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terça-feira, 11 dezembro 2018 03:07

A força do nome a perpetuação dos crimes

Cerca de 120 milhões de raparigas em todo o mundo - mais de uma em cada dez - sofreram violência sexual ao longo da sua vida, segundo dados da UNICEF. Em Moçambique, quatro de cada dez mulheres já foi vítima de violência sexual desde os 15 anos; seis em cada 20 revelou já ter sido violada. A nível mundial, uma de cada 14 já sofreu algum tipo de agressão sexual - abusos com e sem penetração, por exemplo - por parte de alguém que não é seu parceiro, como aponta um estudo da OMS, o maior informe global feito até agora. Uma maré abrumadora de cifras que, apesar de tudo, segundo os experts, não oferece a radiografia real do que se considera uma epidemia silenciosa.

No contexto moçambicano, a violação sexual é a sexta maior causa de admissão nos serviços de urgência de ginecologia. A mulher, como sempre, é uma vítima: primeiro da nossa discriminação; segundo da sua condição e; terceiro da desconfiança generalizada que recai sobre o designado sexo fraco. Portanto, sempre que se dá um caso de violação sexual ou de acusação a mulher é que tem de provar e nunca o agressor.

Após o anúncio da reabertura da investigação do caso Kathryn Mayorga meio mundo desdobrou-se a julgar a senhora com um contentor de nomes espúrios, colocando em causa o seu bom nome e fazendo, por tabela, troça dum episódio que devia ser tratado sem a mínima leviandade.  Ignoram, esses defensores de agressões daquele jaez, que os abusos sexuais são uma epidemia silenciosa e com um alto custo social. As vítimas, essas, calam por culpa, pelo estigma e pelo medo. Um depoimento aterrador, que ouvi enquanto jornalista foi com uma mulher aos prantos, contando uma violação sexual.  Deixei, no artigo que nunca terminei, assim o registo:

A primeira vez que ele irrompeu pelo seu quarto estava a dormir. Fazia frio e estava completamente coberta. Passam 21 anos, mas Ana (nome fictício) volta a essa noite e outras muitas. Pode ver a cor dos sapatos, recordar-se que ele estava vestido. Com o passar dos anos essa recordação, difusa ao princípio, é cada vez mais clara. Ela tinha sete anos e se sentia muito feliz. Hoje tem 28 é uma jovem dedicada ao próximo. Custou-lhe muito falar dos abusos sexuais que sofreu por parte de um familiar muito próximo ainda criança. Abusos esses que duraram até aos 17 anos quando ela decidiu falar pela primeira vez. “Nunca contei por causa da minha mãe”, revela com uma tranquilidade que assusta.

Outro depoimento é de Luísa que conta que aos 15 anos foi violada por oito homens. “As pessoas próximas e a minha comunidade julgaram-me como culpada e não como a vítima de um crime. Isolaram-me. Consideravam-me uma prostituta”. Como no caso de Ana e Luísa, mas de 80% dos abusadores são conhecidos: familiares, amigos e inclusive o próprio parceiro. Esse é um dos factores que contribui para perpetuar o silêncio.  O papel atribuído ao homem é igualmente responsável pelo número de casos. O que se diz, em defesa de Ronaldo, é que se ela não queria não devia ter aceite o convite para visitar o apartamento do jovem. Um enorme equívoco esse que julga que aceitar um copo por cortesia significa abertura total ao desejo do homem provedor. É a mesma lógica que se usávamos, no contexto da nossa juventude, quando uma mulher irrompia pelo nosso quarto.

O caso de Ronaldo não é diferente. No primeiro momento o português afirmou que se tratavam de notícias falsas que visavam gerar promoção graças à dimensão do seu nome. “Querem fama através do meu nome (…) nego firmemente as acusações contra mim. A violação é um crime abominável que contra tudo que creio. Por muito claro que possa ser para limpar o meu nome, recuso-me a alimentar o espectáculo mediático criado por pessoas que procuram promover-se a si mesmas às minhas expensas.

É bom que Cristiano diga estar tranquilo, mas tal só é bom até descobrirmos o acordo firmado por ele em 2009, no qual reconhece o acto e paga pelo silêncio.  Não se trata, como se pode pensar, duma campanha contra Cristiano, mas do exemplo que se deve dar ao contentor de homens que ultrapassa a barreira da decência e respeito pelo corpo feminino, ao exército de animais que julga que o poderia económico dá direito ao exercício de abusos sem penalização. Curiosamente, quem mais defende Cristiano depois da publicação do acordo que revela a culpa do português é mulher. É gente que foi gerado no ventre duma mulher; são homens que têm filhas e que não querem que um acto daquela dimensão lhes bata a porta.

O facto de o caso ter se dado em 2009 não é atenuante suficiente para desculpabilizar o astro português e nem o facto de ter pago pelo silêncio reúne suficiente força. Cristiano deve servir de exemplo. A única coisa que me parece negativa em tudo isso é que ainda assim subsiste um exército de acéfalos que continuar a violar coberto pelo anonimato. Por um mundo livre de violações sexuais Ronaldo deve ser julgado com toda justiça possível. Responsabilização aos violadores sexuais e se Ronaldo for, como os dados indicam, um deles está na hora de manifestarmos o nosso total repúdio e toda falta de respeito que lhe podemos lhe podemos votar.

Quando tomou posse a 30  de Outubro de 2017, o Comandante Geral da Polícia, Bernardino Rafael, deu numa de campeão da repressão. Para dentro da corporação, lançou um discurso de tolerância zero contra desvios de comportamento, que fazem escola na nossa polícia. Numa parada com seus correligionários em Maputo, tentou impor a circulação zero de mensagens nas redes sociais entre colegas. Mas isso era como fazer parar o vento com as mãos. Por causa do seu tom e estilo ele foi percebido na sociedade como tendo sido a escolha certa para moralizar a polícia e torná-la atuante. Essa perceção estava afinal errada.

sexta-feira, 07 dezembro 2018 07:43

O tiro que "matou" o Mabjaia

A queda de Francisco Mabjaia (na verdade, os motivos da queda), como primeiro-secretário da FRELIMO da cidade de Maputo, coloca-nos diante de um mistério muito dificil de decifrar. Um caso capaz de embaraçar qualquer criminalista ou laboratório forense avançado. Um caso de Ci-Esse-Ai.

Tudo o que se sabe é que o "mista-tractor" vinha sendo vítima das suas próprias decisões um tanto quanto acrobáticas. Mas aí está. O homem é um colecionador nato de trafulhices. Qual foi então a trafulhice que precipitou a sua queda?

quinta-feira, 06 dezembro 2018 07:01

Jornalismo de Soluções?

Fruto do advento das novas tecnologias de informação e comunicação, nunca na história da humanidade a informação chegou aos indivíduos de forma tão fácil e acessível. Por outro lado, é dentro deste mesmo contexto que assistimos à decadência da verdade, uma tendência caracterizada pelo “natural desdém” dos cidadãos para com as notícias, para com os políticos e o consequente alheamento destes na participação pública.

 

Alguns teóricos chamaram a este estado como mal-estar da mídia (media malaise). Segundo esta teoria, a forma como a mídia cobre as notícias ou as coloca diante do público tem um impacto negativo na sociedade como um todo, principalmente na esfera política, tendo como consequência o declínio da confiança pública, o cinismo político etc.

quinta-feira, 06 dezembro 2018 06:28

Captei a mensagem papá João Lourenço*

Rafael Marques de Morais foi o primeiro a chegar, com a Alexandra Simeão e eu próprio logo atrás. Fomos conduzidos para uma sala de espera, no “cerimonial”. Um primeiro jovem, educado, veio ter connosco e confirmar as nossas identidades. O nome do Rafael estava na lista dele. Uns minutos depois chegou o Frei Júlio Candeeiro da Mosaiko. Também o seu nome foi verificado. Quando passámos para o lado da estrada onde se encontra a entrada para o Palácio, o grupo engrossou-se com membros da ADRA, Omunga, AJPD, Open Society, OPSA, Mãos Livres e as duas representantes da "sociedade partidariamente civil" CNJ e AMANGOLA. Fomos informados que teríamos de deixar os telefones no raio-x e que iríamos passar um a um de acordo com a chamada da lista.

quinta-feira, 06 dezembro 2018 05:39

Captei a mensagem papá João Lourenço*

Rafael Marques de Morais foi o primeiro a chegar, com a Alexandra Simeão e eu próprio logo atrás. Fomos conduzidos para uma sala de espera, no “cerimonial”. Um primeiro jovem, educado, veio ter connosco e confirmar as nossas identidades. O nome do Rafael estava na lista dele. Uns minutos depois chegou o Frei Júlio Candeeiro da Mosaiko. Também o seu nome foi verificado. Quando passámos para o lado da estrada onde se encontra a entrada para o Palácio, o grupo engrossou-se com membros da ADRA, Omunga, AJPD, Open Society, OPSA, Mãos Livres e as duas representantes da "sociedade partidariamente civil" CNJ e AMANGOLA. Fomos informados que teríamos de deixar os telefones no raio-x e que iríamos passar um a um de acordo com a chamada da lista.

Desta vez, um segundo rapaz, com problemas de educação elementar pois, para além do tom rude, achou-se no direito de tratar pessoas mais velhas que ele por “tu”, sendo prontamente admoestado pela Alexandra, o que o tornou ainda mais azedo. Fomos entrando, um a um e avançando em grupos de 2 ou 3. Quando nos instalámos todos na sala de espera, notei a falta do Rafa e perguntei onde estava. Já não me lembro quem terá sugerido que estava numa sala à parte a ter uma conversa prévia com o PR. 

Como o nosso encontro estava atrasado e porque o Rafa é mesmo “o próprio wi” com todos dossiers pesados da marimbondagem, não me causou nem uma ponta de estranheza a ideia. Mas depois de entrarmos na sala final onde, em fila indiana, se saúda o PR, comecei a olhar à volta um pouco mais inquieto e percebi que ele não viria. Aí pensei nas possibilidades: provavelmente zangou-se com alguma exigência protocolar que lhe pareceu excessiva, rodou sobre os calcanhares e regressou à sua cozinha onde confecciona aqueles textos cáusticos do Maka Angola

Enquanto todos iam falando, eu mentalmente estruturei a minha apresentação para começar com o assinalar daquele momento inédito e, ainda antes de apresentar os meus pontos de vista, revelar estranheza pela notória ausência do nosso companheiro.  Na hora H, 20 minutos depois, a organização mental revelou as suas limitações provocando um eclipse total nessa segunda parte da minha introdução, facto pelo qual me remoí logo de seguida.  Só na saída viríamos a aperceber-nos que na segunda lista, em posse do jovem mal-encarado, Rafael Marques não constava (ou ele, deliberadamente, o omitiu, sem pedir esclarecimento à sua chefe, provocando o retorno a casa do Rafa). 

João Lourenço desejou-nos as boas vindas, abriu a reunião com uma introdução da praxe, fez uma piada sobre a certeza de vir a ser cilindrado pelas nossas críticas ao longo da conversa e escolheu como tema de partida à, diz ele, mal interpretada “Operação Resgate”.  Solicitou a ajuda da sociedade civil nesse dito “resgate de valores” e abriu a discussão dando total liberdade para se fluir pelos temas que achássemos mais urgentes. Todos os intervenientes começaram com uma palavra sobre o tema de abertura e, mais do que “cilindrar”, houve um reconhecimento nas razões de fundo evocadas, mas uma polida discórdia nos métodos empregues e na perpetuação da ideia de que os problemas se resolvem com recurso, por vezes quase exclusivo, ao músculo.

Muitos argumentos pertinentes sobre a sociologia do caso em análise e sobre formas de corrigir a abordagem para evitar tensões sociais, que são a consequência óbvia para quem vê comprometida a ferramenta que desenvolveu para produzir uma mínima margem de lucro com a qual se remedeiam famílias inteiras. Não parecia haver retração por parte de nenhum dos intervenientes no encontro e o PR mostrou-se um ouvinte paciente, raramente interrompendo um interlocutor e, quando o fizesse, com o mero intuito de pedir um esclarecimento, sem contrariar ou refutar qualquer observação. O ambiente era distendido e salubre, o que reduziu parcialmente qualquer solenidade que se lhe pudesse querer atribuir. Foram muitas as coisas ditas por cada um dos presentes, cada associação frisando os assuntos mais preocupantes no seu domínio de ação (acesso à justiça, autarquias, registo civil, desnutrição/mortalidade infantil, agricultura familiar, ensino primário e alguns mencionaram o facto de ainda não terem sido certificados após 20 anos de atividade e não terem estatuto de utilidade pública). 

Quando foi a minha vez de falar disse o que já tenho dito publicamente na minha conta do Twitter: que tenho ficado cada vez mais impressionado com a evolução nos discursos que vão ao encontro das expectativas da maioria, mas que era preciso que algumas dessas medidas começassem a fazer-se sentir com maior assiduidade e vigor para não suscitarem comparações com “tolerâncias zero” e “o futuro começa agora” de um outrora não muito distante. Que percebíamos que isso não se consegue de forma imediata, sobretudo com as limitações que todos conhecemos e que são transversais a todos os setores de toda a sociedade, mas que tinha de se encontrar uma forma de o fazer.

Mostrei a minha compreensão pela camisa de forças que a rubrica “serviço da dívida” no OGE representa (52% do total de receitas PREVISTAS para cumprir com compromissos de dívidas que herdámos sem sermos consultados), mas que não percebia porque ainda não se tinha acatado a sugestão de se elaborar uma auditoria a essa dívida para se estipular que parte tinha sido fruto de acordos espúrios e poderia ser renegociada e se não estaríamos então a realizar um esforço desnecessário com algumas dessas despesas, até porque o próprio executivo tinha anunciado que pelo menos 25% dessa dívida era de origem duvidosa.  

Também sugeri que os relatórios de execução orçamental (bem como toda a informação acerca da gestão de fundos públicos) sejam disponibilizados para análise permanente de especialistas na matéria, pois só poderemos monitorizar e elaborar críticas construtivas se o acesso a informação passar a ser levado a sério, com os limites incluindo apenas assuntos que tenham estatuto de segredo de estado, que devem ser mínimos. Falei da resistência do governo e da polícia em perceberem a total amplitude do art 47º da CRA (apesar do notável aligeiramento na repressão que se tornou menos recorrente num contexto de manifestações que aumentaram exponencialmente), da incapacidade de se despirem da arrogância ao não lidarem bem com a fiscalização cidadã (apesar do MININT e do próprio PR pedirem à sociedade civil que o faça e que denuncie os abusos), pois, a cada vez que nos vêem empunhar um telefone, levam-nos para as esquadras onde temos de ficar horas à seca, sujeitos a ameaças e a imposições abusivas e chantagistas que condicionam a reposição da liberdade ao apagamento dos registos efetuados na via pública.

Frisei que a luta contra a corrupção deve forçosamente andar de mãos dadas com a transparência e a proliferação de rádios comunitárias e todos os meios possíveis de difusão de informação. Que essa será a forma mais eficaz da sociedade civil ajudar na “recuperação dos valores”, tendo uma voz que possa chegar a um número mais alargado de pessoas de uma só vez. Mencionei os processos judiciais políticos por resolver: o caso dos muçulmanos e, ajudou-me o Salvador Freire, o “caso dos 35” acusados de tentativa de golpe de estado (sempre o mesmo). Nesta parte João Lourenço mostrou particular preocupação, perguntando pormenores sobre o caso dos jovens muçulmanos e, sobretudo, porque nunca tinha ouvido falar do caso dos 35, instruindo ao seu diretor de gabinete, Edeltrudes Costa, que tomasse nota de ambos.

Aproveitei para introduzir uma ideia que pretendo desenvolver com mais profundidade brevemente: a mudança da capital e a relocalização dos Ministérios para províncias onde a sua ação faça sentido prático. O momento de alguma descontração surgiu quando o representante da AMANGOLA, Job Capapinha, alinhado no diapasão do resto da sociedade civil que clama por transparência e acesso à informação, cerceado pelas autoridades públicas e o papoite Jay começou a rir: “camarada Capapinha, peço que me desculpe estar a rir-me, mas permita-me que lhe pergunte: quando o senhor era governador, disponibilizava informação a quem lha viesse solicitar?”. Gargalhada geral. Capapinha aguentou no castanho e prosseguiu desportivamente. Na hora da despedida, João Lourenço fez a ronda da sala para saudar cada um dos presentes, fazendo uma ou outra piada e a que me coube foi “epá, vocês ficaram com fama de revús, agora estás mesmo a assumir o visual” (referindo-se à barba e cabelo desgrenhados). Fê-lo em tom amistoso e nada jocoso. Sorri e apenas desejei “coragem”.

À saída, quase já a recuperar o telefone e a perceber o que se tinha afinal passado com o nosso Rafa, um dos momentos altos para mim: um funcionário (aparentava ser jardineiro) veio ter comigo, fixou-me com intensidade, apertou-me a mão vigorosamente e deixou que apenas os seus olhos falassem por si, sem pronunciar uma palavra.Entendi “obrigado e continua”. Captei a mensagem papá!

 *Texto escrito por Luaty Beirão e publicado na sua pagina do facebook, um dia depois de ter sido recebido pelo Presidente Joao Lourenço, juntamente outros activistas angolanos como Rafael Marques e Alexandra Simeão.