile termo utilizado outrora pelo Prof. Doutor Rogério Uthui, ex-reitor da Universidade Pedagógica para caracterizar a UPQ. Prof Doutor Manuel José de Morais não se farta de pedalar feliz e incansável rumo ao extra mile.
‘Doutor Morais ou Professor Morais’, estas são duas das várias formas que a emblemática figura do Prof. Doutor José Manuel de Morais recebe no seio da academia zambeziana e moçambicana. Por academia, aqui, olho para cada parte da rica capulana que a compõe: estudantes, docentes, técnicos e a sociedade circundante, instituições religiosas, lideranças tradicionais, sector público e privado, que, diariamente, contribuem para a sua legitimação. Confesso que, mentalmente, é muito mais fácil e prático idealizar uma narrativa sobre o nosso homenageado, Prof. Doutor Manuel José de Morais, no lugar de escrever porque é muito mais fácil idealizar o que ‘narrar’ com base no convívio que dura há mais de uma década.
Não diria que é difícil criar a narrativa Prof. Doutor Manuel José de Morais, mas confesso que é uma oportunidade carregada de felicidade e alegria por poder dizer aqui, com um sorriso enorme no meu rosto: OBRIGADA POR TUDO, em especial, pela oportunidade de, diariamente, poder aprender de uma biblioteca que fala, que respira e que tem a magia de fazer as coisas acontecerem. Foi em 2006 que me apresentei ao Director da Universidade Pedagógica- Delegação de Quelimane, Prof. Doutor Manuel José de Morais. Vinha eu da Delegação de Nampula, onde fui estudante e monitora. Gostava de Nampula, dos campi, dos colegas, e confesso que, até hoje, mantenho um contacto alegre com a Delegação e colegas. Mas, decidi regressar para casa, Quelimane, e, nessa altura, os meus colegas de turma de Licenciatura, em Nampula, Rui de Sousa e Beato Dias, já estavam a trabalhar em Quelimane, mas eu não sabia como seria a minha integração em Quelimane e, por isso, deixava Nampula com alguma tristeza pois era o lugar onde eu já me sentia axinene arivava.
Mas, a partir do momento em que o Director da UPQ, Prof Doutor José de Morais, me desejou boas boas-vindas à Delegação, respirei fundo e pensei que ter regressado à casa foi uma decisão boa. Como eu, já la estavam a Vilza Cassamo e a Stella Pinto Novo. Na mesma época, chegaram mais colegas: o Miguel Reis, o Paulo Calima, entre outros, e, at the and the day, estavamos todos nós felizes com o Director que tínhamos. Assim iniciava a nossa trajectória como docentes da UPQ. Foi assim que, sem hesitar, o Prof Doutor Manuel José de Morais criou a sua equipa de jovens, como ele dizia na época, ‘uma equipa jovem sem vícios’.
Muitos dirão que a força deste embondeiro e diamante lapidado está na juventude que o rodeia. Eu diria o inverso: a força da juventude que o rodeia está no Prof. Doutor Manuel José de Morais, ou seja, neste privilegiado convívio profissional e social que temos a oportunidade de ter com ele. Isso fortifica a academia e a nós. Outros dirão que ele é um homem viajado e que as viagens iluminaram as suas ideias. Se assim for, então um bem-haja às viagens pois este é o protótipo de uma visão académica.
O que torna o Prof. Doutor Manuel José de Morais um líder e campeão académico?
Prof. Morais, como tu dizes: ‘A Todas e a Todos, Aquele Abraço Zambeziano’
Os textos que irá ler aqui a partir de hoje, não pretendem ser um relato de factos com rigor acadêmico, mas antes o relato de uma outra verdade. A verdade da catálise efectuada por mim pelas terras de solo encarnado pelas montanhas e embondeiros de Montepuez. Situando-se na área nebulosa entre a experiência de trabalho de campo académico e relato sobre os estranhamentos e afectos de encontro com uma nova realidade, o texto explora toda a pluralidade possível dos métodos de narração e depoimento. É um exercício sobre a transcrição da oralidade.
O leitor encontrará relatos das vidas e das mortes dos camponeses e garimpeiros de Namanhumbir, da luta pela sobrevivência das mulheres dona de casa e daquelas que não cavando nas minas, ganham a vida pelo dinheiro dos rubis de Montepuez.
Encostado sobre a palhota de paredes de barro, que me foi dada como meu aconchego durante as semanas de trabalho de campo, ouço o barulho das omnipresentes motorizadas empilhadas pelos corpos de homens que com picaretas e lanternas enormes sobre a testa e longos casacos se dirigem para o garimpo.
Do outro lado da rua, consigo ver diate do portão de uma enorme vedação de rede de arrames, uma fila de homens com sacolas plásticas outros com mochilas sobre as costas.
“Esses aqui são vientes bons. Não são como esses outros que vem apenas para nos roubar. Esses estão a vir aqui, por causa do rubi e vão modernizar nossa terra. Por causa desse rubi, vamos ter luzes e escolas para os nossos filhos. Com esse rubi, vamos ter desenvolvimento aqui”!
Disse-me com voz firme Sheik Amisse, um velho muito influente na comunidade, apontando com a sua bengala para a vedação de arrame, onde estão esticadas dezenas de tendas no acampamento, que albergam os técnicos da empresa Montepuez Ruby Mining. As palavras de Sheikh Amisse, fazem -me pensar repetidamente, que parece que nada acontecia nesta cidade, até acontecer esta chegada dos “vientes” dos rubis”. Aprendi aqui, um novo código sobre esses estranhamentos e afectos de encontro com uma nova realidade: se existem vientes bons, é porque de certeza há vientes maus. O tempo de relacionamento em Montepuez me fez observar tais evidências, e falarei delas no momento próprio.
A questão é que a percepção de Sheikh Amisse sobre os vientes da empresa mineradora, não é regra de entendimento geral na comunidade. O que me importa aqui é contar as transformações sócio- culturais decorrentes das incidências de chegadas massivas de vientes e várias empresas, determinadas pela descoberta de enormes jazidas de rubis em Namanhumbir. Os efeitos imediatos dessas incidências são de natureza desestruturadoras-restruturadoras, prevendo-se a prazo, uma institucionalização de novos modos de integração social na comunidade.
A partir dessas histórias de encontros, lutas, estranhamentos e casamentos, resistências e adaptações, fiquei a pensar, em como conferir a esse drama, uma análise digna que me permitisse compreender esta confluência de sujeitos, coisas, línguas, corpos e chegada de máquinas em Montepuez. Conferir uma análise digna, significa em primeiro lugar, pensar sobre a questão da mobilidade e suas múltplas dimensões como elemento de construção do outro entre os nativos de Montepuez, que não se centrasse apenas como as várias experiências místicas vividas pelos pesquisadores no campo. Em segundo lugar, significa, pensar sobre as várias questões que se podem colocar: quem são os vientes que chegam? Como encontram os nativos e como se relacionam com eles? O que trazem das suas origens? Que problemas trazem os vientes para os nativos? Quais as soluções, os nativos encontram dos vientes? Como os nativos, resistem contra esta pressão de entrada massiva de vientes?
São essas questões que me levarão a contar as histórias com que Montepuez marcou o narrador. Uns dirão que é ficção e não estarão sempre certos. Outros dirão que é autobiografia e serão frequentemente enganados. (X)