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sábado, 12 novembro 2022 08:46

Nelson Saute escreve sobre os 80 anos do escritor Luís Bernardo Honwana

Luís Bernardo Honwana, que faz hoje, neste sábado, 12 de Novembro, 80 anos, é um dos precursores da literatura moçambicana e um dos maiores intérpretes da moçambicanidade. Quando tinha 22 anos, em 1964, fez publicar uma obra seminal e fundadora da moderna ficção moçambicana – Nós Matámos o Cão Tinhoso”. O início desta obra é um dos mais belos que se podem cotejar entre nós: “O Cão-Tinhoso tinha uns olhos azuis que não tinham brilho nenhum, mas eram enormes e estavam sempre cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho. Metiam medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer”.

 

O jovem autor de “Nós Matámos o Cão Tinhoso”, uma bela edição de 135 páginas, de pequeno formato, com ilustrações da pintora Bertina Lopes e composto por caracteres hieráticos, redigira uma nota biográfica igualmente singular: “Não sei se sou realmente escritor. Acho que apenas escrevo sobre coisas que, acontecendo à minha volta, se relacionem intimamente comigo ou traduzam factos que me pareçam decentes. Este livro de histórias é o testemunho em que tento retratar uma série de situações e procedimentos que talvez interesse conhecer”.

 

Começou a publicar histórias na página “Despertar” do “Notícias”. Colaborou em jornais (“Notícias”, “Voz de Moçambique”, “Tribuna”, “Diário de Moçambique” e “A Voz Africana”, na Beira), fez desenhos à pena, participou em exposições de artes plásticas, viu filmes e escreveu para o cinema, dedicou-se à fotografia, participou com jornalistas, poetas e pintores do seu tempo na efervescente vida cultural dos anos 60. Para além disso, praticou desporto e não se coibiu de conspirar activa e politicamente contra o regime. Foi um intrépido nacionalista. Conheceu, aos 22 anos, o opróbrio da PIDE, a humilhação, as sevícias, as injúrias. A prisão. Foram três anos e meio. A crueldade de um tempo que está hoje obliterado. A brutalidade de um regime.

 

As histórias – as sete histórias do livro – têm claramente um recorte autobiográfico, aliás isto é assumido pelo autor. “O Papá ressona. A Lolota e a Nelita na outra cama ressonam. A meu lado, aqui, debaixo do meu braço, o Nandito ressona também. Ontem, quando fui sorrateiramente abrir a porta, depois de deixar que os outros adormecessem bem, ouvi ressonar no outro quarto. Não sei se era a Mamã ou se era a Tina. Devia ter sido a Mamã. Sim, acho que foi a Mamã, embora não tenha certeza. Será que eu, também, ressonarei quando adormecer?” (“Inventário de imóveis e jacentes”) Ou: “Antes de ir para o serviço, o Papá foi ver a capoeira com a Mamã. Apareceram os dois à porta da cozinha, a Mamã com o avental já posto e o Papá com um palito na boca e o jornal debaixo do braço. Quando passaram por mim, o Papá dizia ´não pode ser´, ´não pode ser´, ´isto não pode continuar assim´” (Papá, cobra e eu”).

 

O mundo da infância é cartografado aqui num poderoso olhar. Para além destes textos (“Inventário de imóveis e jacentes” e “Papá, cobra e eu”), “As mãos dos pretos” compõe o universo encantado desse tempo pueril. Mas há aqui, também ou sobretudo, um admirável testemunho de um olhar indagador. O gabarito do seu narrador esplende, igualmente, em “A Velhota”, “Dina” ou “Nhinguitimo”, os restantes textos deste conjunto primoroso. A prosa é de grande quilate e denuncia uma espantosa maturidade do seu autor. Há nela uma acuidade linguística espantosa e um enriquecido resgatar da oralidade.

 

A realidade que estas histórias narram ultrapassa, em muito, a circunstância da mera biografia. Estes textos denunciavam, de forma resoluta e corajosa, uma realidade social profundamente injusta e desigual. Textos breves, quase todos, à excepção daquele que nomeia o volume (“Nós matámos o Cão Tinhoso”). Este livro é uma surpreendente obra literária e é um libelo acusatório virulento. Provavelmente, a grande literatura seja isso mesmo: a combinação entre as faculdades da arte em si e o poder de esta nos interpelar com a realidade que ilustra ou denuncia.

 

“Nós Matámos o Cão Tinhoso” é uma vigorosa denúncia das desigualdades e das injustiças sociais que o tempo e a realidade colonial impunham aos moçambicanos.  A obra consegue isso através de um olhar ou uma capacidade de observação invulgares. O fino recorte da escrita, o seu despojamento, a sua carpintaria literária, a forma como desenha as personagens, como expõe as tensões dessa sociedade profundamente disjuntiva, dessa realidade divergente, desse tempo digressivo, coloca-o, não só na condição de grande narrador moçambicano, mas também o filia entre o escol dos escritores africanos que seriam consagrados na mítica “African Writers Series”, da Heinemann, industriada pelo célebre Chinua Achebe.

 

A série publicou, para além do nigeriano Chinua Achebe, o queniano Ngugi Wa Thiong´o, o senegalês Sembène Ousmane, o egípcio Naguib Mahfouz, o nigeriano Wole Soyinka ou a sul-africana Nadine Gordimer, os três últimos laureados com o Prémio Nobel da Literatura. Diria, afoitamente, que Luís Bernardo Honwana, com “We Killed Mangy Dog and Other Stories” (tradução de Doroth Guedes, de 1969) pertence, sem favor, a esta plêiade dos maiores intérpretes africanos. Doroth, mulher de Pancho Guedes, é a Dori (“que é sensível à angústia dos cães”), da dedicatória da edição original de “Nós Matámos o Cão Tinhoso”.

 

A obra de Luís Bernardo Honwana não se pode dissociar da sua biografia cívica, política, cultural e ética. Esteve três anos e meio preso.  Com ele, Armando Pedro Muiuiane, Rui Nogar, José Craveirinha, Malangatana Valente, Rogério Njauana, entre outros, são seus companheiros. Primeiro na ominosa Vila Algarve e depois na Cadeia da Machava. Craveirinha escreveria sobre esta dura provação Cela 1 (1980) e Rui Nogar haveria de cartografar esses tempos sinistros em “Silêncio Escancarado” (1982). No belíssimo livro “Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade (2018), Nely Nyaka, mãe do autor, faz um arrepiante relato sobre a experiência prisional de Luís Bernardo Honwana. Antes deste, num outro brilhante testemunho, Memórias (1985), o pai, Raúl Bernardo Honwana, que também fora preso, dois anos antes, refere-se à prisão do filho e de outros nacionalistas. José Craveirinha: “Lembras-te amigo Luís? / Por semana eram duas vezes meia hora / e o guarda de turno a avisar / - “São 30 minutos e acabou!” (“Dia de visita”).

 

É interessante, aliás, numa leitura comparativa, perceber que há, nestas vidas, nestes percursos e nestas obras, um mesmo desiderato: um mesmo compromisso ético. Há, mesmo, nestas obras, uma mesma estética, uma mesma poética e uma mesma ética que enforma o percurso desta família exemplar: os valores, a decência, a integridade, a moral, a probidade, a honradez. Isto é inédito. Para além disso, a realidade familiar e social que estes autores (Pai, Mãe e Filho) traduzem nas suas obras revelam uma lisura e uma autenticidade impressionantes. Mais uma vez, aqui se atesta o prodigioso olhar de Luís Bernardo Honwana, que fixou, muito jovem, magnífica e cabalmente, um tempo histórico.

 

Se, em 1964, Luís Bernardo Honwana, com a sua pluma de escritor de primeira água, inventava a nossa ficção narrativa, em 2017, ao publicar o livro de ensaios “A Velha Casa de Madeira e Zinco” afirmar-se-ia, de novo, como intérprete fundamental da moçambicanidade. Este livro, sobretudo o seu ensaio inicial, irá balizar os estudos, as análises, as perspetivas, os debates, ou o que quer seja, que exista, lá, no futuro, sobre uma época, o contexto e a realidade sempre contraditória da nossa nacionalidade. Este é, também, por consequência, um texto fundador à semelhança do que acontecera com o prodigioso “Nós Matámos o Cão Tinhoso”.

 

O livro “A Velha Casa de Madeira e Zinco” alia e articula uma capacidade e qualidade literárias sobejamente conhecidas a uma análise, discussão e provocação intelectuais igualmente únicas e invulgares. Publicado 53 anos depois da sua obra de estreia, este livro desfez o mito do autor de uma obra só. Aliás, ao longo de décadas defrontou-se com cobranças implacáveis. Quando, em 1990, o entrevistei para o livro “Os Habitantes da Memória”, não contornei a pergunta sacramental: continua a escrever? A resposta foi fleumática: “Escrevo intermitentemente como suponho que toda a gente o faz. Mas tenho agora uma situação interessante, que é a raiva das pessoas pelo meu silêncio, uma situação de devedor que eu preferia não ter e que nos melhores momentos me convenço de que não tenho. Mas é isto que se está passando. As pessoas “cobram” de mim o não publicar. E, às vezes, cobram de uma forma violenta, extremamente severa. Mas, de qualquer modo, suponho que, se isso estiver no desígnio dos deuses, essa actividade poderá ser retomada e é bem provável que sim”.

 

Luís Bernardo Honwana procede uma época clemente em termos culturais para Moçambique. A sua geração é a dos prestigiosos fundadores. Não só na prosa de ficção, como é o seu caso, mas também na poesia, na pintura, na fotografia ou na música. Craveirinha (“expressão verdadeira da poesia de Moçambique”, como dirá na dedicatória no frontispício da sua excepcional obra) é um dos seus companheiros, como o são: Rui Nogar, outro poeta extraordinário; Malangatana, pintor arrebatador e uma força tenaz da natureza; Ricardo Rangel, o mestre do instante decisivo, entre outros tantos. Esta é, por conseguinte, uma geração única, absolutamente magnificente, determinante e fundadora do devir moçambicano. Nesta pátria da desmemória e do esquecimento, não raro, pratica-se o descaso. A história destes fundadores – poderia e deveria acrescentar o insigne nome de Noémia de Sousa, cujos versos fazem a epígrafe de “A Velha Casa de Madeira e Zinco” – é uma das páginas mais nobres da nossa história e cultura do século XX. A nobreza é o que os distingue.

 

De Luís Bernardo Honwana avulta um percurso público edificante: jornalista e nacionalista, preso político, combatente pela liberdade, Director do Gabinete do Presidente da República logo após à Independência, sucessivamente Secretário de Estado e Ministro da Cultura, fundador e Presidente do Fundo Bibliográfico, membro do Conselho Consultivo da UNESCO, seu representante na África Austral, é hoje Director Executivo da Fundação para a Conservação da Biodiversidade – BIOFUND.

 

Para além da sua vastíssima cultura, é um tribuno lustroso, homem de uma rara inteligência, dono de uma sedutora e fascinante conversa. Pertence à categoria dos que melhoram o silêncio quando falam. Entre nós, não abundam espécimes similares. Tenho o privilégio de privar com este vulto da nossa nacionalidade e não tenho pejo em encomiá-lo hoje e aqui. Não há muitos como ele, pese embora a pátria condescenda a dispensar figuras deste quilate. Este desapreço só amesquinha a pátria que se compraz com sua mediocridade.

 

Pertenço à geração de moçambicanos que estudaram, em anos sucessivos, a obra “Nós Matámos o Cão Tinhoso” e se formaram na companhia das suas personagens, sobretudo: Ginho, Quim, Gulamo, Zé, Xangai, Carlinhos, Issufo, Chico, Telmo, Chichorro ou Norotamo, sem esquecer a renitente Isaura. O Senhor Duarte da veterinária, o Administrador, Madala, Maria, o Capataz, Djimo, Filimone, n´Guiana, Muthakati, Tandane, Muthambi, o Senhor Antunes da Coca Cola, a Dona Dores, o Senhor Frias, a dona Estefânia, o Rodrigues da loja, o Vírgula Oito, Maguiguane, Mathumbitana, eu sei lá! Papá, Mamã, Lolota, Tina, Gita, Nandito, Nelita, Joãozinho. Uma verdadeira galeria de personagens (reais) que hoje fazem parte do nosso imaginário.

 

Termino este depoimento celebrativo, lembrando que, gozando do privilégio de conviver com estes numes da literatura moçambicana – Noémia, Craveirinha, Nogar, entre outros –, ao ouvi-los, o que fazia amiudadas vezes, eles falavam, com veemência, de homens probos, que eram comuns no tempo em que eles viveram e se afirmaram. Esta fidalguia, de mulheres e homens distintos, honestos e honrados, dignos e decorosos, éticos e probos, não avulta, hoje, por certo. Vivemos nos antípodas dos tempos irrepreensíveis de outrora e das figuras que nos nobilitavam. Luís Bernardo Honwana é um dos últimos desta tribo exemplar. Aqui lhe deixo o meu preito, neste dia em que ele celebra 80 anos e que nós, seus leitores contumazes, perseveramos.    

 

KaMpfumo, 12 de Novembro de 2022

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